TERCEIRA PARTE
Modernidade e repressão
CAPÍTULO 8
Os cristãos eram proibidos de ler a Bíblia
Inacreditável, mas verdadeiro. Em alguns períodos, traduzir a Bíblia para uma língua compreensível pelo povo era um crime que podia custar a vida. Ter o Evangelho em casa era proibido a quem não fosse sacerdote.
Judeus, cristãos e muçulmanos são chamados também de "povos do Livro", pois baseiam a própria fé, os próprios preceitos e hábitos em textos ditados (ou inspirados) por Deus. De acordo com essas religiões, o fiel não só tem o direito, como o "dever" de ler, estudar e entender as Escrituras. Por exemplo, no mundo protestante, a leitura e o conhecimento da Bíblia representam uma tradição. Já no mundo católico, apenas há algumas décadas os altos escalões da Igreja levantaram a questão de uma "alfabetização bíblica" dos fiéis. Essas diferenças culturais têm causas históricas precisas.
O problema das religiões baseadas em uma revelação escrita é a língua. O que acontece quando uma crença desse tipo se difunde entre outros povos ou quando, no próprio local em que nasce, a evolução natural no decorrer dos séculos faz a linguagem mudar? Acontece, de forma banal, que a Revelação corre o risco de não mais ser compreendida pela maior parte dos crentes.
A Bíblia dos Setenta e a Vulgata
Antes mesmo do nascimento de Cristo, os judeus, que tinham várias comunidades espalhadas por todo o oriente helênico, precisavam enfrentar esse exato problema. A Bíblia (biblia, que, em grego, significa "livros"), sendo na maior parte escrita em hebraico,1 não era de fácil compreensão para muitos judeus, principalmente os de segunda ou terceira geração, que não dominavam mais a língua de seus antepassados.
Além disso, havia muitos "gentios" (ou seja, "não-judeus") de língua grega que se aproximavam com curiosidade do culto judaico. Assim, no século III a.C, a comunidade judaica de Alexandria, no Egito, traduziu as Escrituras do hebraico para o grego, produzindo a versão conhecida como "Bíblia dos Setenta", pois setenta eruditos teriam trabalhado em sua tradução, pelo que diz a tradição.
Séculos depois, em Roma, quando o cristianismo já estava difundido no Ocidente e tinha se tornado religião de Estado, surgiu o mesmo problema. A Bíblia dos cristãos (ou pelo menos dos adeptos da Igreja "oficial") era composta pelo "Antigo Testamento" (ou seja, a velha Bíblia judaica, já traduzida para o grego) e o "Novo Testamento", uma coleção de vários textos (Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, Atos dos Apóstolos, Epístolas, Apocalipse de João) escritos em grego.
São Jerônimo (347-420) traduziu para o latim — a língua mais difundida nos territórios ocidentais do Império Romano — a Bíblia cristã. Ainda hoje, a versão por ele traduzida é conhecida com o nome de Vulgata (ou seja, "popular", "acessível", "divulgada").
São Jerônimo viu-se diante de questões complexas e perigosas de tipo filológico e teológico, como a adoção do cânone. De fato, os judeus completaram o cânone bíblico séculos após a tradução dos Setenta, excluindo vários livros já presentes na edição alexandrina (Tobias, Judite I e II, Macabeus, Baruc e Lamentações de Jeremias, Sabedoria, Eclesiástico, partes de Ester e de Daniel). No final, Jerônimo decidiu incluir em sua tradução os livros já presentes na tradução dos Setenta, embora não considerando todos eles canônicos.
A questão do cânone bíblico está em aberto até hoje. Os católicos (apenas do parecer contrário de Jerônimo) consideram sagrados todos os livros contidos na Vulgata. Os protestantes, por outro lado, consideram o Antigo Testamento como cânones bíblicos mais restritos, e, de acordo com as várias crenças, ou mantiveram livros não canônicos como "apócrifos" ou os arrancaram de suas Bíblias.
Mais ou menos nos mesmos anos, o bispo ariano Wulfila realizou um feito parecido, inventando um novo alfabeto para traduzir a Bíblia para o godo e torná-la, assim, acessível aos povos germânicos. Um século depois, São Patrício difundiu o Evangelho em língua celta, para cristianizar a Irlanda.2 Muito mais tarde, São Cirilo sistematizou o alfabeto glagolítico, antepassado do atual cirílico, para difundir sua fé entre os povos eslavos.
Com a queda do Império Romano do Ocidente, o latim foi caindo em desuso e, na Europa, nasceram as chamadas línguas "vulgares", das quais derivam nossas atuais línguas nacionais. No início do século XI, na Europa, o latim só era falado de fato por doutores e juristas, uma língua desconhecida pelas pessoas comuns.
Bíblia - heresia
Pareceria lógico, portanto, que a Igreja da época promovesse energicamente a tradução da Bíblia para as novas línguas nacionais, de modo que os fiéis pudessem, se não estudá-las (pouquíssimos sabiam ler e escrever), pelo menos ouvi-la em uma língua compreensível. Mas não. Pelo contrário, a partir do século XIII, todas as tentativas de tornar as Escrituras compreensíveis para o povo foram condenadas e seus artífices foram perseguidos. Por quê? Os hereges e aqueles que contestavam o poder da Igreja utilizavam as Sagradas Escrituras para demonstrar para o povo como a Igreja oficial havia se distanciado do mandamento evangélico originário de pobreza e humildade.
Em 1199, o papa Inocêncio III (o promotor da Cruzada contra os cátaros) lançou-se contra os leigos, homens e mulheres, que "em reuniões secretas chamaram para si o direito de expor os escritos e pregar uns aos outros".3 Em 1229, o Concilio de Toulouse, convocado no sul da França, onde haviam sido exterminadas dezenas de milhares de hereges, proibiu que os leigos possuíssem e lessem a Bíblia, especialmente aquela em língua vulgar, com exceção dos Salmos e dos passos contidos nos breviários autorizados.4
De fato, o estudo e a pregação da Bíblia eram atividades reservadas ao clero. Os que ousavam infringir o status quo corriam o risco de ser acusados de heresia e mandados para a fogueira. É possível até afirmar que, a partir dessa época, não houve mais processo contra hereges em que os réus não fossem acusados também de "tradução e leitura não autorizada dos Evangelhos".
A invenção da prensa e as novas proibições
Em meados do século XV, Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis, e a primeira obra a ser produzida com o novo sistema foi exatamente a Bíblia. "A invenção da prensa e o uso do papel contribuíram para aumentar a difusão dos livros, tornando a heresia mais difícil de ser controlada. De fato, enquanto queimar um manuscrito herético produzido através de um cansativo trabalho de cópia que durava semanas ou meses podia significar a anulação completa daquela expressão de pensamento heterodoxo específico — especialmente se, junto com o manuscrito, seu dono também acabava na fogueira —, destruir todas as cópias de uma edição feita na prensa parecia quase impossível."5
Em 1492, os bastante cristãos reis da Espanha proibiram a tradução da Bíblia em língua vulgar. No início do século XVI, uma tradução francesa do Novo Testamento fez tanto sucesso que alarmou a Faculdade de Teologia de Paris e levou o Parlamento, em 1526, a ordenar, por força de lei, a apreensão de todas as traduções bíblicas e a proibir que os tipógrafos as imprimissem no futuro.6
Quando Lutero começou a traduzir a Bíblia em alemão (e outros, animados com seu exemplo, fizeram o mesmo nas várias línguas nacionais), o alto clero católico o acusou de golpe. Eis o que escreveu uma comissão de prelados sobre o assunto, em um relatório enviado ao papa em 1553:
É preciso fazer todos os esforços possíveis para que a leitura do Evangelho ' seja permitida o mínimo possível... O pouco que se lê na missa já basta, que ler mais do que aquilo não seja permitido a quem quer que seja. Enquanto os homens se contentaram com aquele pouco, os interesses de Vossa Santidade prosperaram, mas quando se quis ler mais, começaram a ficar prejudicados.
Em suma, aquele livro [o Evangelho] foi o que, mais que qualquer outro, suscitou contra nós aqueles turbilhões e tempestades em que por pouco não nos perdemos inteiramente.
E se alguém o examinar inteira e cuidadosamente e depois comparar as instruções da Bíblia com o que se faz nas nossas igrejas, perceberá logo as divergências e verá que nossa doutrina muitas vezes é diferente e, mais ainda, contrária ao texto: o que quer que o povo entendesse, não pararia de reclamar de nós até que tudo fosse divulgado, e então nos tornaríamos objeto de desprezo e de ódio de todo o mundo.
Por isso, é preciso tirar a Bíblia da vista do povo, mas com grande cautela, para não dar ensejo a tumultos.7
Estranhamente, a Itália da época estava em condições melhores do que outros países europeus. Lá, no final do século XV, já haviam se difundido várias divulgações dos livros sagrados, antecipando-se às traduções em alemão e francês, e outras foram lançadas nas décadas seguintes, encontrando um notável sucesso de público.8
Depois da explosão do cisma luterano, as autoridades eclesiásticas adotaram um comportamento ambivalente sobre as traduções italianas das Escrituras. De um lado, toleravam-nas com reserva, tendo em vista a grande requisição dos fiéis (até os analfabetos podiam conhecer seu conteúdo, pedindo que alguém o lesse). Do outro, a posse e a leitura de uma Bíblia em língua vulgar podiam levantar suspeitas de heresia. Foi, por exemplo, o caso do pintor Riccardo Perucolo, condenado pela Inquisição, que confessara calmamente ao juiz que lia o Novo Testamento para entender melhor os sermões do padre.
As traduções do Antigo e do Novo Testamento fizeram tanto sucesso entre o povo e as mulheres de todas as condições sociais que alarmaram as autoridades eclesiásticas. "Qualquer um de nós quer as condições, seja fêmea ou macho, idiota (analfabeto) ou letrado, para entender as mui profundas questões da teologia e da escritura divina", escreveu, escandalizado, uma testemunha da época. E outro intelectual lamenta que "aos impuros, soldados, vendedores de ferro-velho, açougueiros, tintureiros, batedores de lã, pedreiros e ferradores [conferissem, junto com as mulheres, o direito de] expor a Escritura, falar de algo tão importante e ler para os prelados da Igreja" (Fragnito, 1997, p. 73).
A Bíblia na fogueira
Em 1558, o inquisidor de Veneza proibiu que os tipógrafos da cidade imprimissem traduções da Bíblia em língua vulgar.
O Índex (lista de livros que os católicos eram proibidos de ler ou possuir, salvo com permissão especial da autoridade eclesiástica), de 1559, vedava de forma peremptória que qualquer pessoa imprimisse, lesse ou possuísse uma Bíblia traduzida em qualquer língua vulgar, salvo se permitido pela Santa Inquisição de Roma. Edições posteriores do Índex revogaram pelo menos parte da proibição, que foi mantida, no entanto, por prelados mais zelosos.
Em 1571, o bispo de Cagli e Pergola proibiu que as clarissas do mosteiro de Monteluce lessem a Bíblia em italiano.
O novo Índex, de 1596, revalidou a proibição. "A Igreja tentava, com uma operação sem precedentes, suprimir qualquer traço residual do texto sagrado em italiano." (Fragnito, 1997, p. 197.) Nas décadas que se sucederam, centenas de Bíblias e Evangelhos proibidos foram recolhidos em igrejas, conventos e residências privadas, e queimados. Tratava-se não só de obras escritas por hereges e protestantes, mas também de traduções aprovadas e comentadas por eclesiásticos católicos.
Em 1605, o embaixador veneziano Francesco Contarini, defendendo a causa da Sereníssima, ameaçada por um interdito papal, afirmou que os teólogos venezianos não atacavam a Santa Sé em seus sermões, mas se limitavam a expor passagens das Escrituras. O papa Paulo V então rebateu: "Não sabeis (como) a leitura da Escritura estraga a religião católica?" (Fragnito, 1997, p. 130.)
Seria preciso esperar até 1758 para rever na Itália traduções das Sagradas Escrituras em língua vulgar.
CAPITULO 9
A Inquisição
Entre os séculos XI e XII, as penas de morte para os hereges não eram mais um fato inédito, mas a maioria do corpo eclesiástico ainda relutava em aceitar a situação. Pier Damiani (1007-1072) afirmou orgulhosamente que os santos estão dispostos a sacrificar a própria vida pela fé, mas não matam hereges.
Em 1144, Wazo, bispo de Liège, salvou a vida de alguns cátaros que a multidão queria jogar na fogueira.1 O arcebispo de Milão também protestou contra a multidão que havia linchado alguns hereges. Bernardo de Chiaravalle, que contribuiu para prender vários hereges, declarou, no entanto, que estes deveriam ser conquistados com a razão, e não com a força. Em 1162, o papa Alexandre III (1159-1181), julgando o caso de alguns cátaros, declarou que "era melhor perdoar o culpado do que tirar a vida de um inocente". Em 1165, em Narbonne, um debate público pacífico explicou a diferença entre católicos e cátaros.2 Em suma, na Igreja, observavam-se várias tendências sobre como lidar com os hereges.
Na verdade, foi o próprio "clemente" Alexandre III que deu um passo muito importante para o nascimento da futura Inquisição. Usando as deliberações do Terceiro Concilio de Latrão, ele daria aos bispos ordens expressas para investigar sobre os hereges, mesmo com base em meras suspeitas. Ao poder leigo foi reservado o papel de subordinado do braço executivo da instituição eclesiástica.3 Inocêncio III (1198-1216), com os decretos Licetheli, de 1199, e Qualiter et quando, de 1206, estabeleceu que a acusação de heresia podia ser formalizada mesmo com base em "fama pública", ou seja, nos boatos que corriam sobre dada pessoa.4
Em 1229, um concilio reunido em Toulouse, em uma região que retomara a "verdadeira fé" com as armas e o extermínio, criou oficialmente o Tribunal da Santa Inquisição. Mais tarde, o papa Gregório IX (1227-1241) tirou dos bispos o controle dos processos contra os hereges e os confiou a comissários especiais escolhidos entre dominicanos e franciscanos.5 Justamente os membros das ordens mendicantes, que haviam sido acusadas de heresia, tornaram-se os mais ferrenhos perseguidores de quem professava idéias não ortodoxas. Muitos conventos franciscanos foram dotados de prisões para os hereges, mas também para os frades culpados de rebeliões.
A partir desse movimento, a Inquisição adquiriu uma estrutura autônoma, tornando-se uma verdadeira polícia da Igreja, com tarefas de investigação e repressão. Os inquisidores tinham plenos poderes, inclusive o de depor e mandar prender eclesiásticos que defendessem hereges.
O quadro foi completado por Inocêncio IV (1243-1254), que deliberou o recurso à tortura para "promover a obra de fé de maneira mais verdadeira".6 Esta deveria ser realizada por autoridade secular, mas depois, por questões práticas, os inquisidores e seus assistentes também receberam permissão para "sujar as mãos", com a possibilidade de darem a absolvição uns aos outros.7
Além da política de repressão, a Inquisição usou também a de "colaboração". Ainda Inocêncio IV, em 1426, autorizou que fosse reduzido o período de noviciado para os cátaros convertidos que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos e se tornar inquisidores. Bonifácio VIII (1294-1303) permitiu "que no processo inquisitório contra a maldade herética se agisse de maneira simples e extrajudicial, longe da confusão dos advogados e do procedimento judiciário".8
Os territórios da cristandade foram divididos em distritos, correspondentes às Províncias das Ordens Mendicantes. Para cada distrito, era designado um inquisidor junto com um séquito de policiais, espiões e torturadores. Os tribunais da Inquisição eram itinerantes. O terreno era preparado por um pregador, que percorria as várias cidades e povoados alguns dias antes do inquisidor e concedia indulgências a todos que abjurassem a eventuais convicções heréticas e dessem o nome de outros pecadores.9 Contemporaneamente, o poder temporal também contribuiu para a luta contra as heresias. Além disso, um Estado cristão que tolerasse a heresia poderia receber excomunhão, interditos, além de correr o risco de ser alvo de uma Cruzada. Frederico Barba-Ruiva, em 1184, declarou os hereges ilegais. Em 1197, Pedro de Aragão os condenou à fogueira.
Como já lembramos, o Tratado de Meaux, de 1229, que sucedeu a Cruzada anticátaros, equiparava o crime de heresia ao de lesa-majestade, delito punível com a pena de morte. O imperador Frederico II emanou, entre 1220 e 1239, uma série de editos cada vez mais cruéis, com os quais condenou os hereges ao confisco dos bens, ao exílio, à prisão perpétua e, finalmente, à fogueira.10
Na França, a condenação à fogueira, já aplicada de fato, tornou-se lei para todos os efeitos em 1270. Na Inglaterra, só foi aprovada em 1401, com o estatuto que tinha o estranho nome de Da haeretico comburendo.11
A aliança entre trono e altar para frear um fenômeno que ameaçava tanto a autoridade civil quanto a religiosa se tornou um dos traços constitutivos da Inquisição também nos anos seguintes à sua criação. Os tribunais da Inquisição emitiam suas condenações, mas era o "braço secular" que as executava.
Portanto, uma denúncia anônima ou a suspeita de heresia já eram suficientes para ser investigado; suspeita essa que podia ser "leve", "veemente" ou "violenta", de acordo com o juiz.12 Até mesmo a prática assídua demais da oração e do jejum podia levantar suspeitas.
Diante dos tribunais da Inquisição, um suspeito era considerado culpado, a menos que conseguisse provar a própria inocência. "Para a Igreja, ser investigado equivale a ser legitimamente suspeito. O inquisidor poderá (ou melhor, deverá) investigar e julgar, partindo sempre da presunção de que o imputado — ou seja, o réu — [...] é culpado, e, conseqüentemente, deve confessar a própria culpa, o que significa que o inquisidor não deverá julgar com base no fato ou fatos provados, mas na suspeita; não no que retém dos atos, mas no que suspeita ser." (Mereu, 1200, p. 187.) Esse procedimento se contrastava bastante com o direito romano e com o germânico, de origem bárbara, ambos de tipo acusatório (ou seja, o acusador deve fornecer as provas do que afirma, e não o contrário) e baseados na presunção de inocência.
As provas e os depoimentos eram colhidos secretamente, sem o conhecimento do imputado. A construção da acusação não era nada sutil: podiam ser colhidos depoimentos de mulheres, crianças, hereges, excomungados, "arrependidos", inimigos pessoais, mentirosos declarados e criminosos. Os patrões podiam testemunhar contra os empregados, e os empregados contra os patrões. Naturalmente, também eram válidas as declarações conseguidas por meio de tortura.
O suspeito de heresia era convocado pelos inquisidores sem saber as motivações, e quando se apresentava, antes de tudo, era-lhe perguntado se tinha idéia da razão por que fora chamado. Então, as acusações eram lidas de forma sumária. O réu não tinha direito de saber quem o acusava nem de confrontar os acusadores ou ler todos os atos que lhe diziam respeito. Eventuais testemunhas de defesa corriam o risco de, por sua vez, serem acusadas de cumplicidade. Aqueles que colaboravam com os inquisidores, ajudando-os a pegar um suspeito, por exemplo, obtinham, em compensação, as mesmas indulgências que os peregrinos que iam à Terra Santa.
Os processos da Inquisição não acabavam nunca com a total absolvição. Mesmo quando não era condenado, o imputado devia abjurar a heresia da qual era acusado. Em todos os casos, a instrução contra ele podia ser aberta a qualquer momento. O mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo.
O Manual do inquisidor, de Eymerich, descreve uma série de "malícias" dos acusados nos processos: dar respostas elusivas, dizer que não sabe ou fingir-se de louco. Como diferenciar alguém verdadeiramente louco de quem finge sê-lo? Eymerich não tem dúvidas: "Para ter certeza, será preciso torturar o louco, seja ele falso ou real. Se não for louco, dificilmente continuará sua farsa se tomado de dor."13 Por lei, a tortura só podia ser infligida uma vez, mas na verdade era repetida enquanto o inquisidor achasse necessário, com a desculpa de se tratar de uma única sessão com vários "intervalos".
Se a instrução, a tortura e os debates aconteciam em segredo, a sentença e a subseqüente execução mereciam o máximo de publicidade. Como explica um eclesiástico do século XVI: "É preciso lembrar que o principal escopo do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do réu, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo... Não resta dúvida de que instruir e aterrorizar o povo com o proferimento das sentenças... seja uma boa ação."14
"As sentenças [...] eram executadas aos domingos, durante a grande missa na catedral, com a participação das autoridades civis. Os suspeitos confessavam seus erros e abjuravam publicamente antes de se submeter à penitência (nunca chamada de pena ou punição), que podia ir de tempo de reclusão à morte, passando pela flagelação ou a peregrinação sob coação.15 Aqueles que permanecessem obstinadamente fiéis a suas próprias posições ou que recaíssem na heresia eram conduzidos para fora da igreja e entregues aos magistrados com a recomendação de serem caridosos e não causarem derramamento de sangue. A suprema hipocrisia de tudo isso estava no fato de que, se o magistrado não mandasse as vítimas para a fogueira no dia seguinte, seria processado de co-autoria em heresia."16
Todavia, nem sempre as execuções públicas conseguiam concretizar sua intenção de intimidar o povo. Às vezes, obtinham até o efeito contrário. Em 1279, por exemplo, a multidão que assistia à execução da herege Olivia de Fridolfi, em Parma, ficou tão revoltada com a crueldade do espetáculo (parece que foi queimada "em fogo lento") que deu início a um tumulto. O convento dominicano vizinho, que também hospedava o Tribunal da Inquisição, foi invadido e saqueado. Os frades que lá se encontravam foram expulsos a pauladas.17
Nem os mortos escapavam da fogueira. Vários notáveis e eclesiásticos (mais adiante falaremos do caso de Wycliffe) foram declarados hereges após a morte, e seus corpos foram exumados e entregues às chamas. O primeiro ato da Inquisição espanhola medieval, por exemplo, foi a execução póstuma do conde Raymond de Forcalquier, em 1257. A prática da condenação póstuma não tinha apenas um valor simbólico: a excomunhão era retroativa e previa o confisco dos bens pertencentes aos condenados, prejudicando os herdeiros legítimos.
Em toda a história da Igreja, como já vimos, não faltaram contradições, crimes, perseguições e até guerras por motivos de fé. Mas, muitas vezes, eram decorrentes do fanatismo ou da ambição de soberanos ou pontífices, do clima histórico de outras épocas ou da histeria coletiva. Podia-se falar de "luzes e sombras" de um fenômeno complexo e articulado.
A organização da Inquisição determinou um verdadeiro salto de qualidade dentro dos aparatos burocráticos: a estrutura interna eclesiástica se moldou e adaptou para melhor realizar a obra dos que estavam encarregados de revelar e destruir os hereges. Os bispos foram superados em suas prerrogativas; a delação, a confissão extraída com tortura, o recurso a suplícios públicos e execuções capitais "para dar o exemplo" se tornaram práticas habituais e aceitas, se não abençoadas. E criticar ou obstar o trabalho dos inquisidores era considerado diabólico.
Mas, além disso, aos poucos caiu uma pesada capa sobre todas as práticas religiosas. Podia-se rezar em grupo, mas só nas formas e maneiras consentidas pela Igreja. Podia-se ler o Evangelho, mas só com uma autorização escrita. Podiam-se venerar os santos, mas apenas os "oficiais"; os mortos com "cheiro de santo", não reconhecidos pela Igreja, podiam ser exumados e queimados para evitar o nascimento de cultos populares incontroláveis.18
O sexo era pecado, mesmo no seio do matrimônio, mas o cristão casado que fizesse voto de castidade poderia ser suspeito de heresia. Em suma, tudo que não era proibido era obrigatório. Ou melhor, às vezes o proibido e o obrigatório coincidiam.
A Inquisição medieval chegou ao ápice de sua atividade na metade do século XIV, para chegar a uma lenta decadência nos 150 anos sucessivos, em especial na Itália.19 Os motivos do declínio residiam paradoxalmente no sucesso de sua obra, mas também na vulnerabilidade das nascentes monarquias nacionais a qualquer forma de interferência externa.
A história que causou o cisma de Lutero, por exemplo, é tratada por canais diferentes dos inquisitoriais. Só depois da difusão da Reforma em toda a Europa, a Cúria romana relançou a Inquisição, com a intenção de impedir a difusão das idéias protestantes em todos os territórios que ainda permaneciam sob o controle da Santa Sé.
A Inquisição espanhola
A Inquisição espanhola foi retomada por volta de 1482, por iniciativa do rei Ferdinando. Sua principal característica era a criação de um organismo central chamado "Conselho da Suprema e Geral Inquisição", que tinha a tarefa de organizar e coordenar os vários tribunais distritais, rever os processos presididos pelas cortes locais, julgar pessoalmente os casos mais graves e investigar os próprios inquisidores.
Os membros da "Suprema" eram nomeados formalmente pelo papa, mas quem os escolhia e dirigia era o rei da Espanha. O próprio nome de "Conselho", dado ao novo organismo, já o caracteriza: na época, os conselhos eram órgãos do governo que equivaliam aos nossos ministérios (existia um Conselho de Estado, um da Economia etc.). O primeiro presidente da "Suprema", Diego Espinoza, também era presidente do Conselho de Castela.20 E ainda mais políticas do que religiosas eram as finalidades da nova Inquisição: "O motivo (aparente) de defesa da fé nos reinos espanhóis do século XVI estava perfeitamente conectado à questão (real e verdadeira) da reconstrução da unidade política e social do território, dividido em dois reinos (Castela e Aragão), perturbado pela presença invasora muçulmana (que irá se encerrar com a retomada de Granada), transtornado com as guerras civis financiadas pelos nobres e falido, por causa de tudo isso, sob o ponto de vista econômico."21 A contaminação mútua entre Igreja e Estado e o uso da religião como instrumentum regni se tornaram cada vez mais evidentes.
O mais famoso inquisidor espanhol foi, sem dúvida, o dominicano Tomás de Torquemada (1420-1498), filho de judeus convertidos, homem de vida exemplar e irrepreensível cujo nome parecia já assinalar um destino (em espanhol, torque significa "enforcado", e quemada, "queimada"). O rei Ferdinando queria a Inquisição, mas foi Torquemada que a organizou materialmente, instituindo um a um os tribunais das várias províncias do reino e redigindo um verdadeiro código para disciplinas à ação.
O dominicano, no entanto, encontrou oposições violentas à sua obra. Muitas vezes, nas cidades por que passava, autoridades e cidadãos se recusavam a acolhê-lo, e a população o insultava durante seus sermões públicos. Foi, por exemplo, expulso pela população de Barcelona e rejeitado das Cortes (conselhos municipais) de Valência e Aragão.
Apesar desses incidentes de percurso, Torquemada mandou mais de dez mil hereges à fogueira, a Inquisição se ramificou por toda a Espanha e as "cortes" de itinerantes se tornaram estáveis: tribunais em todos os sentidos.
Como já foi dito, ninguém estava a salvo das investigações da Inquisição. Com certeza não os nobres, para os quais estavam previstas punições específicas, como a proibição de se vestir com elegância, andar a cavalo e portar armas. Nem os próprios inquisidores, contra os quais até pessoas por eles mesmos condenadas podiam testemunhar. Qualquer um poderia utilizar a estrutura da Inquisição para atingir eventuais rivais, mas também podia ser vítima, em uma espécie de vingança sem fim. O inquisidor de Córdoba, Luis de Capones, por exemplo, viu-se acusado de 106 delitos. Essa situação criou um clima de medo e suspeitas gerais, em que um desconfiava do outro, dando vantagem ao poder do rei, único árbitro de qualquer processo.
Ao contrário do que se poderia pensar, a Inquisição espanhola tratou muito pouco das ditas "bruxas". O episódio mais significativo de perseguição antifeminista dizia respeito às "ilusas", clarividentes itinerantes que "se faziam passar por santas" e que eram punidas com o açoite nas cidades em que pregavam.
Os processos por bruxaria muitas vezes se concluíam com o que hoje chamamos de declaração de doença mental. Talvez tanta "benevolência" escondesse uma subestimação da mulher, tão desprezada pela sociedade espanhola da época que não era considerada um perigo real. "Assim, o Santo Ofício espanhol fez da bruxa uma variedade de 'ilusa', não mais temida e poderosa, mas louca e burra [...] e contribui habilmente para fazer que as mulheres sofram de afasia histórica." (Benassar, 2005, p. 209.) Ou talvez existissem na sociedade espanhola da época outras categorias de pessoas que já desempenhavam muito bem o papel de bode expiatório no lugar das bruxas, como judeus convertidos e mouriscos, os muçulmanos convertidos.
Os judeus convertidos e os mouriscos
Grande parte do território espanhol fora ocupada por muito tempo pelos emirados muçulmanos, e apenas em 1492 o domínio cristão se estendeu por toda a Península Ibérica. Dentro dos limites dos reinos cristãos, havia não só uma quantidade significativa de muçulmanos, mas também uma grande comunidade judaica, muito florescente do ponto de vista econômico e cultural. Na verdade, os regimes islâmicos da época tinham por hábito dar aos judeus condições melhores do que as dos cristãos. O sucesso econômico, o espírito empreendedor e o prestígio de muitos expoentes da comunidade judaica (que se tornaram conselheiros tanto nas cortes cristãs quanto nas muçulmanas) acabaram atraindo contra eles o ódio da povo e a inveja da nobreza.22
Por volta do final de século XIV, a hostilidade popular contra os judeus (chamados pejorativamente de "marranos", "porcos") se manifestou através de verdadeiros pogrom (massacres indiscriminados). Muitos se salvaram fugindo, outros se convertendo e praticando sua verdadeira religião às escondidas. Os que ousavam fazê-lo viviam em um estado de ameaça constante, assim como os cristãos, que rejeitavam publicamente a própria religião, mas continuavam a celebrar seus ritos em segredo: eram acusados de crime de apostasia e muitas vezes eram punidos com a morte.
Em 1391, em Sevilha, quatro mil judeus foram mortos em uma única noite. Em 1412, houve vários casos de expulsão, alguns executados por "convertidos" condenados pelo pontífice Nicolau V. Em 1477, dois judeus convertidos foram queimados na fogueira em Llerena. Uma investigação conduzida à época por um dominicano apurou que quase todos os judeus continuavam praticando sua religião escondidos. Essa descoberta foi o pretexto para novas perseguições anti-semitas e para a volta da Inquisição a Castela.
Em 1481, foi celebrado o primeiro auto-de-fé, no qual morreram seis conhecidos convertidos. O auto-de-fé era uma condenação à fogueira executada em público e o rito jurídico mais impressionante e solene usado pela Inquisição espanhola. O condenado era arrastado por entre a multidão com os cabelos raspados e vestido com sacos, era feita uma oração por ele e a sentença era cumprida. As imagens nas vestes espelhavam a pena: uma cruz de Santo André, se o réu houvesse se arrependido a tempo de evitar o suplício; meia cruz, se também tivesse recebido uma multa; chamas se, arrependido in extremis, devesse ser estrangulado e depois queimado; e diabos e dragões entre chamas se não tivesse renegado a própria posição. Quem confessava recebia penas inferiores, como peregrinações, penas pecuniárias, açoite em público ou a obrigação de costurar cruzes em suas roupas. Os falsos acusadores eram obrigados a costurar nas roupas duas línguas em tecido vermelho.
Em 1482, Xisto IV posicionou-se contra alguns excessos da Inquisição espanhola, mas seus protestos permaneceram como palavras ao vento. Os dominicanos haviam se tornado conselheiros da corte, conquistando um papel muito parecido com o desempenhado pelos judeus em seu tempo. Em 1485, alguns judeus convertidos assassinaram o inquisidor Pedro Arbués, o que causou um recrudescimento da repressão. Em Saragoza, no período entre 1486 e 1490, 307 pessoas morreram na fogueira. Em Maiorca, nos anos entre 1488 e 1499, foram executadas 129 sentenças de morte. Em Barcelona, em 1491, foram cominadas 129 sentenças, das quais 126 em contumácia.
Em 31 de dezembro de 1492, um edito real submeteu os judeus a uma escolha drástica: o exílio ou a conversão. O provimento atingiu também um dos patrocinadores da expedição de Cristóvão Colombo.
Tratamento similar foi reservado aos mouriscos, os muçulmanos convertidos. Em 1492, um tratado firmado entre o reino cristão e o último soberano muçulmano de Granada previa, em troca de sua retirada, a garantia de liberdade de culto para os islâmicos. Dez anos depois, no entanto, a rainha Isabel de Castela submeteu os muçulmanos ao mesmo dilema dos judeus: ou se converte ou vai embora. Naturalmente, muitos árabes resolveram se converter e sempre foram suspeitos de falsa conversão.
Em Granada, entre 1550 e 1580,780 mouriscos foram condenados a várias penas. Em Hornachos (povoado de sete mil habitantes), no biênio 1590-1592, foram julgados 133 processos. Em geral, os muçulmanos convertidos foram condenados a penas relativamente mais leves do que os judeus. Eram na maioria confiscos, multas ou decretos de expulsão. No geral, foi uma guerra étnica ferrenha que expropriou bens de árabes e judeus abastados.
A Inquisição romana
Em 1542, o papa Paulo III (1534-1549), com a demonstração de eficácia da Inquisição espanhola, decidiu imitá-la para impedir a difusão das doutrinas protestantes.
Foram instituídos tribunais territoriais com jurisdição exclusiva para todos os casos de heresia. Acima deles, foi fundado um organismo central com sede em Roma composto de sete cardeais e sob o controle direto do pontífice, que participava de todas as sessões. O organismo podia investigar também outros prelados e tinha jurisdição em todo o território cristão, mas na verdade tratou principalmente das questões italianas.
O papa Júlio III (1550-1555) mandou queimar as cópias do Talmude (um dos textos sagrados do judaísmo. Ao contrário da Tora, o Talmude só é reconhecido pelos judeus e consiste em uma coletânea de discussões ocorridas entre sábios e mestres — rabinos — sobre os significados e as aplicações dos passos da Tora) em mãos dos judeus de Roma23 e incluiu a blasfêmia entre os crimes investigados pela Inquisição. Os plebeus blasfemos eram punidos com a perfuração da língua, o açoite e os remos por três anos. Os blasfemos nobres, ao contrário, recebiam uma multa, perdiam o título, dignidade e benefícios; eram proibidos de fazer testamento e receber herança; eram considerados incapazes de testemunhar; e exilados de Roma por três anos.
Paulo IV (1555-1559) tornou a propor o crime de "heresia simoníaca", que consistia também em ordenar menores de idade em troca de dinheiro, e utilizou a inquisição para mandar prender cardeais adversários seus. Pio IV (1559-1565) mandou absolver os cardeais presos por seu antecessor por decreto inquisitorial e ordenou a prisão de cardeais da facção contrária, junto com seus colaboradores e familiares. Em seguida, os novos prelados presos foram condenados à morte, naturalmente, após um processo.2'
Paulo IV, Pio IV e seu sucessor, Pio V (1565-1572), formaram o que os historiadores chamam de "trindade do terror, não porque eram especialmente 'maus', mas porque utilizaram com muito zelo todos os expedientes necessários para lutar sua batalha sem que nenhum golpe fosse excluído. De Pio V, será dito que o zelo o fez ser proclamado santo [...] A santidade faz fronteira com os métodos policiais, que se torna um mérito" (Mereu, 2000, p. 84).
Gregório XIII (1572-1585), ao contrário, conquistou junto aos biógrafos a fama de pontífice "moderado", por ter permitido que os condenados à fogueira usassem uma roupa comum, no lugar daquela com as chamas que eram obrigados a usar.
Xisto V (1585-1590) dividiu a administração pontifícia em 15 congregações, cuja principal era a da Santa Inquisição da Herética Pravidade, diretamente presidida por ele.
Homossexualidade
O papa Júlio III (1550-1555), amante dos banquetes, das festas, da caça e das apresentações teatrais, ordenou cardeal um rapaz de 17 anos, que os escritos da época definiam pudicamente como "desviado". A coisa provocou protestos veementes de alguns altos prelados.25
O gesto de Júlio III certamente foi a gota d’água, principalmente por ter ocorrido durante o Concilio de Trento, que tornou ainda mais rígida a moral sexual da Igreja, mas é fato que, acerca da homossexualidade, havia, se não doutrinas, ao menos práticas diferentes.
É preciso rever a cronologia do pecado da sodomia. Os conceitos do que era "natural" ou "contra a natureza" sempre mudou de acordo com a época e o lugar. O que parecia "natural" em uma civilização era condenado por outra e vice-versa.
Segundo o mito grego exposto por Platão no Simpósio, em sua origem, a humanidade era formada por três tipos de seres completos: o primeiro era composto por dois homens fundidos em um só; o segundo, por duas mulheres; e o terceiro, por um casal de homem e mulher. Para castigá-los, os deuses dividiram esses seres superiores, dando vida à humanidade atual, formada por homens e mulheres que vagam por aí incompletos em uma eterna busca pela "cara-metade". De acordo com essa visão da natureza humana, portanto, tanto as escolhas heterossexuais quanto as homossexuais são completamente legítimas e "naturais". A rigor, o único comportamento que vai "contra a natureza" é o celibato.
O cristianismo tirou seu desprezo pela homossexualidade do judaísmo. A cultura judaica (assim como a grega e a romana) também era resultado de uma sociedade patriarcal e guerreira, hostil às mulheres, consideradas inferiores, e à feminilidade.
O homossexual, que se comportava "como uma mulher", era digno de profundo desprezo e atentava contra a ordem do Universo desejada pelo próprio Deus ("Deus criou o homem à sua imagem [...] criou-os macho e fêmea.")26 Além disso, desperdiçar o sêmen para fins diferentes ao reprodutivo era considerado um grave pecado, como mostra o episódio de Onan.
São Paulo, que considerava superadas as rigorosas proibições alimentares judaicas, levou para o cristianismo os preceitos contra as mulheres e os "sodomitas". Quando, no final do século IV, o cristianismo se tornou a única religião de Estado do Império Romano, um dos primeiros efeitos da nova época foi uma lei de 390 que previa a morte na fogueira para quem praticasse o homossexualismo.27
O imperador do Oriente, Justiniano, mandou executar publicamente dois bispos homossexuais. Mas a perseguição aos "sodomitas" só se acirrou quando a Igreja Católica, após o século XI, reafirmou com vigor o princípio do celibato eclesiástico. Era uma tentativa de assexualizar as relações entre os homens de Deus em uma sociedade (a Igreja) totalmente masculina. Mas se a Igreja tivesse imposto o celibato sem punir a sodomia, os fiéis teriam entendido esse ato como a demonstração de que a instituição era composta de misóginos homossexuais. De todo modo, por séculos, diferentes orientações conviveram juntas dentro da Igreja.
Por outro lado, o penitencial de Gregório III (século VIII) impunha uma penitência de 160 dias para o lesbianismo, de um ano para a sodomia e de três anos para o padre que fosse à caça.28 No século XI, duas tendências opostas se confrontam sobre esse argumento. De um lado, São Pedro Damião criticou os clérigos que se entregavam às práticas homossexuais e lutou (inutilmente) para que fossem banidos da Igreja. O abade Aelred de Rievaux, por outro lado, tentou defender o amor entre os homens (ainda que, no final, tenha recomendado a castidade).
A moral sexual da Igreja tomou uma direção mais clara com o Concilio de Latrão de 1179, que determinou que os religiosos homossexuais fossem reduzidos ao estado leigo ou à reclusão no mosteiro, para os clérigos, e à excomunhão, para os leigos. De todo modo, nunca houve uma Cruzada contra os homossexuais nem uma perseguição sistemática por parte da Inquisição, como aconteceu com as heresias. A Igreja, na verdade, nunca reconheceu os homossexuais como um grupo, limitando-se a condenar os comportamentos, mas pedindo aos governos "leigos" que os punissem.
A partir do século XIII, vários países europeus adotaram legislações muito severas contra as práticas homossexuais. Por exemplo, na França, um código previa a fogueira para quem reincidisse no crime de sodomia, pena que atingia também as mulheres. E parece que o termo "finocchio", que em italiano significa funcho e é usado pejorativamente para designar homossexuais, deriva do costume de queimar plantas aromáticas nas fogueiras, para encobrir o fedor da carne. O confisco de bens em favor do soberano era uma das penas acessórias, o que, em algumas épocas, encorajava os monarcas a fazer de tudo para combater o homossexualismo.
Muitas vezes, o crime de sodomia era colocado no mesmo caldeirão que os de heresia e bruxaria. Por essa razão, não é simples quantificar o número exato de vítimas.
Um estudo recente29 sobre processos por sodomia julgados em Bolonha no século XVI, revelou dados muito interessantes. De oito processos de sodomia contra 11 acusados, cinco eram eclesiásticos. Dos oito acusados leigos, três foram condenados à morte (por enforcamento ou decapitação), cinco foram banidos pelo resto da vida. Dos cinco eclesiásticos, apenas um foi confinado no convento por três anos. Para os outros quatro, o processo não seguiu em frente ou foi encerrado sem condenação. Não se podia admitir que no interior do clero, tão rígido na hora de regulamentar os costumes sexuais dos outros, houvesse "sodomitas". Além disso, se o poder sagrado do clero se baseava na castidade, colocá-la em questão ameaçava sua legitimidade.
CAPÍTULO 10
A caça às bruxas
Dor sem conselho, saco sem fundo, febre contínua que nunca termina, besta insaciável, folha levada pelo vento, bastão vazio, louca desvairada, mal sem nenhum bem, em casa um demônio, na cama uma vadia, na horta uma cabra, imagem do Diabo.
Em geral, falar de caça às bruxas significa voltar à época medieval. A perseguição em massa e os massacres, no entanto, continuaram muito depois desse período. As grandes ondas repressivas contra as bruxas e os hereges aconteceram, na verdade, de 1480 a 1520, período ao qual sucederam uma relativa pausa e uma nova onda de perseguições de 1580 a 1670.
Aquela que na Idade Média fora uma guerra aberta contra populações inteiras que haviam escolhido uma vida comunitária (como os cátaros e dulcinistas) se transformou em uma perseguição de estilo policial em larga escala destinada a extirpar a erva daninha da desobediência,
A legislação cristã logo passou a cuidar da bruxaria, associando-a ao paganismo e considerando-a uma forma de heresia. "A motivação era tipicamente teológica: quem usa as artes da magia rejeita o poder livre e libertador do Deus de Jesus, enquanto tenta estabelecer uma espécie de domínio sobre realidades terrenas [e] sobre a vida humana em si." (Benazzi, D'Amico, 1998, p. 258-9.)
Os primeiros mandantes do fenômeno eram muito céticos acerca da real existência dos poderes sobrenaturais das bruxas e magos. O Cânone Episcopal, um documento eclesiástico do século XIX, diz: "Não nos esqueçamos das mulheres desventuradas que se ofereceram a Satanás, sessões de encantamento e fantasmas de origem diabólica, afirmaram terem montado animais durante a noite junto à deusa paga Diana e fizeram isso com várias outras mulheres... Muitas se deixaram enganar por essas coisas e acham que tudo é verdade, afastando-se da verdadeira fé [...] Mas quem pode ser tão tolo a ponto de crer que tudo isso acontece [...] e corporalmente?"2
Enfim, quem praticava bruxaria cometia um pegado grave, mas as artes mágicas em si não representavam um perigo.
A partir do século XI e até a metade do XIII, a atenção da Igreja se concentrava mais nas heresias, como as dos cátaros e valdenses, e o mundo do ocultismo foi, em parte, ignorado.
Bruxaria e heresia
As coisas começaram a mudar depois do nascimento da Inquisição. O deslocamento da perspectiva entre as primeiras e brandas perseguições e as sucessivas, mais sistemáticas, é fundamental. Segundo essa nova visão, na verdade, o Demônio se torna um ser físico, que pode possuir e ter aliados na Terra, que tem um exército próprio e uma Igreja. A batalha entre o bem e o mal se concretiza transformando-se em uma guerra em sentido físico, além do metafísico.
Em 1258, Alexandre IV condenou as práticas mágicas. Em 1320, João XXII encarregou os inquisidores de Toulouse de intervir contra os bruxos. Em 1436, o juiz Claude Tholosan declarou que os magos e bruxas não tinham direito a indulgências da Igreja e considerou suspeitas até práticas populares aparentemente inócuas, como a colheita das plantas durante a festa de Santo Antônio. Em 1451, Nicolau V exortou os inquisidores a punir os adivinhos mesmo quando não houvesse uma condição evidente de heresia: a Inquisição podia, assim, atingir também a superstição popular.3 Por volta do final do século XV, o bispo de Paris determinou a excomunhão a qualquer um que lesse as mãos.
Durante todos os séculos XIV e XV, sucederam-se, com preocupante aumento, vários tratados sobre bruxaria e intervenções de juristas sobre o assunto. Será dito que, no instante em que aceitam ter relações com o Demônio, as bruxas se mancham com o crime de heresia. Ou melhor, elas chegam a constituir uma verdadeira seita que luta pela destruição da Igreja.
Aos hereges também são atribuídos malefícios e pactos diabólicos. Os Templários foram acusados de heresia, bruxaria e de adoração a um ídolo chamado Bafometo. Os valdenses de Arras, processados durante o século XV, confessaram, sob tortura, a filiação a uma seita de adoradores do diabo. Eles iam voando aos sabás, onde abjuravam a religião cristã e blasfemavam contra Deus, a Trindade e Nossa Senhora.4
Os cátaros foram acusados de ter o nome derivado de Cato, demônio que adoravam.
O objetivo de tais comparações é claro: se as bruxas eram por definição hereges, então hereges também eram os magos. Assim, bruxas e hereges constituíam um único grande inimigo comum do poder espiritual e do civil. Sem contar que o rótulo de "mago" contribuía para queimar a terra em volta dos pregadores heréticos e tornava mais fácil atiçar o ódio do povo contra eles.
A bula papal Summis desiderante affectibus, promulgada por Inocêncio VIII, em 5 de dezembro de 1484, marcou a data de início daquilo que se tornou um verdadeiro extermínio em massa de mulheres e homens acusados de bruxaria. Nesse documento, o papa, alarmado pelas notícias provenientes do norte da Alemanha, onde parecia que os cultos satânicos e a bruxaria tinham muitos adeptos, dava aos inquisidores plenos poderes para extirpar o fenômeno.5
Dois anos depois, foi o poder leigo que interveio. O imperador Maximiliano da Áustria emanou uma ordem na qual convidava todos os bons católicos a ajudar os inquisidores em sua obra.
O Martelo das feiticeiras
No mesmo ano, saiu o Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras), um verdadeiro tratado reproduzido através da nova técnica da prensa inventada por Gutenberg, que descrevia por completo o mundo das bruxas, seus malefícios, como reconhecê-las e como conduzir os interrogatórios. A tese do Malleus era que a bruxaria existia e que era uma forma de heresia, assim como negar sua existência era um comportamento herético. Seus autores, Krämer (vulgo Institoris) e Spengler, são dois teólogos dominicanos. Krämer, em especial, era um conhecido e incansável inquisidor internacional, famoso por perseguir os valdenses, hussitas e as bruxas. Sua conduta na Alemanha meridional atraiu para si o desprezo dos eclesiásticos locais e o ódio da população, que chegou a um passo da revolta. Ele atuou também na diocese de Bressanone, mas o bispo Georg Golser o afastou em razão de sua crueldade e arbitrariedade, que mais uma vez contribuíram para atrair a ira do povo. O Martelo das feiticeiras, que foi impresso até 1669, tornou-se um verdadeiro best-seller na época.
Muitos outros "caçadores de bruxas" escreveram dissertações sobre o assunto, dentre os quais Jean Bodin, obstinado inquisidor e perseguidor que, por sua vez, foi acusado de heresia, e Henry Boguet, inquisidor suíço que entrou para a história por pedir a condenação à morte de algumas crianças acusadas de bruxaria.6
As áreas mais atingidas pela caça às bruxas foram Artois, Flandres, Hinaut, Cambrésis, Brabante, Luxemburgo, Lorena, Renânia, as regiões do sul da Alemanha, a Borgonha, os Países Bascos e o Piemonte.7
De certo ponto de vista, a caça às bruxas tornou-se uma gigantesca guerra do poder masculino contra as mulheres e contra as últimas formas de matriarcado.
Por exemplo, foi tirado do gênero feminino o "poder" de curar os males e assistir no parto, entregando-os ao monopólio da casta masculina dos médicos. O Malleus Maleficarum afirma claramente que "ninguém prejudicou mais a Igreja do que as parreiras". Não é preciso se esforçar muito para encontrar na literatura, na teologia, mas também nos tratados de medicina da época, afirmações de forte desprezo, se não de ódio, às mulheres. Um exemplo de Laurent Joubert, médico do século XVI, afirma: "Por si mesmo indiferente é o sêmen... este muitas vezes degenera na fêmea por causa da frieza e da umidade... e pela abundante presença de sangue menstrual cru e indigesto."8 Por outro lado, Tommaso Campanella escreveu: "As mulherzinhas, que consomem um péssimo alimento, ou pelo sangue menstrual, ou pelos excrementos retidos no útero tomado de vapores da concepção, acabam perturbadas e realizando atos para receberem os demônios."9
Homens e personalidades de alta estirpe também foram condenados à fogueira, mas isso não impede que a grande maioria das vítimas fosse de mulheres pobres, muitas vezes à margem da sociedade. Às vezes, a figura da bruxa parteira/curandeira se confundia com a da prostituta. Então, reaparecia um personagem social de grande poder que ainda possuía a linfa das sacerdotisas dos cultos matriarcais. Não sabemos quanto disso era real e quanto era uma fantasia dos inquisidores. É verdade, no entanto, que, em algumas localidades (por exemplo, nos territórios eslavos), os cultos matriarcais que remontavam a quatro, cinco mil anos antes de Cristo sobreviveram por muito tempo, até depois do século XVII, às vezes camuflados de ritos cristãos, às vezes praticados pelo povo às escondidas — como aconteceu por muito tempo com os ritos matriarcais dos escravos negros nas Américas.
A louca engrenagem da Inquisição
No final do século XV, a Inquisição já era uma máquina bem lubrificada e rodada para eliminar os hereges. O sucesso e a carreira dos inquisidores dependiam do número de processos julgados e das condenações executadas. Também se acreditava que o povo devia se sentir constantemente ameaçado pela visão dos castigos exemplares, para não ousar sair do recinto da verdadeira fé. As fogueiras e as mortes em praça pública serviam de exemplo.
Por sorte, não faltaram pessoas que se opuseram ao clima da época, como o filósofo e matemático Nicolau de Cusa. Em 1457, ele julgou, na qualidade de bispo de Bressanone, o caso de duas mulheres que haviam confessado ter sido transportadas a um sabá por uma misteriosa mulher chamada Richella, após terem abandonado a fé cristã e terem visto homens devorando crianças não batizadas.
De Cusa encerrou o caso como se fosse um sonho e condenou as mulheres a uma simples penitência. A crença na bruxaria, de acordo com o raciocínio do bispo, alimentava nas pessoas o medo do diabo, a ponto de fazê-las acreditar que este fosse mais poderoso que o próprio Deus.10
Em 1489, Urlich Müller declarou que as bruxas não eram nada além de mulheres pobres dominadas por uma ilusão diabólica. No início do século XVI, o frei Samuel De Cassinis chegou a acusar os inquisidores de heresia, pois acreditavam nos sabás, e lutou para que os tribunais devolvessem aos parentes das bruxas executadas os bens que haviam confiscado. O humanista Andréa Alciato, em 1544, afirmou a inutilidade da perseguição às bruxas. Em 1553, o médico Johann Weyer afirmou que as bruxas eram apenas pobres mulheres vítimas de alucinações. Por causa dessa teoria, foi atacado violentamente pelos teólogos católicos e protestantes.11 Em 1594, Reginald Scot publicou um livro contra os excessos cometidos durante a caça às bruxas. As cópias do volume foram queimadas por ordem do rei da Escócia.
No início do século XVII, o renano Cornelius Loos tentou inutilmente mandar imprimir uma obra em que acabava com a fantasia dos sabás, das cavalgadas noturnas e das negociações som o demônio. Ele foi o primeiro a identificar nas bruxas uma cultura alternativa à dominante e muito arraigada entre os pobres. Por suas idéias, foi condenado à fogueira, mas morreu de peste na prisão antes da execução.
Em 1631, o jesuíta alemão Friedrich von Spee, em seu tratado Cautio Criminalis, seu de processibus contra sagas, afirmou: "Envergonho-me de confessar que, principalmente na Alemanha, entre católicos e o povo, estão presentes superstições inacreditáveis [...] que [...] recaem mais sobre as pobres mulheres. [...] Com a tortura, um inquisidor conseguiria fazer até o papa confessar-se bruxo."12 Todavia, até a metade do século XVII, esses tipos de manifestações eram sempre isolados.
O processo
O processo por bruxaria acontecia paralelamente ao de heresia e podia ser instruído com base em uma mera suspeita (ou simplesmente "aparecer no sonho" de outra pessoa). As delações anônimas também valiam. Nas igrejas, chegou a ser colocada uma urna para as denúncias, parecida com a das ofertas.
Assim que a audiência começava, a suposta bruxa era convidada a confessar e abjurar o demônio; se não o fizesse, era torturada. Entre as provas da possessão diabólica estava a presença de sinais específicos no corpo da bruxa. Podia ser uma mancha na pele, uma verruga, um calo ou qualquer "imperfeição". Aquela era a marca deixada pelo Diabo. Outro elemento de avaliação era o Ordálio. No caso de suspeita, ver a ré chorando ou lacrimejando já bastava para os juízes (acreditava-se que as bruxas não podiam chorar, mas que o Diabo podia simular as lágrimas). Nos casos mais graves, recorria-se à prova da água: a acusada (muitas vezes amarrada a uma grande pedra) era jogada na água. Se afundasse, era inocente. Se, ao contrário, boiasse, queria dizer que era culpada, sendo protegida por um sortilégio do demônio. Os interrogatórios eram realizados em meio a perguntas e armadilhas criadas especialmente para confundir o imputado. Por exemplo, diante da pergunta "Você acredita em bruxas?", responder "não" significava negar a própria existência do Diabo e, assim, assumir o crime de heresia. Responder "sim" ocasionava outras perguntas dos juízes, como: "Quantas bruxas você conhece?" e assim por diante.
As bruxas, por sua vez, espontaneamente ou sob tortura, muitas vezes acusavam outras pessoas que supostamente teriam participado com elas dos sabás e que acabaram processadas. Às vezes, as acusadas, por vingança, davam os nomes dos próprios acusadores, criando, assim, uma lúgubre reação em cadeia que podia durar anos e envolver centenas de pessoas.
Mas o processo por bruxaria tinha uma diferença muito importante em relação àquele por heresia. O herege que confessasse e abjurasse imediatamente diante dos juízes podia ser absolvido logo ou, no máximo, receber uma leve punição (constando dos autos que, se fosse novamente processado, a morte seria certa). A bruxa que confessasse "espontaneamente" seria absolvida da acusação de heresia, mas os juízes mandariam seu caso ao tribunal "leigo" para que sofresse os efeitos "civis" de suas ações.13
As penas por bruxaria variavam de castigos corporais e períodos de exílio a, nos casos mais graves, prisão perpétua ou a fogueira. Às vezes, como gesto de clemência, a bruxa era estrangulada antes de ser queimada. Às vezes, eram queimados junto com a bruxa os autos do processo, como ato de purificação. Por isso, também, não há como documentar o número exato de bruxas executadas, apenas aproximadamente.
As estimativas mais prudentes dão, para o período entre o final do século XIV e o final do século XVII, um balanço que oscila entre 70 e 320 mil vítimas. Mas há quem fale de milhões de mortos.14 A estes, acrescentem-se as pessoas mortas, talvez anos depois, em conseqüência das torturas sofridas; as mortas de fome por causa do exílio ou por terem sido isoladas da sociedade após serem "marcadas" como bruxas; e os familiares dos "hereges bruxos", condenados à miséria em conseqüência do confisco dos bens. E sabe-se lá em quantos povoados pequenos e isolados, após uma colheita ruim ou a morte de animais, os próprios habitantes processaram e mataram "com as próprias mãos" uma suposta bruxa, sem que tenhamos qualquer testemunho por escrito.
A tortura
A primeira tortura era psicológica: a suposta bruxa era levada à sala de interrogatório, onde eram expostos todos os instrumentos de suplício. Em seguida, era despida diante do magistrado, depilada e coberta com um lençol.
A tortura mais branda eram as chibatadas. Depois havia a "corda": os braços eram amarrados atrás por uma corda presa à polé; a vítima era içada, provocando o deslocamento do ombro. Ainda mais cruel que a polé era o cavalo de estiramento, um pedaço de madeira triangular com a ponta virada para cima: "O corpo da torturada era deitado e amarrado apertado à ponta, que lhe penetrava na carne, do pescoço aos glúteos. Então em suas mãos e pernas eram amarrados pesos cada vez mais pesados; ou cordas ligadas a uma roda que girava com a ajuda de uma manivela. Puxando as cordas, todo o corpo era esticado, e os membros, após algumas horas, soltavam-se do corpo."'5 Outra prática era a de acender uma fogueira sob os pés da vítima. E havia as tenazes, cujo uso deixamos a cargo da sua imaginação, e muitos outros instrumentos.
Teoricamente, a tortura deveria durar um tempo limitado, e um médico supervisionava as operações para garantir que o imputado não corresse risco de vida ou sofresse danos graves à saúde. Mas, na verdade, o suplício continuava ao sabor do inquisidor, e não eram raros os casos de mulheres mortas ou estropiadas de forma irreversível em razão das sevícias sofridas.
UMA BREVE LISTA
Fazemos aqui uma lista de alguns dos maiores processos por bruxaria que talvez possam dar uma idéia de como devia ser o dia-a-dia na época da caça às bruxas.
Como, 1416: ao longo do ano, trezentas bruxas foram queimadas na fogueira.
Sion, 1420: setecentos supostos adeptos de uma seita que adorava o diabo, em forma de urso ou bode, foram processados. Deles, cem confessaram sob tortura e foram queimados vivos.
Rouen, 1430: Joana d'Arc morre na fogueira por heresia e bruxaria. No seu caso, são evidentes as motivações políticas da sentença.
Como, 1484: sessenta bruxas são queimadas na fogueira.
Mirandola, 1522-1523: o processo "de Mirandola" atinge com firmeza centenas de cidadãos, a ponto de ser lembrado como o "pogrom de Mirandola". A violência com que os acusados foram tratados foi tal que fez os cidadãos que assistiam à execução exclamarem: "Não é justo que esses homens sejam mortos de maneira tão cruel."
Genebra, 1513: em três meses, quinhentas bruxas foram queimadas.
Como, 1514: trezentas bruxas foram justiçadas como "reincidentes ou impenitentes". Fontes da época falam de uma média de cem bruxas executadas por ano também nos anos sucessivos, a ponto de o inquisidor ser repreendido pelo excesso de zelo.
Noruega, 1544: na luterana Dinamarca, os católicos foram equiparados às bruxas. Só neste ano, 52 pessoas foram executadas.
Languedoc (França), 1557: o parlamento local mandou queimar quatrocentas pessoas.
Paris, 1565-1640:1.119 pessoas foram julgadas em 75 anos. Foram executadas cem sentenças de morte, quase sempre de pessoas abastadas.
Genf, 1571: 21 mulheres foram queimadas em maio.
Lorena, 1576-1606: o juiz Nicolas Remy se vangloriou de ter mandado à fogueira entre duas mil e três mil bruxas no período (uma média de cerca de duas por semana).
Bordeaux, 1577: quatrocentas bruxas são mandadas à morte pela corte soberana de Bordeaux.
Alemanha, 1560 (aproximadamente): os príncipes protestantes processaram, torturaram e condenaram à fogueira algumas centenas de bruxas.
Inglaterra, 1560-1600: sob o reinado de Elisabete I, 314 vítimas foram queimadas na fogueira, na maioria mulheres.
Treviri, 1587-1593: sob as ordens do arcebispo-eleitor Johann Von Schöneburg, ligado aos jesuítas, foram queimadas vivas 368 bruxas em 22 povoados. Em dois deles, apenas uma mulher foi deixada viva. Dentre as vítimas do arcebispo, havia também protestantes e judeus, além do ultracatólico reitor da universidade e magistrado Dietrich Flade. Este, acusado de ter sido clemente demais para com as bruxas, foi preso, torturado, estrangulado e queimado.
Nesses mesmos anos, a caça às bruxas provocaria a destruição de povoados inteiros na Suíça e a execução de 311 bruxas na região francesa do Vaud.
Triora (Ligúria), 1588: a responsabilidade de uma pesada escassez foi atribuída às bruxas. Na verdade, como se descobriria depois, não houve nenhuma escassez, os influentes locais é que se apoderaram do fruto das colheitas para vendê-los a preços altos. Enquanto isso, a intervenção da Inquisição mandou prender e torturar dezenas de mulheres e um suposto bruxo, todos acusados também de se relacionar com protestantes. Treze mulheres morreram torturadas, seis foram condenadas à morte e uma se suicidou na prisão para escapar das sevícias.
Val Mesolcina, 1593: o cardeal Carlos Borromeu (santificado em 1610) favorece a condenação de várias mulheres. Oito bruxas foram amarradas de cabeça para baixo e jogadas no alto na fogueira.
Ao longo de todo o século XVI, somam-se ao menos mil execuções na Dinamarca, quantidade análoga na Escócia, e quase duzentas fogueiras erguidas na Noruega.
Alemanha, 1600, (aproximadamente): o caçador de bruxas Balthasar Ross deu início a uma atividade própria. Ele chegava de surpresa nos povoados com um tribunal itinerante. As bruxas eram presas, processadas, torturadas com novos instrumentos inventados por ele, condenadas e queimadas. Em três anos de trabalho, ele conseguiria matar 250 mulheres e seria amplamente recompensado pelo príncipe e pelas autoridades locais.
Inglaterra, 1600 (aproximadamente): o arcebispo de Saint Andrew, acamado por uma grave doença, manda chamar a curandeira Alison Peirsoun. Esta o cura e ele, em compensação, manda que seja presa, torturada e, finalmente, condenada à morte.
Mântua, 1603: o duque de Mântua mandou afixar um decreto no qual previa uma recompensa de 50 escudos para quem denunciasse uma bruxa.
Zagarramurdi (Países Bascos), 1614: após um processo que durou quatro anos e um interrogatório de 300 testemunhas, foram condenadas 12 bruxas. Sete foram queimadas vivas, as outras cinco morreram durante o processo e foram queimadas "em efígie" (ou seja, um retrato seu foi jogado nas chamas).
Würtzburg, 1623-1631: o príncipe católico Filipe von Ehrenburg mandou novecentas pessoas à fogueira, dentre as quais o sobrinho, 19 cardeais católicos condenados por sodomia e algumas crianças de 5 a 7 anos acusadas de ter tido relações sexuais com o Demônio.
Oppenau, 1631-1632: um processo mandou à fogueira 8% da população.
Inglaterra, 1645-1647: o caçador de bruxas Matthew Hopkins viajava pelas cidades e povoados cobrando uma libra esterlina por cada bruxa que conseguisse fazer condenar. Só na província de Suffolk, ele conseguiu fazer enforcar 98 mulheres. O próprio Hopkins conduzia os interrogatórios e se voltava principalmente contra mulheres jovens, que torturava após violentar repetidas vezes.
Polônia, 650-1700 (aproximadamente): calcula-se que o número de vítimas da caça às bruxas seja em torno de dez mil pessoas.
Salem (Massachusetts), 1692: uma escrava negra confessou ter induzido as moças da cidade a participar de uma dança noturna com práticas de magia e dá o nome de alguns membros importantes do local. Tem início uma espécie de histeria coletiva que levaria à morte várias pessoas. Um total de 155 meninas, moças e jovens mulheres seriam processadas, e 20 delas acabariam na fogueira.
Suíça, 1782: a última bruxa é queimada na fogueira.
Polônia, 1793: a última bruxa é queimada na fogueira.
Ordálio
O termo "ordálio" deriva do anglo-saxão "ordeal", "juízo". Sua definição técnico-jurídica é: procedimento em que "forças sobrenaturais se manifestam dando seu próprio juízo sobre uma questão que provoca uma conseqüência jurídica."16
Alguns estudiosos afirmam que o "juízo de Deus" já era mencionado na Bíblia.17 Entretanto, até hoje, é difícil saber se a Igreja aprovava os ordálios, uma vez que o Quarto Concilio de Latrão (1215) os vetou explicitamente.
Na verdade, o "juízo de Deus" não foi vetado de fato. Por vezes, foi utilizado até por eremitas e monges na tentativa de tornar Deus testemunha de suas próprias razões, passando por cima das instituições eclesiásticas.
Nos primeiros séculos do cristianismo, muitos eremitas e missionários cristãos utilizaram de várias formas a prova do fogo para testemunhar a própria fé ou ser absolvidos de acusações infames.
O missionário Bonifácio, diante dos exércitos russo e alemão, submeteu-se à prova do fogo em nome de Deus. Conta-se que os espectadores, ao ver que seu corpo não queimava, converteram-se ao cristianismo.
A Igreja Católica do século XIII, já estatizada e hierarquizada, não podia permitir que houvesse outras fontes de legitimação espiritual e de santificação além das bulas provenientes da Santa Sé.18 Mas o instituto do ordálio sobreviveu de fato ainda por séculos e foi reintroduzido durante os processos por bruxaria.
O primeiro ordálio, surgido na Alemanha, foi a prova da fogueira, que consistia em fazer uma pessoa vestida com uma camisola coberta de cera passar por entre duas fileiras de galhos em chamas. Em 1098, um camponês da região da Provença, Pierre Barthélemy, submeteu-se espontaneamente à prova, conseguindo passar incólume através das duas fileiras de oliveiras em chamas colocadas a uma distância de pouco mais de um pé umas das outras.
Outro ordálio era a prova do ferro de marcar, que devia ser segurado na mão como se fosse um buquê de flores. O manuscrito Saxo Gramaticus fala de Poppus, que se submeteu à prova para demonstrar a verdade do cristianismo.
Ordálio semelhante é o da água fervente: a pessoa submetida à prova devia pegar um objeto dentro de um caldeirão cheio de água ou óleo fervente. Dizem que uma escrava teutoa acusou a ama de infidelidade, e ambas passaram pela prova.
A ama enfiou a mão e conseguiu pegar o objeto, enquanto a escrava se queimou e foi morta com um banho de água fervente.
Outro ordálio, ainda, era o da água fria (usada não por acaso contra as bruxas). O examinado era submerso em uma banheira de água fria com o polegar da mão e o indicador do pé amarrados. Se afundasse, era inocente; se boiasse (por ao menos cinco minutos) era culpado.
O último ordálio de que falaremos é a prova da Bíblia. O acusado subia sobre o prato de uma balança, enquanto do outro lado era colocada uma Bíblia. Se seu peso fosse inferior ao do livro, era condenado. As Bíblias da época pesavam cerca de 25kg.
Os bem-andantes, os bruxos "bons"
Por volta do final do século XVI, os inquisidores do Friuli viram-se diante de casos de bruxaria que não se encaixavam nos esquemas conhecidos.
Alguns camponeses eram conhecidos nas redondezas por sua capacidade de curar as pessoas atingidas por males. Um deles, como disse um pároco ao inquisidor da diocese de Aquiléia em 1575, declarara ser um "bem-andante" e se vangloriara de "vagar pela noite com bruxos e gnomos".19
O inquérito, de início, avançou lentamente (foi interrompido em 1575 e retomado apenas em 1580), mas no final chegou a confirmar a presença de um fenômeno muito difundido. Segundo a lenda, os "bem-andantes", homens e mulheres, durante o sono entravam em uma espécie de transe durante o qual a alma saía do corpo em forma de "fumaça", ratos ou outros pequenos animais. Como as bruxas, eles chegavam ao lugar de encontro (os campos do Vêneto ou do Friuli, mas também o vale bíblico de Josafá) voando, sozinhos ou cavalgando sobre pequenos animais, e, como as bruxas, reuniam-se com seus semelhantes para realizar feitos mágicos. Ao contrário das bruxas, no entanto, os bem-andantes não utilizavam ungüentos para voar, não participavam de orgias, não abjuravam a fé católica e não adoravam o diabo. Ao contrário, eles afirmavam que lutavam 'em nome da religião e de Cristo' contra as bruxas e magos maus, e para defender a colheita.
Ninguém se dizia bem-andante, mas nascia assim. Todas as crianças que viessem ao mundo de "camisa", ou seja, cobertas por uma película placentária, como se fosse uma roupa, eram potenciais bem-andantes, desde que guardassem a membrana e a levassem sempre consigo. Em geral, os futuros xamãs eram avisados do futuro que lhes esperava por suas mães ou por um bem-andante "ancião", que o visitava pessoalmente ou em sonho. Por volta dos 20 anos, nas noites de quinta-feira da quarta têmpora,20 eles eram chamados em sonho por um "capitão" ou anjo. Quando chamados, seu espírito abandonava o corpo e voava com o capitão. O destino era um campo onde lhe esperava uma luta contra bruxas e magos malvados. Os bruxos bons lutavam com ramos de funcho, os maus, com galhos de sorgo. Caso os primeiros vencessem, a colheita daquele ano seria boa; se fossem os segundos, o ano seria péssimo.
Os bem-andantes eram vinculados com o máximo segredo a suas ações e aos nomes de seus companheiros e dos bruxos adversários, sob pena de receberem pauladas "em sonho" durante a noite. Na verdade, muitas vezes falavam de suas atividades, por orgulho ingênuo ou para tirar alguma vantagem. A eles era atribuída a capacidade de curar pessoas atingidas por encantamentos e de reconhecer uma bruxa à primeira vista. As mulheres nascidas com a "camisa" podiam falar com os mortos. Todos esses eram dons que podiam trazer alguma vantagem econômica.21
Os inquisidores, durante os interrogatórios, tentavam insinuar habilmente a suspeita de que "o anjo" visto pelos bem-andantes era ninguém menos que o Demônio disfarçado e incluir nos relatos dos malfadados xamãs elementos típicos do "sabá" das feiticeiras, como a presença de "belas cadeiras", utilizadas pelo Diabo como trono, e de danças e "diversões".
Os camponeses continuaram repetindo que apenas as bruxas se entregavam a "diversões", enquanto eles se reuniam para promover o bem. Mas, no final, cederam à pressão psicológica e às armadilhas das perguntas capciosas e admitiram, ainda que renegando a própria fé, terem sido vítimas do Maligno.
Os autos dos processos contra os que nasceram com a "camisa" registraram uma evolução ao longo dos anos. O retrato do bem-andante se afastou cada vez mais daquele do "bruxo bom" para assumir o aspecto de bruxo malvado, apóstata da fé e adorador de Satanás. O que impressiona é o fato de muitos inquisidores investigarem cuidadosamente as pessoas que os bem-andantes afirmavam ter visto em sonho. De qualquer modo, nenhum foi condenado pelo simples "chamado em sonho".
As condenações da Inquisição contra os bem-andantes entre 1581 e 1705 foram, somando tudo, leves: muitos foram repreendidos ou tiveram de abjurar publicamente, alguns foram detidos por poucos meses ou banidos temporariamente. Apenas dois de 16 condenados foram exilados para sempre.22 O bem-andante Michele Soppe morreu na prisão antes da sentença, talvez pelas péssimas condições da detenção.23
Muitos processos foram interrompidos, muitos supostos bem-andantes considerados inencontráveis não foram procurados. É provável que a Inquisição estivesse mais preocupada com a infiltração das teses luteranas, cujos adeptos foram identificados e perseguidos com eficiência e rapidez.
Além disso, entre o final do século XVI e a metade do século XVII, o interesse dos inquisidores pelos sabás diminuiu, enquanto aumentou seu ceticismo. Mas ainda que não tenha sido uma tragédia material, o fim dos bem-andantes representou um crime cultural e significou a destruição da vida para muitos acusados, obrigados a viver à margem da sociedade.
Xamãs europeus
Os bem-andantes não eram os únicos "bruxos bons" presentes na Europa. Em 1692, na Letônia, Thiess, um homem de mais de 80 anos, declarou aos juízes que era um lobisomem e que três noites por ano (Santa Lúcia, Pentecostes e São João) os licantropos se transformavam em lobos e se dirigiam ao Inferno para pegar dos diabos e dos bruxos maus os grãos da colheita que estes haviam roubado. Os licantropos batiam nos bruxos com açoites de ferro, enquanto estes, por sua vez, os expulsavam com cabos de vassoura.24
Thiess, irritado com as perguntas dos inquisidores, repetiu várias vezes que os lobisomens eram "cães de Deus", que expulsavam o Diabo com todas as suas forças e que, sem eles, este roubaria todos os frutos da Terra. Os lobisomens russos e alemães faziam o mesmo. Thiess, que não voltava atrás de suas declarações, foi, por fim, condenado a dez chibatadas.
As semelhanças com os bem-andantes do Friuli são evidentes. Talvez os "nascidos com a camisa" e os licantropos letões representassem os últimos remanescentes de um culto xamanista pré-cristão antes difundido em várias áreas da Europa e que sobrevivera em algumas zonas marginais, como os campos do Friuli e o extremo norte. Até hoje, na Istria ou na Dalmácia, há terapeutas e "antibruxos" nascidos com a "camisa".25
No caso específico dos bem-andantes, talvez haja um elemento a mais de originalidade. Segundo dom Gilberto Pressacco (1945-1997), seus ritos reuniriam também elementos da tradição estática dos Terapeutas de Alexandria, veiculada no Friuli através dos sermões de Ermagora, discípulo de São Marcos (de origem alexandrina) e fundador da Igreja de Aquiléia.26 Assim como os lobisomens, originalmente bons, foram transformados pela tradição cristã em seres negativos, os bem-andantes acabaram sendo identificados com os próprios demônios que combatiam.
CAPÍTULO 11
A salvação de Lutero e a Reforma Protestante
A venda de indulgências
No que consistia a doutrina das indulgências? "Acreditava-se que Cristo em pessoa, a Virgem Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mérito que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé e que haviam, ao contrário deles, acumulado um déficit em razão dos pecados cometidos, e, para expiá-los, deveriam passar um longo período de tempo no Purgatório. Os papas, depositários, através de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse tesouro e podiam estendê-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos. Mesmo não sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão (mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)
O auge dessa prática se deu durante o pontificado de João de Mediei, o Leão X (1513-1521), que lançou uma aberta política de venda de indulgências. Verdadeiros mascates percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgência", quase bônus-Paraíso, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas desconcertando muitos crentes genuínos.
Em 1517, foi divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgências previstas para os vários pecados, com um tarifário a elas referentes, reportado a seguir:
1. O eclesiástico que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, será absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.
2. Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deverá pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagará apenas 131 libras e 15 soldos.
3. O sacerdote que deflorar uma virgem pagará 2 libras e 8 soldos.
4. A religiosa que quiser ser abadessa após ter se entregado a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, dentro ou fora do convento, pagará 131 libras e 15 soldos.
5. Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes pagarão 76 libras e 1 soldo.
6. Para cada pecado de luxúria cometido por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo.
7. A mulher adúltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilícita pagará ao papa 87 libras e 3 soldos. Em um caso análogo, o marido pagará o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o próprio filho, acrescentar-se-ão 6 libras pela consciência.
8. A absolvição e a certeza de não ser perseguido por crime de roubo, furto ou incêndio custarão ao culpado 131 libras e 7 soldos.
9. A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custará 15 libras, 4 soldos e 3 denários.
10. Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um único dia, pagará como se tivesse assassinado um só.
11. O marido que infligir maus-tratos à mulher pagará às caixas da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a mulher for morta, pagará 17 libras e 15 soldos; e se a tiver matado para se casar com outra, pagará mais 32 libras e 9 soldos. Quem tiver ajudado o marido a perpetrar o crime será absolvido mediante o pagamento de 2 libras por cabeça.
12. Quem afogar o próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.
13. A mulher que destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagará 1 libra a menos.
14. Pelo assassinato de um irmão, uma irmã, mãe ou pai, pagar-se-ão 17 libras e 5 soldos.
15. Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagará 131 libras, 14 soldos e 6 denários.
16. Se o assassino tiver matado mais sacerdotes em várias ocasiões pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.
17. O bispo ou abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade pagará, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.
18. Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagará 168 libras e 15 soldos.
19. O herege que se converter pagará, pela absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou executado de qualquer outra forma poderá ser readmitido apenas mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denários.
20. O eclesiástico que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado pelos credores entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denários, e a dívida lhe será perdoada.
21. Será concedida a licença para a instalação de postos de venda de vários gêneros sob os pórticos das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denários.
22. O delito de contrabando e fraude aos direitos do príncipe custará 87 libras e 3 denários.
23. A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagará 781 libras e 10 soldos.
24. O mosteiro que quiser variar a regra e viver com menos abstinência do que a prescrita pagará 146 libras e 5 soldos.
25. O frade que, por conveniência própria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitério com uma mulher dará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.
26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem obstáculos pagará igual quantia pela absolvição.
27. Igual montante pagarão os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em trajes de leigo.
28. O filho bastardo de um sacerdote que queira preferência para suceder o pai na cúria pagará 27 libras e 1 soldo.
29. O bastardo que queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 denários.
30. O filho de pais desconhecidos que queira entrar para as ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.
31. Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.
32. Igual quantia pagará o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagará ao papa 10 libras e 7 soldos. Os estrábicos bilaterais pagarão 45 libras e 3 soldos.
33. Os eunucos que queiram entrar para as ordens pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.
34. Aquele que, por simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirá aos tesoureiros do papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.
35. Aquele que, tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar de qualquer tipo de infâmia pagará ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso, dará 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1
Não havia crime, nem o mais cruel, que não pudesse ser perdoado mediante pagamento.
Naqueles anos, o dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgência. Mais tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma: "Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguém violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... Ele redimiu mais almas com as indulgências do que São Pedro com seus sermões; quando era colocado em sua bolsa um dinheiro pelo Purgatório... a alma se elevava imediatamente para o Paraíso; não havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possível comprar indulgências ou cartas de indulgência. Tetzel vendia até o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro."2
A venda de indulgências era apenas a ponta do iceberg de um fenômeno geral de corrupção na Igreja da época. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas prebendas. Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.
O título de cardeal (que era o "príncipe", também em sentido terreno) muitas vezes não era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessão do papa a parentes e amigos. Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X (1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.
Os pontífices eram, em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os adversários e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a intriga e o homicídio político, como o papa Alexandre VI Bórgia (1492-1503), por exemplo, e seu filho César. Como os reis, declaravam guerra contra seus inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa Júlio II (1503-1513) foi retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.
Martinho Lutero
Lutero (1483-1546) foi ordenado sacerdote em 1507, após ter concluído brilhantes estudos universitários. Atormentado com o sentido do pecado, sua ânsia o levou a elaborar uma nova doutrina da Salvação, em contraposição à católica. Para Lutero, a absolvição do pecado derivava de uma relação direta entre Deus e o fiel, que poderia ser obtida apenas através da própria fé, não por meio de obras e, muito menos, com a compra de indulgências ou a intervenção de um confessor.4
Lutero defendeu o direito que cada fiel tem de ler e interpretar as Escrituras, negou a autoridade jurisdicional do papa, dando início a uma vigorosa polêmica contra a corrupção da Igreja de Roma, e contestou o poder temporal do clero. Negou também a validade de alguns sacramentos e o valor do celibato eclesiástico.
Em 31 de outubro de 1517, afixou na porta de uma igreja as "95 teses para esclarecer a eficácia das indulgências", que suscitaram grandes polêmicas e tiveram ampla difusão em toda a Alemanha.
Em 15 de junho de 1520, uma bula papal condenou algumas proposições luteranas, ordenando que fossem queimadas. Lutero, em compensação, queimou, diante de uma multidão que o aplaudia, o que ele mesmo chamava de "execrável bula anticristo".
Em 1521, apresentou-se à Dieta de Worms com o salvo-conduto do imperador Carlos V. Ao final de uma acirrada discussão teológica, Lutero declarou que não podia se remeter à autoridade do papa e dos concílios, até porque estes muitas vezes se contradiziam, mas apenas à das Sagradas Escrituras.
Excomungado pela Igreja e banido pelo imperador, continuou suas atividades ou, ao menos, deu início a um projeto ambicioso: a tradução das Escrituras para o alemão. Lutero, com grande probabilidade, salvou-se da fogueira por um conjunto de fatores deliciosamente políticos: o favor de alguns príncipes alemães, dentre os quais estava o eleitor da Saxônia, que o escondeu no castelo de Wartburg encenando um falso rompimento; a desconfiança do papa com relação a Carlos V, cuja influência se tornara preponderante na Itália; o fato de que o próprio Carlos V, nos anos seguintes, estivesse ocupado demais com guerras contra turcos, franceses, venezianos e o próprio Estado Pontifício.
As teses luteranas eram populares entre os príncipes alemães, que desejavam se apoderar dos bens dos grandes eclesiásticos: latifúndios enormes com vários servos da gleba e que gozavam de amplos privilégios fiscais, quase Estados dentro dos Estados.
Lutero também gozava de grande admiração entre o povo, que reconhecia em algumas de suas declarações as próprias aspirações de justiça social. Mas as expectativas de muitos, sob esse ponto de vista, não foram atingidas.
Em 1524, eclodiu nos territórios do Império uma gigantesca rebelião camponesa. Bandos armados compostos de cerca de trezentos mil camponeses saquearam igrejas, castelos e cidades. Lutero, depois de tentar inutilmente uma mediação, escreveu o tratado Contra os bandos arruaceiros e assassinos dos camponeses, uma espécie de carta aberta aos príncipes alemães pedindo para conter os rebeldes. "Esta é a época da ira e da espada, não a da graça [...] Por isso, caros senhores [...] matem, esganem, estrangulem quem puderem [...] e se alguém julgar tudo isso duro demais, pense que a sedição é insuportável e que a cada momento é preciso esperar a catástrofe do mundo."5
Os príncipes católicos e protestantes acolheram o convite e massacraram os rebeldes. Uma das características da Igreja Luterana foi o direito de envolvimento dos príncipes na gestão eclesiástica. O soberano de um Estado se tornava o chefe da Igreja nacional.
Os escritos de Lutero tiveram ampla difusão na Europa, com exceção, talvez, apenas da Itália, onde desencadearam uma severa repressão. Os sermões luteranos se difundiram em muitos países europeus, em alguns casos fornecendo combustível para as fogueiras, em outros, com sucesso, transformando a Reforma em religião de Estado (que perseguiu, por sua vez, os católicos).
A Dinamarca se tornou protestante com o reinado de Cristiano III (1534-1559). Os bispos católicos foram presos e substituídos pelos luteranos, as propriedades eclesiásticas foram confiscadas e utilizadas para manter o Estado e financiar a cultura. O rei era o chefe da Igreja. A Bíblia foi traduzida para o dinamarquês.
Posteriormente, Cristiano III estendeu a própria soberania também sobre a Noruega e a Suécia. Na Noruega, os soldados luteranos demoliram algumas igrejas católicas, e todos os bispos foram expulsos, com exceção de dois que se converteram ao luteranismo. Na Suécia, as doutrinas reformadas penetraram de maneira mais suave e "em diálogo" com Roma. A ruptura só aconteceu em 1523, quando o papa se recusou a ratificar a nomeação de quatro bispos suecos enquanto não se pagassem as anonas (um dos tantos tributos que os reinos cristãos deviam à Santa Sé). O rei da Suécia respondeu que o país era pobre demais para pagar e nomeou ele próprio os bispos.
Dos países escandinavos, o luteranismo se propagou pelas regiões bálticas. Na Finlândia, tornou-se religião de Estado. A Islândia, no século XVI, estava subordinada à Dinamarca, e o luteranismo chegou com os mercadores e doutos que tinham estudado no continente (a Universidade de Wittemberg tornara-se um importante centro de difusão cultural), mas sobretudo pela influência de Cristiano III, contestada em vão por um bispo local e seus dois filhos. Os prelados católicos foram depostos, e seus bens, confiscados. Contudo, a Igreja Reformada manteve várias práticas católicas, como a da confissão e a adoração a alguns santos locais.
Na Boêmia, a Reforma se difundiu graças aos estudantes hussitas formados em Wittemberg. Os alemães da Boêmia se tornaram luteranos; os eslavos, calvinistas, mas depois as duas correntes elaboraram uma confissão de fé unitária para enfrentar melhor os soberanos católicos, o que deu ensejo a uma violenta reação dos católicos em geral e dos jesuítas em particular. Até o final do século XVI, calcula-se que 90% dos boêmios fossem protestantes.
Na Hungria, a Reforma também se difundiu através de diretrizes "étnicas": alemães e eslavos se voltavam preferivelmente ao luteranismo; os magiares, com algumas exceções, ao calvinismo. Vários fatores ajudaram a obra dos reformadores.
Em primeiro lugar, a corrupção que se espalhou entre o clero e os leigos católicos. Os hussitas e (provavelmente) os valdenses abriram o caminho.
A invasão turca à Hungria, em 1541, auxiliou na instituição da Reforma tanto indireta (muitos líderes católicos foram mortos em combate contra os turcos) quando diretamente: as forças de ocupação turcas favoreceram os protestantes em detrimento dos católicos, mais temidos por sua propensão às Cruzadas e sua ligação com o imperador.6
Na Transilvânia, alguns decretos de 1568 e 1571 garantiram direitos iguais a católicos, calvinistas, luteranos e unitaristas.
João Calvino
Calvino (1509-1564), francês, foi o fundador da Igreja Calvinista, outro grande culto reformado que se espalhou pela Europa talvez com um sucesso ainda maior que o luterano. Para Calvino, o pecado original transmitido por Adão a toda a humanidade tornou os homens incapazes de redenção. Apenas os eleitos, que haviam recebido uma graça especial de Deus, poderiam se salvar; todos os outros estavam predestinados à danação.7
Com base nessa afirmação, ninguém além de Deus podia saber com certeza quem eram os eleitos, embora a profissão de fé, uma vida correta e a observância dos sacramentos fossem provas evidentes do favor divino. Existem, assim, duas Igrejas: uma invisível, formada pelos eleitos vivos e mortos e conhecida apenas por Deus; e uma visível, composta também de homens indignos, imperfeita, mas passível de melhoras, e os cristãos deveriam respeitar sua autoridade.8 Obviamente, quando falava de "Igreja visível", Calvino se referia àquela fundada por ele próprio. A Igreja e o Estado eram partes integrantes da mesma comunidade sagrada. Entre os deveres do Estado, havia o de defender a religião e evitar as ofensas contra ela. A pena capital e, dadas as condições, a guerra eram consideradas práticas legítimas e admissíveis para um cristão.
Graças à sua influência, a República de Genebra se transformou em um regime teocrático, o que lhe conferiu um incrível impulso para o comércio, os investimentos e a educação. Um conselho eclesiástico cuidava da moralidade dos cidadãos, cominando penas severas até mesmo para pequenas infrações, e se ocupava dos crimes de heresia.9
Considerado herege e banido da Igreja de Roma, Calvino, por sua vez, teve um comportamento muito duro com os dissidentes de sua doutrina.10
O calvinismo se difundiu em vários países, às vezes em detrimento do luteranismo, como em Estrasburgo, onde muitos reformados aderiram à nova crença, incentivados pela intransigência dos luteranos mais radicais. No Palatinado, tornou-se religião de Estado, e o governo perseguiu católicos e luteranos.11
Os huguenotes
Na França, a Reforma se difundiu sobretudo no sul do país, onde três séculos antes pregavam os cátaros e os valdenses. Os calvinistas franceses eram apelidados de "huguenotes". A disciplina e a moral rígida que os caracterizavam lhes permitiram exercer grande influência na vida pública francesa, embora representassem uma pequena minoria dentro de um país quase totalmente católico.
As autoridades francesas adotaram uma política que se alternava entre tolerância e repressão aos calvinistas e outras minorias religiosas. A repressão não poupou nem os seguidores do bispo católico reformista de Meaux, Guillaume Briçonnet (1492-1549), confessor de Margarida, irmã do rei, que foram lançados à fogueira. A Sorbonne proibiu livros de reformistas, o Parlamento os baniu e decretou a destruição de muitas cidades habitadas por comunidades hereges.
Em 1535, para vingar uma suposta profanação da hóstia sagrada, foram queimados seis hereges, um por cada uma das estações que compunham a solene procissão do Corpus Domini.12
O ano de 1572 pareceu presenciar um período de paz na luta entre católicos e huguenotes. As núpcias entre a católica Margarida, irmã do rei da França, e o protestante Henrique, rei de Navarra, estavam previstas para o dia 28 de agosto. Mas na noite de São Bartolomeu (24 de agosto), em Paris, os soldados do rei da França entraram nas casas dos huguenotes e os mataram em emboscadas. Poucos encontraram abrigo, todas as ruas haviam sido bloqueadas. Nos dias que se seguiram, o massacre se estendeu também a outras cidades francesas e aos campos. Calcula-se que, em Paris e arredores, foram mortos entre 25 mil e 35 mil huguenotes.
O papa Gregório XIII (1572-1585), assim que foi informado do massacre, ordenou que o acontecimento fosse comemorado com festas solenes e celebrou um jubileu "no qual os fiéis deveriam agradecer a Deus pela destruição dos huguenotes e pedir que absolvesse, por completo a França católica".13 Finalmente, encarregou Vasari de imortalizar o feito em um afresco na Sala Regia do Vaticano.
As contendas religiosas, que se misturaram às dinásticas pelo trono da França, só tiveram fim em 1594, quando Henrique IV se tornou rei dos franceses, um protestante convertido ao catolicismo. "Paris vale uma missa", frase que lhe foi atribuída, diz tudo sobre as relações entre política e religião.
Em 1598, foi promulgado o Edito de Nantes, que garantia aos huguenotes a liberdade de culto e o controle, a título de garantia, de algumas cidades fortificadas. Apesar disso, as perseguições não cessaram.
Em 1621, os huguenotes assinaram, na cidade fortificada de La Rochelle, uma verdadeira declaração de independência. A cidade foi tomada em 1628, após um longo sítio. Os reformistas perderam, assim, sua cidade e foram obrigados a pagar pesadas taxas, sendo excluídos por lei do exercício de algumas profissões.
Em 1680, novas perseguições se iniciaram (Luís XIV, o Rei Sol, não tolerava nenhuma forma de autonomia no próprio reino). Alguns protestantes emigraram, outros se converteram à força, por meio de missionários escoltados por bandeiras de dragões (as forças francesas mais ferozes). Dizem que, em três dias do ano de 1684, foram convertidos sessenta mil huguenotes.
Em 1685, o Edito de Nantes foi ab-rogado, provocando um novo êxodo de protestantes. Nas montanhas de Cevennes, um grupo de três mil reformistas guiados, ao que parece, por alguns "profetas-meninos", desafiou um contingente de seis mil soldados do exército francês.
Henrique VIII e a Reforma inglesa
A Igreja Anglicana nasce graças a Henrique VIII"(1509-1547), conhecido por ter tido seis mulheres (duas repudiadas, duas decapitadas e uma morta no parto). Henrique iniciara seu reinado com o marco da ortodoxia católica: seguidores das teses luteranas, como o estudioso Thomas Bilney e o sacerdote William Tyndale, que traduziu para o inglês o Novo e grande parte do Antigo Testamento, acabaram na fogueira. Ele próprio escreveu (ou mandou escrever) um libelo antiprotestante e foi nomeado Defensor Fidei (defensor da fé) pelo papa. Em 1509, casou-se com Catarina de Aragão, viúva de seu irmão mais velho, Artur, após ter obtido uma dispensa especial do papa (as leis da época proibiam casamento entre cunhados).
Por volta de 1527, não havendo tido nenhum filho homem de sua união e desejoso de um herdeiro para sua dinastia, Henrique tentou obter do papa a anulação do casamento, para poder se casar com Ana Bolena. O papa indeferiu o pedido, provavelmente porque temia ofender o imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, que já havia saqueado Roma com suas tropas.
Henrique entrou em controvérsia com a Igreja Católica. Em 1531, a assembléia geral do clero o nomeou "chefe supremo da Igreja na Inglaterra" e doou uma notável quantia em dinheiro à Coroa. Em seguida, o Parlamento decretou que os impostos religiosos não fossem mais pagos ao papa, mas ao rei, e que a Igreja Anglicana podia deliberar sobre as próprias questões internas, sem recorrer a Roma.
Quando o papa excomungou Henrique, o parlamento inglês ab-rogou o chamado "Óbolo de Pedro", uma taxa papal imposta a todas as famílias pela Igreja de São Pedro, e proclamou o rei o "único chefe supremo em Terra da Igreja na Inglaterra". Qualquer referência ao papa foi tirada das missas.
Forest, um frei praticante, defensor da autoridade absoluta do papa nas questões de fé, foi acusado de heresia e queimado na fogueira junto com um ídolo de madeira venerado em Gales. Thomas Moore e o bispo Fisher também foram decapitados por sua fidelidade a Roma.
Em todas as igrejas, apareceram uma Bíblia em latim e uma em inglês, para que os leigos lessem diretamente as Escrituras e verificassem como muitas doutrinas e costumes católicos não correspondiam aos textos sagrados. Os mosteiros foram saqueados e destruídos, e seus bens foram confiscados e vendidos.
A ruptura com Roma não significou a automática adesão às doutrinas luteranas, muito pelo contrário. Henrique VIII em pessoa, junto com seus bispos, julgou o caso do luterano John Nicholson, que foi condenado e mandado à fogueira apesar de seu pedido de perdão.
Sob o reinado de Henrique e o breve governo de Eduardo VI, os artigos da fé da Igreja Anglicana foram reescritos várias vezes, alternando posições reformistas e "católicas", às vezes com resultados tragicômicos. Em 1539, foram promulgados os Seis Artigos, que reformulavam vários aspectos da doutrina católica, como o celibato eclesiástico. As infrações seriam punidas com a fogueira ou com o enforcamento. O arcebispo Cranmer, que se casara, teve de esconder a mulher. Em 1543, seis pessoas foram executadas num único dia: três queimadas por heresia e três enforcadas por negarem a supremacia religiosa do rei.
Maria, a Sanguinária, e Elisabete I
Em 1553, a reação católica levou ao poder Maria I (chamada também de Maria, a Católica; ou Maria, a Sanguinária), filha de Henrique VIII e de Catarina de Aragão.
Durante seu breve reinado, ela ab-rogou todos os provimentos de Henrique VIII e Eduardo e retomou as leis contra os hereges. Muitos protestantes fugiram do país e os bispos católicos retomaram a posse de suas sedes. Foram instituídas comissões especiais com a tarefa de encontrar e processar os hereges em todo o território do reino. Em cinco anos, 282 pessoas foram mortas por heresia.
Elisabete I (1558-1603) escolheu o meio-termo, criando uma igreja autônoma cujos artigos de fé representavam um compromisso entre instâncias católicas, luteranas e calvinistas e contentaram grande parte dos cristãos da Inglaterra. Ela conservou a oposição ao extremismo: de um lado, aos jesuítas, que ordenaram vários complôs contra a rainha; de outro, aos puritanos.
Em 1570, Elisabete foi oficialmente excomungada por Roma (lembremos que esse ato, que excluía os súditos da obrigação de fidelidade, representava um grave perigo para a autoridade e a própria vida do monarca), ao que respondeu perseguindo, sem hesitar, os católicos. Das 187 pessoas mortas durante seu reinado, 123 eram sacerdotes católicos ou jesuítas.
Puritanos e anglicanos
A Igreja da Inglaterra fora dividida em duas: de um lado, os puritanos, integralistas da religião, que rejeitavam liturgias e hierarquias eclesiásticas, mas eram impiedosos com os "pecadores"; de outro, os anglicanos, partidários do poder, mais tolerantes com o pecado, mas impiedosos com os puritanos.
Os puritanos (rótulo que na verdade englobava uma constelação de movimentos muito diferentes entre si) professavam o sacerdócio universal, defendiam a igualdade de todos os ministros do culto contra a hierarquia dos bispos e condenavam como "idolatras" a missa e outros rituais anglicanos adaptados dos católicos. Seu programa "político-social" previa punições severas contra blasfemos, caluniadores, perjuros, fornicadores e alcoólatras, além da pena de morte "sem salvação" para os adúlteros. O Parlamento inglês apoiou seus pedidos. Seus adversários eram a monarquia e o clero institucional. A luta entre uma Igreja Alta, aliada ao poder real, e uma Igreja Baixa, muito influente no Parlamento, duraria quase um século, intercalando-se com os vários fatos históricos da época.14
Os anglicanos emanaram leis muito severas contra os puritanos: quem não participasse da missa seria punido com o exílio. Quem fazia "reuniões religiosas particulares" era condenado a penas graves (o pregador John Bunyan foi preso por 12 anos). Os escritores e pregadores puritanos corriam o risco de ser colocados na berlinda, açoitados, marcados com fogo ou ter o nariz e as orelhas arrancados.
A guerra civil e o período do Commonwealth (1649-1659) marcaram um breve triunfo dos puritanos, que conseguiram abolir a instituição dos bispos. Mas a sucessiva restauração voltou a fazer a balança pender para o lado dos anglicanos, que reinstauraram à força a hierarquia eclesiástica. Só os católicos nunca tiveram seu instante de triunfo e foram cuidadosamente perseguidos durante todo o século XVII, acusados de conjuras verdadeiras (como a dos pós) ou inventadas, e excluídos dos cargos públicos. Em 1689, um Ato de Tolerância garantiu liberdade de culto a batistas, presbiterianos, congregacionalistas e quacres, mas não aos católicos e unitaristas.
Na Irlanda, os católicos se rebelam
Apesar do cisma de Henrique VIII, os irlandeses continuaram tenazmente ancorados pela Igreja Católica. O arcebispo de Amagh declarou que "esta ilha não pertence a ninguém além do bispo de Roma, que a entregou aos antepassados do soberano". Em todas as dioceses, enfrentaram-se dois bispos rivais, nomeados respectivamente pelo papa e pelo rei.
A destruição dos mosteiros revelou-se uma verdadeira catástrofe para o povo irlandês, já que eram os únicos centros de difusão da cultura e da assistência. A destruição das imagens sagradas gerou o horror dos fiéis. Bispos e eclesiásticos anglicanos comportaram-se com grande arrogância em relação aos irlandeses, não se preocupando nem em convertê-los. Os habitantes da ilha, apoiados pelos jesuítas a partir de 1542, reagiram criando a Liga Católica, para se defender da obrigação de freqüentar as igrejas protestantes e para difundir a instrução. A existência de uma oposição católica organizada representaria um obstáculo durante todo o reinado da rainha Elisabete.
CAPÍTULO 12
A Guerra dos Trinta Anos
A Reforma Protestante havia dividido a Europa em duas: de um lado, os Estados católicos; de outro, os protestantes.
A divisão percorria o próprio Sacro Império Romano: a maior parte dos Estados alemães setentrionais tornou-se luterana ou calvinista, enquanto os meridionais continuaram com Roma.
Os príncipes católicos queriam que fosse garantida liberdade de fé a seus correligionários mesmo nos territórios dominados pelos reformistas, mas não tinham nenhuma intenção de conceder a mesma liberdade aos seus súditos protestantes.
Nasceram, assim, duas coalizões contrárias de Estados: a Liga de Ratisbona (católica), em 1524, e, dois anos depois, a Aliança de Torgau (protestante). Por vários anos, os dois partidos se enfrentaram, alternando intransigência e tentativas de conciliação, até que, em 1530, o imperador Carlos V ordenou que os príncipes luteranos se submetessem à religião católica. Estes responderam criando a Liga de Smalcalda, uma aliança político-militar que estabeleceu acordos também com a França e outras potências hostis ao imperador.
Sucederam-se trinta anos de guerras e tréguas alternadas, até que, em 1555, Carlos V, derrotado por uma aliança que reunia a França católica e os Estados reformados, foi obrigado a fazer um acordo com seus adversários.
Em 1555, Carlos V e os príncipes reformados firmaram a Paz de Augusta. Pela primeira vez, desde seu nascimento, tomou forma a idéia de que duas religiões cristãs diferentes poderiam coexistir no Sacro Império Romano.
O tratado continha, no entanto, dois princípios restritivos:
1) il cuius regio eius religio: os súditos de um Estado deviam se adequar à religião de seu príncipe, fosse ele católico ou protestante, ou, caso contrário, emigrar; e
2) il reservatum ecclesiasticum: a Igreja Católica renunciaria a reivindicar os bens eclesiásticos confiscados antes de 1552; em compensação, deveria receber de volta aqueles subtraídos após essa data (os príncipes trataram de honrar esse compromisso).
Além disso, os prelados católicos que se convertessem ao luteranismo teriam de renunciar- a todos os benefícios e bens que possuíam em virtude de seu cargo, devolvendo-os à Igreja Católica.
Pouco tempo depois, Carlos V abdicou, dividindo em dois seu imenso território. O irmão Fernando I ficou com o Império e a Boêmia; seu filho Filipe II ganhou a Espanha, os Países Baixos, grande parte da Itália e os territórios do Novo Mundo.
A caminho da guerra
A paz durou pouco. Muitos elementos contribuíram para demolir o edifício do Império e revolucionar a ordem européia:
1) a verve expansionista dos turcos otomanos, que ameaçavam diretamente os domínios de família dos Habsburgo e que, no auge de sua expansão, chegaram a sitiar Viena;
2) a revolta dos nobres dos Países Baixos, que levou, no início do século XVII, ao nascimento de uma república protestante holandesa independente da Espanha;
(3) as novas rotas comerciais através do Atlântico em direção às Américas e à Ásia, que favoreciam nações como a Inglaterra, a Holanda e a França, em detrimento das Repúblicas Marinaras, deslocadas no Mediterrâneo, que se tornara um mar quase periférico;
4) o aparecimento, no cenário europeu, de novas monarquias agressivas, como a sueca, que impôs seu predomínio sobre o Báltico (controlar os mares significava deter as rotas comerciais e o transporte de matérias-primas);
5) a grave crise econômica e política da Espanha;
6) o fato de que a Contra-Reforma, de um lado, e a propagação da Reforma calvinista (sob muitos aspectos, mais rígida, intransigente e autoritária), de outro, tinham dividido a Europa em dois blocos contrários. É claro que se tratava de dois grupos internamente bem diferentes (por exemplo, nanistas), mas isso não impediu que a tendência geral tenha sido a de procurar alianças, acordos dinásticos, apoios e interesses comuns, em especial com Estados em que vigoravam crenças religiosas afins; e
7) uma decisiva ofensiva diplomática e militar por parte da França para redimensionar o poder do rival império dos Habsburgo. O cardeal Richelieu e seu colaborador, o frei José, franciscano bastante ortodoxo, fizeram tudo que estava a seu alcance para aumentar a duração e a destrutividade do conflito.1
Nem os soberanos protestantes nem a fé católica na França não hesitariam em se aliar até mesmo com "o infiel" por definição: o Império Turco Otomano.
A divisão entre católicos e protestantes corria o risco de criar uma crise na própria sucessão dinástica dos Habsburgo no governo do Império. Na época, o título de imperador não passava automaticamente de pai para filho; era conferido por um colégio de Grandes Eleitores, composto por bispos e grandes senhores feudais católicos, como o rei da Boêmia, ou protestantes, como o duque da Saxônia e o conde de Palatinato.
Em 1608, os Estados do Império se agruparam em duas coalizões opostas: a Liga Católica, guiada por Maximiliano da Baviera (que, na verdade, defendia mais os interesses da Santa Sé do que os do imperador), e a União Evangélica, liderada pelo Eleitor Palatino (que, sendo calvinista, teria sido boicotado pelos príncipes luteranos)-
As divergências religiosas dariam vida a um conflito assustador com milhões de mortos, comparável às duas Guerras Mundiais.
A guerra (1618-1648)
O pretexto para iniciar o conflito foi dado pela Boêmia, onde a maioria da população, protestante, era oprimida por um monarca católico.
Em 1618, os boêmios se rebelaram, jogando pela janela do Castelo de Praga os lugares-tenentes do imperador e chamando em seu socorro o príncipe Palatino.
Entender todos os interesses econômicos e geopolíticos em jogo e todas as alianças, mudanças de frente, intrigas e rivalidades internas entre as coalizões opostas em um conflito que durou trinta anos e que envolveu, de uma maneira ou de outra, toda a Europa, é algo que vai bem além do objetivo deste livro.2
Aqui só nos cabe sublinhar o fato de que praticamente não houve país europeu que não tenha sido atingido pela guerra durante uma fase ou outra do conflito, direta ou indiretamente. Além de que o elemento do fanatismo religioso desempenhou um papel fundamental na longa duração e na dureza do conflito.
Provavelmente, uma guerra normal para redefinir fronteiras e áreas de influência teria terminado antes de levar à repetida aniquilação de exércitos inteiros, ao pesado endividamento de príncipes e reis, à total e deliberada destruição de países invadidos, quando, pelo contrário, um conquistador teria todo o interesse de que seus novos domínios fossem ricos e prósperos.
As conseqüências sobre a população foram quase inimagináveis. Por décadas, exércitos de dimensões imensas atravessaram os territórios da Europa central, arrasando tudo que era possível, impondo com a força a própria fé, católica ou protestante, e queimando tudo para impedir que os exércitos inimigos tivessem provisões. Às vezes, junto com os saques, eram levados embora também homens e mulheres como escravos.3 O mais imponente desses exércitos era o de Wallenstein, que por anos foi capitão a serviço da causa católica. Contando, além dos soldados, com o séquito de vivandeiros, comerciantes ambulantes, prostitutas e trabalhadores, calcula-se que seu exército fosse composto de centenas de milhares de pessoas.
"Seu exército [...] era o maior e mais bem organizado empreendimento particular já visto na Europa antes do século XX. Todos os oficiais tinham participação financeira e obtinham um grande proveito de seu investimento (proveito esse que derivava de saques); as tropas reunidas em qualquer parte da Europa e incapazes de mostrar solidariedade eram pagas de maneira irregular, o que levava a uma rápida substituição da força de trabalho."4
Durante a Dieta Imperial em Ratisbona, em 1630, os súditos da Pomerânia se apresentaram com uma petição para o fim da guerra.
"No ano anterior, os exércitos de Wallenstein espoliaram de tal modo o país que desde então as pessoas começaram a morrer de fome. Muitos, na verdade, morreram, e os sobreviventes comiam ervas e raízes, bem como as crianças e doentes, além de cadáveres há pouco enterrados [...] O imperador e os eleitores ouviram comovidos os pomerânios, mostraram seu profundo interesse e deixaram as coisas como estavam. Dado o sistema político em que viviam e exerciam suas funções, dada a mentalidade e o sentimento então vigentes nos círculos principescos, não se podia esperar mais deles. Além disso, durante a Guerra dos Trinta Anos, nenhum senhor alemão passou fome fosse por um dia [...] A gente comum podia morrer de fome ou se alimentar, de forma obscena, de carne humana, mas nas salas de banquete do imperador, dos eleitores e dos bispos o antigo costume alemão de se empanturrar e de beber nunca foi abandonado. Cheios de bifes e vinho, os príncipes podiam suportar os sofrimentos dos súditos com grande força." (Huxley, 1966, p. 242-3.)
A Pomerânia era apenas o início. Outras regiões do Império, nos anos sucessivos, sofreram uma "[...] escassez que fez morrer dezenas de milhares de pessoas e transformou em canibais muitos dos sobreviventes. Os cadáveres, ainda pendurados, dos malfeitores eram tirados das forcas para que servissem de alimento nas mesas, e quem houvesse perdido algum familiar recentemente era obrigado a montar guarda nos cemitérios, para impedir a atividade dos ladrões de cadáveres" (Huxley, 1966, p. 279).
Muitas vezes, quando um exército era derrotado, os soldados debandados vagavam a esmo como animais, procurando desesperadamente algo para comer, e se não encontravam o que pilhar, morriam às centenas.
A Paz de Westfália (1648) marcou o fim da guerra. Suécia, França e Brandemburgo obtiveram importantes cessões territoriais. A Espanha reconheceu a independência da Holanda. Os príncipes alemães, católicos e protestantes, obtiveram a independência de fato, enquanto a autoridade imperial se tornava pouco mais que uma formalidade.
Teoricamente, foi reconhecido a todos os súditos dos vários principados o direito de professar em particular a religião que preferissem, mas esta cláusula, por muito tempo, seria apenas letra morta.
Do ponto de vista econômico, social e humano, as conseqüências foram desastrosas.
Em 1618, a Alemanha possuía cerca de 21 milhões de habitantes. Em 1648, a população caíra para 13 milhões.
"Em um período em que os índices da população em toda a Europa mostravam um ritmo ascendente, as terras a oriente do Reno perderam mais de um terço de sua população em conseqüência dos massacres, da escassez, das privações e das doenças." (Huxley, 1966, p. 301.)
Algumas das áreas mais atingidas, como a Boêmia, tinham perdido até 50% da população.
Segundo Polisensky, levando em conta a alta mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida na época, envolveram-se no conflito não menos de cem milhões de pessoas! Os pobres sofreram as conseqüências da guerra muitos anos depois que ela acabou.
O escritor Aldous Huxley nos dá um vivido retrato daquele período: "No século XVII, não havia produção em massa de explosivos, e estes não eram muito eficazes [...] Só se destruiu o que podia ser queimado com facilidade, ou seja, as casas e principalmente as cabanas dos pobres. Cidades e campos sofriam de modo quase igual em decorrência da guerra: os habitantes foram espoliados de seu dinheiro e perderam seu comércio; os camponeses foram espoliados de seus produtos e perderam suas casas, ferramentas, sementes e animais. A perda de bovinos, ovinos e suínos foi especialmente grave [...] um patrimônio zootécnico depauperado requer um tempo bem longo para ser reconstruído. Duas ou três gerações se passaram antes que naturalmente se preenchessem os vazios deixados pelas depredações..."
Os exércitos debandados também representavam um problema. Os "[...] anos de guerra [...] tinham criado em toda a Europa uma classe de aventureiros das armas, sem terra, sem casa, sem família, sem nenhum sentimento natural de piedade, sem religião ou escrúpulo, sem saber nenhum ofício além do da guerra e só capazes de destruir [...] A desmobilização foi gradual e se estendeu por um dado período de anos; mas nem assim faltaram confusões, e muitos mercenários nunca mais voltaram à vida em sociedade, mantendo, como bandidos, rufiões e assassinos profissionais, o caráter de parasitas adquirido durante os longos anos de guerra". (Huxley, 1966, p. 270.)
As cidades e os Estados estavam grandemente endividados com os banqueiros, e essas dívidas atingiram as populações ainda por muitos anos, sob forma de tributos e confiscos.
CAPÍTULO 13
Colonialismo e escravidão
Antes de 1492, os Estados cristãos do Ocidente lutavam entre si dentro de uma bacia bem restrita: a Europa, a África do Norte e as terras banhadas pelo Mediterrâneo. Após a façanha de Colombo, essas lutas se espalharam pelo mundo todo, com a bênção das várias Igrejas. O próprio Cristóvão Colombo (que, não nos esqueçamos, inaugurou a descoberta do novo continente com a captura de alguns escravos) sonhava que, com o ouro das índias, o reis da Espanha poderiam realizar uma Cruzada para libertar a Terra Santa.1 Foi um pontífice, Alessandro VI Bórgia (1492-1503), que dividiu, com a bula Inter Caetera, o globo terrestre entre as nascentes potências coloniais católicas. Uma linha de alto a baixo dividia em dois o mapa: metade era reservada à Espanha, outra, a Portugal.
Quando Colombo desembarcou em Cuba, a população da ilha somava cerca de oito milhões de habitantes. Quatro anos depois, estava mais do que dizimada. Depois que os cubanos em parte foram exterminados, os espanhóis começaram a importar escravos de outras ilhas do Caribe. Assim, "milhões de autóctones da região caribenha foram efetivamente liquidados em menos de um quarto de século".2
O trabalho de conquista, exploração e sujeição das populações do continente americano foi levado adiante pelos conquistadores, comandantes de exércitos a serviço dos reis da Espanha e da fé católica. Estes tinham ao seu lado corajosos sacerdotes. Hernán Cortês, Francisco Pizarro, Hernando De Soto, Pedro de Alvarado e centenas de outros, aproveitando-se da superioridade tecnológica e militar de que gozavam, destruíram florescentes civilizações como a inca, a maia e a asteca. As conseqüências das conquistas foram milhões de mortos e um estado de dependência evidente até hoje.
As Américas
Desde o início, o massacre dos nativos americanos foi "abençoado por Deus". Nos "Contos Astecas sobre a Conquista",3 colhidos pelo clero franciscano, lê-se que Cortês era apoiado pelo Estado Pontifício: "Esta era a vontade do papa, que dera seu consentimento à vinda deles". Além disso, sabemos que o famoso conquistador andava sempre com um sacerdote do lado.
Mas quantos mortos a conquista auspiciada por Deus e conduzida pelas mãos dos conquistadores deixou? No México, só a título de exemplo, a população passou de 12 milhões, em 1519, a menos de 1,3 milhão na metade de 1600. Noventa por cento da população local havia sido exterminada.4, No início do século XVI, a população nativa do continente centro e sul-americano girava em torno de setenta milhões de pessoas. Na metade do século XVII, havia sido reduzida a sete milhões.5 E em países como o Brasil, a Guatemala ou a região mexicana do Chiapas a dizimação dos índios acontece até hoje.
Os conquistadores não eram muito sutis. Se um povoado resistia, avançavam matando todos os habitantes que encontravam no caminho. As crônicas da época falam de "incontáveis cadáveres" espalhados por toda parte e de seu fedor "penetrante e pestilento".6 Muitos relatos acerca das atrocidades vieram dos próprios missionários e dos funcionários imperiais ou mesmo dos conquistadores.
Para entender quem eram, basta citar alguns episódios. Cortês, para coibir uma rebelião popular, convocou sessenta caciques (dignitários astecas) e ordenou que cada um levasse consigo o próprio herdeiro. Então, mandou queimá-los vivos na presença de seus parentes e advertiu os herdeiros para que conhecessem a inconveniência de desobedecer os espanhóis.
Um povo nativo, guiado pelo chefe indígena Hatuey, tentou se rebelar contra a escravidão. Tentaram uma fuga em massa, mas foram novamente capturados pelos espanhóis. Hatuey foi queimado vivo. "Quando o amarraram ao patíbulo, um frade franciscano implorou insistentemente para que abrisse seu coração a Jesus, de modo que sua alma pudesse subir aos céus, em vez de se precipitar na perdição. Hatuey respondeu dizendo que se o Céu era o lugar reservado aos cristãos, ele preferia de longe ir para o Inferno."7
Seu povo também teve uma sorte parecida: "Os espanhóis gostavam de imaginar todo tipo de atrocidade ainda não cometida [...] Chegaram a construir forcas enormes em que os pés mal tocavam o chão (para evitar o sufocamento) e penduraram em cada uma — em honra do redentor e dos 12 apóstolos — grupos de 13 indígenas, colocando embaixo lenha e brasas e queimando-os vivos."
Em ocasiões parecidas, inventaram outras gracinhas: "Os espanhóis arrancavam o braço de um, a perna ou a coxa de outro, para arrancar de um só golpe a cabeça de alguém, de modo não muito diferente de como faz um açougueiro, que esquarteja as ovelhas para o mercado. Seiscentas pessoas, incluindo caciques, foram esquartejadas como animais ferozes... Vasco de Balboa fez quarenta delas serem devoradas pelos cães." (Standard, 2001.)
Às vezes, as mortes não tinham nenhuma finalidade prática, mas eram um simples ato arbitrário. Por exemplo, em 1517, nas ilhas caribenhas, "alguns cristãos encontraram uma índia que segurava uma criança em um braço, dando-lhe de mamar. Como os cães que os acompanhavam estavam famintos, tiraram o menino dos braços da mãe e o jogaram vivo como alimento para os cães, que o fizeram em pedaços diante dos olhos da mulher [...] quando havia mulheres que haviam parido há pouco entre os prisioneiros, se os recém-nascidos começassem a chorar, pegavam-nos pelas pernas e os batiam contra as pedras ou os jogavam em plantas espinhosas para que acabassem de morrer" (Todorov, 1997, p. 169).
Outro grave episódio foi o massacre de Caonao, em Cuba, presenciado pelo mesmo Las Casas. Uma centena de espanhóis armados, para verificar se suas espadas estavam bem afiadas, "começaram a estripar, perfurar e massacrar ovelhas e cordeiros, homens e mulheres, idosos e crianças que estavam tranqüilamente sentados ali perto, observando maravilhados os cavalos e os espanhóis". Não contentes com o massacre ao ar livre, entraram em uma casa grande e "começaram a assassinar, cortando e furando todos aqueles que ali se encontravam: o sangue escorria por toda parte, como se um rebanho de vacas tivesse sido morto... A visão das feridas que cobriam os corpos dos mortos e dos moribundos era um espetáculo horrível e assustador... os golpes sobre os corpos completamente nus e sobre aquelas carnes delicadas haviam partido ao meio um homem com um único golpe" (Todorov, 1997, p. 172).
O viajante Pietro Martire assim descreve a expedição de Vasco Nunez de Balboa: "Assim como os açougueiros cortam em pedaços a carne dos bois e das ovelhas para vendê-la pendurada em ganchos, os espanhóis arrancavam com um só golpe o traseiro de um, a coxa de outro, as costas de outro ainda. Consideravam-nos animais isentos de razão... Vasco mandou os cães esquartejarem quarenta deles".8
Ainda em 1550, o monge Jerônimo de San Miguel denunciou que os espanhóis "queimaram vivos alguns índios, arrancaram mãos, nariz, língua e membros de outros; outros foram jogados aos cães; mulheres tiveram os seios cortados..." O bispo de Yucatán, Diego de Landa, disse ter visto "uma grande árvore com galhos onde um capitão havia enforcando várias índias; e em seus tornozelos pendurara, pela garganta, seus filhos. [...] E se durante o transporte os indígenas, arrastados com a corda no pescoço, não andassem animados como seus companheiros, os espanhóis cortavam sua cabeça, para não precisar parar para desamarrá-lo".9
Um cronista de 1570 fala de um "oidor" (juiz) "que afirmava em público, de cima de seu tablado e em voz alta, que se faltasse água para irrigar as fazendas dos espanhóis, seria utilizado o sangue dos indígenas".
Uma conquista "legal"
A base "legal" da conquista era o Requerimiento, um documento que os funcionários espanhóis liam, obviamente em espanhol, aos povos que pretendiam submeter antes de dar início aos combates. O documento começava com uma breve história da humanidade, na qual surgia uma figura central, Cristo, definido como o "chefe da estirpe humana". Cristo transmitiu seu poder a São Pedro, e este, aos papas, seus sucessores. Um desses papas deu o continente americano aos espanhóis, que eram seus legítimos governantes. Se os "índios" se submetessem aos espanhóis "de boa vontade", manteriam o status de homens livres, do contrário seriam capturados como escravos. "Com isso, garanto e juro que, com a ajuda de Deus e com a nossa força, penetraremos em suas terras e faremos guerra contra vocês [...] para submetê-los ao jogo e ao poder da Santa Igreja [...], causando-lhes todo prejuízo possível e de que somos capazes, como convém a vassalos obstinados e rebeldes que não reconhecem seu senhor e não querem obedecer, mas se opor a ele." (Standard, 2001, p. 66.)
Em 1550, o conquistador Pedro de Valdívia enviou uma relação sobre a guerra contra os arauaques, nativos do Chile, ao rei da Espanha. Nela se lê, entre outras coisas: "Mandei cortar o nariz e as mãos de duzentos deles, para puni-los por sua insubordinação".10 O conquistador Oviedo chegará a afirmar: "Quem irá negar que usar a pólvora contra os pagãos é como oferecer incenso a Nosso Senhor?"11
As guerras de conquista, além de assassinatos, provocavam a morte de vários índios em decorrência da escassez que se sobreveio a elas. Durante a guerra para a conquista da Cidade do México, os espanhóis destruíram as colheitas e se viram a ponto de ter eles próprios problemas com as provisões de milho.
Grande parte da população nativa foi reduzida à escravidão diretamente, capturada pelos espanhóis, ou indiretamente, não conseguindo pagar os pesados tributos impostos pelos novos dominadores. Eis o que escreve um cronista da época: "Os impostos que recaíam sobre os índios eram tão altos que muitas cidades, não conseguindo pagá-los, vendiam aos usurários as terras e os filhos dos pobres; mas como os empréstimos eram freqüentes demais, e os índios não podiam se livrar nem vendendo tudo que tinham, algumas cidades se esvaziaram completamente e outras perderam parte da população."12
O governador da Cidade do México, Nino de Guzmàn, escravizou dez mil nativos em uma população total de 25 mil. Os sobreviventes abandonaram os vilarejos por medo de ter a mesma sorte. Muitas vezes, aqueles que não conseguiam pagar os impostos eram punidos com a tortura ou o cárcere.
Os índios escravizados, em especial nos primeiros anos da Conquista, eram tratados como animais de matadouro. Las Casas denunciou episódios de espanhóis que davam a carne de índios trucidados aos animais no pasto e aos cães; nativos eram abertos para que se extraísse sua gordura (à qual se atribuíam qualidades medicinais) ou tinham as extremidades horrendamente mutiladas (nariz, mãos, seios, língua, órgãos genitais).13
Outro episódio também denunciado por Las Casas mostra que os nativos eram em todos os aspectos tratados como animais: um "homem indigno se vangloriou e se jactanciou — sem mostrar nenhuma vergonha —, diante de um religioso, de ter feito de tudo para engravidar muitas mulheres índias, a fim de conseguir um preço melhor ao vendê-las como escravas grávidas".14
Os nativos não pereciam só pela espada ou pela pólvora, mas também pelas condições de vida desumanas impostas pelos conquistadores. Turnos de trabalho massacrantes, desnutrição, doenças trazidas pelos conquistadores, às quais seu organismo não estava acostumado. Todas essas causas fizeram mais vítimas do que guerras ou massacres juntos.
Também foi grande o número de indígenas mortos durante o trabalho de construção da Cidade do México e de demolição dos "templos do Diabo", ou seja, templos de sua religião tradicional. Houve quem caísse dos andaimes, quem fosse esmagado por traves ou quem ficasse embaixo de prédios demolidos. Os índios empregados no trabalho de demolição não só não eram remunerados, como tinham que procurar sozinhos seus materiais.
A expectativa de vida para quem era obrigado a trabalhar nas minas de ouro era de 25 anos. Os serviços de aprovisionamento nas minas também era de um cansaço extenuante. Os índios encarregados do trabalho percorriam a pé, sobrecarregados de peso, distâncias de quase 100 quilômetros. Muitas vezes, suas próprias provisões terminavam antes de chegarem ao destino, e, quando chegavam, podiam ser pegos para trabalhar nas minas por vários dias sem receber nenhuma alimentação suplementar. Muitos morriam de fome e de cansaço nas minas ou na estrada de volta.
"Os corpos dos índios e dos escravos mortos nas minas produziam uma exalação tão fétida que deles nasceu uma pestilência, sobretudo nas minas de Guaxaca. Até um raio de meia légua de distância, e por grande parte da estrada, não se fazia nada além de caminhar sobre cadáveres ou montes de ossos, e os bandos de pássaros e corvos que chegavam para devorá-los eram tão grandes que tapavam o sol. Assim, muitos povoados se esvaziaram ao longo da estrada e nos arredores."15
As transferências de mão-de-obra por navio de um local de trabalho extenuante a outro também não eram livres de vítimas. "Toda vez que os índios eram transferidos, tantos morriam de fome durante a travessia que o rastro deixado pelos corpos seria suficiente — acreditamos — para guiar outra embarcação até o porto. [...] Depois que mais de oitocentos índios eram transferidos a um porto daquela ilha chamado Porto de Plata, esperavam-se dois dias antes de fazê-los descer da caravela. Deles, seiscentos morriam e eram jogados no mar: boiavam como grandes tábuas de madeira." (Todorov, 1997, p. 166.)
Obviamente, entre os abusos daqueles que os vigiavam estavam os sexuais. Falando da condição dos operários em uma mina, um cronista notou que cada capataz "tinha adquirido o hábito de ir para a cama com as índias que dependiam dele, se o agradassem, fossem elas virgens ou casadas. Enquanto o capataz estava com uma índia na cabana, o marido era enviado para extrair ouro nas minas; de noite; quando o pobre voltava para casa, não só o capataz o enchia de pauladas ou chicotadas por não ter pego bastante ouro, como muitas vezes amarrava suas mãos e pés e o jogava debaixo da cama como um cão, enquanto se deitava em cima, com a mulher".16
Os missionários e o assassinato da alma
Com a conquista e a cristianização forçada, os índios não foram mortos apenas fisicamente, mas também moralmente. Sob esse aspecto, é exemplar o caso do povo dos lucaianos, deportados em massa pelos espanhóis com seu engodo. Os conquistadores, com a cumplicidade dos padres, conseguiram convencê-los de que os estavam levando para uma Terra Prometida, onde encontrariam todos seus parentes já mortos.
"Como os padres os encheram de falsas crenças e os espanhóis as confirmaram, abandonaram sua pátria para correr atrás daquela vã esperança. Tão logo entenderam que tinham sido enganados, já que não encontraram nem seus pais, nem outras pessoas que queriam reencontrar, enquanto eram obrigados a aturar condições extenuantes e trabalhos pesados com os quais não estavam acostumados, se desesperaram. Ou se suicidavam, ou decidiam se deixar morrer de fome e faziam jejum, recusando-se a comer a qualquer custo." (Todorov, 1997, p. 166.)
O bispo de Zumarraga escreveu ao rei da Espanha que os nativos "não procuram mais as mulheres para não gerar escravos". Las Casas denunciava que "marido e mulher não ficavam juntos nem se viam por oito ou dez meses ou por um ano inteiro; quando no final se encontravam, estavam tão cansados e prostrados de fome e dos trabalhos, tão acabados e enfraquecidos, que mal se importavam em ter relações conjugais. Assim, pararam de procriar. Os recém-nascidos morriam logo, pois as mães — cansadas e famintas — não tinham leite para alimentá-los. Quando estive em Cuba, sete mil crianças morreram em três meses por esse motivo. Algumas mães afogavam os filhos por desespero; outras, ao perceber que estavam grávidas, abortavam com o auxílio de algumas ervas que fazem parir filhos natimortos. Trata-se... de um assassinato econômico, e os colonizadores têm toda a responsabilidade" (Todorov, 1997, p. 166).
Missionários abençoaram os massacres e as tragédias, e os reis da Espanha instituíram na América, além das missões, tribunais de Inquisição destinados a punir todos os indígenas que insistissem em seguir seus próprios cultos tradicionais. Filipe II chegou ao ponto de instituir uma inquisição "de galeras", um tribunal itinerante com o objetivo de descobrir e punir os hereges nos navios durante as longas travessias oceânicas.17
Por outro lado, não faltavam sacerdotes que se interessavam genuinamente pelas condições de vida dos indígenas e denunciaram com força os abusos, as atrocidades e os massacres. O caso mais famoso foi provavelmente o do bispo Bartolomé De Las Casas, que escreveu vários livros sobre as condições de vida dos nativos americanos e defendeu sua causa junto aos reis da Espanha.
Sabendo com quem estava lidando, Las Casas e os outros sacerdotes apelaram não só aos seus sentimentos, mas também à utilidade econômica de uma política de clemência. Las Casas, em um relatório, afirmou que a realização de suas propostas seria "de grande proveito para Sua Alteza, cujos rendimentos aumentariam proporcionalmente". E o eclesiástico Motolinia escreveu: "Os espanhóis não percebem que, se não fossem os frades, não teriam mais empregados em suas casas e em suas terras, pois teriam matado todos, como aconteceu em Santo Domingo e em outras ilhas, onde os índios foram exterminados." Mas se os nativos não podiam mais ser utilizados em funções pesadas, quem trabalharia nas plantações e nas minas, quem construiria as casas dos novos dominadores?
Os conquistadores encontraram uma solução pior que o mal: importar da África escravos negros.
Os sacerdotes "bons" também se preocuparam em aprender a língua e os costumes dos nativos, para tornar mais eficaz sua obra de conversão e transformar os indígenas em perfeitos cristãos.
O franciscano Bernardino de Sahagün, docente de um colégio de Tlatelolco destinado aos descendentes da antiga nobreza asteca, obtém resultados extraordinários no ensino do latim. De início, como ele mesmo conta, os espanhóis e os monges das outras ordens caçoaram de seus esforços, pois os índios eram considerados animais, "obtusos como asnos". Mas quando perceberam que o grupo de estudantes tinha feito grandes progressos, alarmaram-se: "Para que lhes ensinar a gramática? Não corriam o risco de se tornar hereges? Diziam também que lendo as Sagradas Escrituras constatariam que os antigos patriarcas tinham muitas mulheres, exatamente como eles".18 Um funcionário de Carlos V escreveu: "É bom que eles sejam catequizados, mas saber ler e escrever é tão perigoso quanto se aproximar do Diabo".
Em suma, instruir os índios era positivo, mas até certo ponto. Por um lado, os nativos não tinham direito de seguir as próprias tradições e a própria cultura, por outro, não lhes era permitida nem a possibilidade de se integrarem à nova sociedade e se tornarem "pares" dos espanhóis.
Em 1579, em uma petição à Inquisição, os superiores das ordens agostiniana, dominicana e franciscana pediram que fosse proibida a tradução da Bíblia nas línguas indígenas.19
América do Norte
O script se repete, com poucas variações, na conquista inglesa da América do Norte. Lá também os colonos justificaram a invasão com a necessidade de levar o Evangelho e de "edificar um bastião contra o reino do anticristo".20 Os brancos logo começaram a expulsar os nativos de suas terras, e isso apesar de os primeiros colonizadores terem conseguido sobreviver ao inverno rigoroso graças à ajuda dos "índios". Também lá, as guerras, massacres, prepotência e epidemias exterminaram grande parte dos povos indígenas. De 10 a 12 milhões de nativos que povoavam o atual território norte-americano antes da colonização, só restaram 250 mil.21
A epidemia de varíola, que exterminou cerca de dois terços da população indígena, foi vista pelos colonizadores como um dom divino. Eis o que escreve, em 1634, o governador de Massachusetts: "Quanto aos indígenas, quase todos morreram de varíola, e assim o Senhor confirmou nosso direito de continuar o que fazemos".22
Para os nativos da América do Norte, a guerra não era um fenômeno desconhecido, mas os combates entre as tribos de peles-vermelhas nunca assumiram a crueldade dos embates entre ocidentais. Os padres peregrinos (os primeiros colonizadores que deram origem aos Estados Unidos da América) notavam com estupor que "suas guerras não são nem de longe tão cruéis" quanto as européias, e acontecia até "de guerrearem por sete anos sem que sete homens perdessem a vida". Além disso, os índios, no combate, poupavam mulheres e crianças do adversário.
Bem diferentes eram os costumes dos "civilizadores" cristãos: "Quando um índio era acusado por um inglês de roubar uma xícara e não a devolvia, a reação inglesa era logo violenta: atacavam os índios ateando fogo ao povoado todo".23 Citemos, por exemplo, dentre as inúmeras guerras índias que ocorreram entre 1600 e 1800, a dos pequots, antigos habitantes do atual Massachusetts.
De início, os colonos entraram em guerra com outro povo, o dos narragansett, responsáveis, talvez, pela morte de um inglês. Mas, com o tempo, encontraram a tribo dos pequots, que também eram inimigos dos narragansett, e em vez de reunir forças contra um inimigo em comum, os cristãos os atacaram e destruíram seus povoados. Talvez tenham pensado que um índio valia por outro. O comandante dos puritanos, John Mason, assim descreveu um dos massacres: "O Onipotente incutiu tanto terror a suas almas, que fugiram diante de nós se jogando nas chamas, onde muitos pereceram... Deus abria as asas sobre eles e escarnecia de seus inimigos, os inimigos de seu povo, tornando-os estacas ardentes... Assim o Senhor castigou os pagãos, alinhando seus corpos: homens, mulheres e crianças. Assim o Senhor quis dar um chute no traseiro de nossos inimigos, dando-nos, em compensação, suas terras."24
Outro puritano,25 Underhill, conta que "o espetáculo sanguinário foi impressionante para os jovens soldados", mas logo lembra: "Às vezes a Santíssima Trindade ordena que as crianças pereçam com seus pais".
O massacre continuou até que os pequot foram exterminados quase por completo. Muitas outras tribos sofreram a mesma sorte. Vários nativos caíram vítimas de campanhas de envenenamento, algo terrivelmente parecido com as "desratizações" atuais. Os colonos chegaram a adestrar cães para farejar os índios, arrancando os pequenos dos braços das mães e destroçando-os. Para usar suas próprias palavras: "Cães ferozes para caçá-los e cães policiais ingleses para o ataque".
Quando as mulheres e crianças eram poupadas, era apenas para serem vendidas como escravas nos mercados das Antilhas ou da África do Norte, de onde nunca ninguém voltou. A utilização de jovens indígenas como escravas era um verdadeiro símbolo de status. Se alguma desgraçada tentava fugir, era marcada com fogo.
O pastor Roger Williams, por ter ousado declarar que aos olhos de Deus a fé dos nativos valia tanto quanto aquela dos brancos e por ter comprado a terra, em vez de tomar posse dela, foi expulso de sua colônia junto com uma dúzia de seguidores.
Uma inscrição no túmulo de um puritano do século XVII resume bem o clima da época: "Em memória de Lynn S. Love, que, durante sua vida, matou 98 índios que o Senhor lhe destinara. Ele pretendia elevar o número a 100 [...] quando dormiu nos braços de Jesus".26
HECATOMBE
Em New Hampshire e em Vermont, antes da chegada dos ingleses, a população de abenakis somava 12 mil pessoas. Menos de cinqüenta anos depois, restavam apenas 250.
O povo dos pocumtuck chegava a 18 mil. Duas gerações depois, seu número havia caído para 920.
Os quiripi-unquachog eram pelo menos trinta mil antes da chegada dos ingleses. Eles também foram exterminados no intervalo de duas gerações: os sobreviventes não somavam mais de 1.500.
A população nativa de Massachusetts, inicialmente composta de pelo menos 44 mil pessoas, cinqüenta anos depois estava reduzida a apenas seis mil componentes.
E a horrível lista poderia continuar... Tenhamos em mente que a colonização americana estava apenas começando. A grande epidemia de varíola do biênio 1677/78 ainda não tinha chegado, nem a epopéia do Faroeste. Calcula-se que entre 1500 e 1900, nas duas Américas, 150 milhões de pessoas perderam a vida. Destas, dois terços por causa de epidemias (a partir de 1750, muitas vezes provocadas intencionalmente, através de presentes infectados), e cinqüenta milhões diretamente por atos de violência dos conquistadores, em decorrência da escravidão ou de tratamentos desumanos.
Os exterminadores partilhavam seus relatórios sobre os massacres com entusiásticos boletins de guerra e citando as Escrituras: "É a vontade de Deus, que, no final das contas, nos dá motivos para exclamar: 'Como é grandiosa sua bondade! E como é esplêndida sua glória!'" E ainda: "Até que nosso Senhor Jesus o mandou inclinar-se diante dele e lamber a pólvora!"
Em 1703, o pastor Salomão Stoddard, uma das mais influentes autoridades religiosas na Nova Inglaterra, fez um pedido formal ao governador de Massachusetts para que se estendessem aos colonizadores as contribuições econômicas para "adquirir grandes matilhas de cães e para adestrá-los para caçarem índios como o fazem com os ursos".27
Em 1860, o religioso Rufus Anderson comentou a respeito do banho de sangue, que até então havia exterminado pelo menos 90% da população autóctone das ilhas do Havaí, definindo-o como um fato natural, comparável à "amputação das membranas doentes de um organismo".
Os peles-vermelhas eram considerados menos do que humanos e ninguém tinha obrigação de respeitar a palavra dada a eles. Os tratados de paz eram estipulados já com a intenção de serem violados. Por exemplo, o Conselho de Estado da Virgínia declarou que, se os nativos "ficam mais calmos depois que um tratado é firmado, temos não só a vantagem de pegá-los de surpresa, como de roubar seu milho".28
Em 1851, foram instituídas as "Reservas Indígenas", que eram verdadeiros campos de concentração onde os povos nativos eram presos.
Desde então, passaram-se 150 anos, mas ainda hoje, nas Reservas, as condições de vida são terríveis. No final dos anos 1990, algumas registravam uma mortalidade neonatal de 10%, enquanto entre os brancos a taxa era de 8,1 por mil nascimentos. Ainda nas Reservas, uma criança a cada três morria até os seis meses. E a expectativa de vida de um nativo era claramente inferior à de um branco (63 anos contra 76). O percentual de suicídios entre os nativos era o dobro daquele da população branca, além de 75% deles sofrerem de problemas de desnutrição.25
África, Ásia e Oceania
A primeira conquista colonial do território africano ocorreu em 1344, quando o almirante de la Cerda conquistou as Ilhas Canárias. O feito foi ordenado pelo papa Clemente VI. Depois, por volta de 1400, os portugueses começaram a penetrar nas costas de Angola e da Guiné. Conseguiram o feito graças a "tratados" com as populações locais, ludibriadas pelos missionários.
Todas as interiorizações seguintes se iniciaram assim, com os missionários inaugurando as conquistas européias. Se os africanos não cedessem, os próprios religiosos informariam aos conquistadores que chegara o momento de recorrer às armas. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Kilwa, em 1505. Os habitantes das cidades não permitiram a criação de missões nos arredores, pois sabiam muito bem que eram um pretexto para o estabelecimento de antepostos militares. Então, os missionários franciscanos informaram os portugueses, que destruíram totalmente a cidade. Os missionários abençoavam os massacres, mas logo perceberam que não havia comparação entres as riquezas que os portugueses conseguiam acumular na África e as migalhas que mandavam à Santa Sé. Assim, eles arregaçaram as mangas e trataram de conseguir, no início do século XVI, seus próprios escravos. O papa tentou até a conquista militar da África (por exemplo, em 1540, o exército de Deus atacou o então reino etíope), mas considerou mais conveniente ser o intermediário da conquista, ganhando, com isso, escravos e latifúndios.
Logo o tráfico de escravos da Santa Sé se intensificou. Em 1650, a Companhia de Jesus possuía tal quantidade de escravos, que impressionava até os portugueses, e utilizava sua própria frota, adaptada ao seu transporte.
Os nativos fizeram eclodir verdadeiras revoltas antimissionárias, e os sacerdotes se viram "obrigados" a demonstrar determinação. Quando os escravos ousavam se rebelar, eram torturados publicamente. Em 1707, estourou uma revolta de escravos em Madagascar. Os missionários, no caso calvinistas, torturaram os rebeldes em praça pública e estrangularam uma escrava.
Na África do Sul, a Igreja também se colocou sempre ao lado dos bôeres (colonizadores brancos de origem holandesa). Tanto que, quando em 1837 os zulus se insurgiram contra o roubo de suas terras, os missionários ajudaram os brancos a chegar perto de seus povoados. Foram massacrados quatrocentos africanos, sobretudo mulheres, idosos e crianças.
Em compensação pela atividade e preciosa participação missionária na conquista da África, as potências coloniais doaram à Igreja enormes latifúndios e entregaram às missões o monopólio da educação e da saúde.
A África, antes da chegada dos brancos, possuía um sistema amplo de assistência sanitária. Não havia povoado em que um terapeuta tradicional não pudesse curar, com misturas de ervas e minérios moídos, quem quer que pedisse. Todas essas práticas e remédios foram tornados ilegais, para garantir o monopólio sanitário das missões. Mas como estas não estavam amplamente difundidas no território, a maior parte dos vilarejos africanos ficou sem possibilidade de tratamento. Foi um massacre. No que diz respeito à educação, foram apagados milênios de história africana para educar os negros à superioridade branca. As missões ensinavam a história da Europa e a palavra de Deus. Com o bastão e o chicote, extinguiu-se a cultura de um continente.
As etapas da opressão
Em 1341, uma expedição ítalo-portuguesa fundou um povoado nas Ilhas Canárias. Estas eram habitadas por um povo de origem africana, os guanchos. Seu número, antes do desembarque dos europeus, fora calculado em cerca de oitenta mil indivíduos. Em 1344, o papa Clemente VI ordenou que o almirante francês de origem espanhola Louis de la Cerda conquistasse as Canárias.
Foi o primeiro ato consciente de colonialismo europeu após as Cruzadas, e os guanchos foram o primeiro povo a ser totalmente exterminado. Em 1496, um indígena fez sinal para os soldados cristãos se aproximarem, e suas palavras entraram para a história: "Não há ninguém mais para combater: estão todos mortos".
Em 1441, Antônio Gonçalves, de volta do Rio de Oro, ofereceu dez escravos africanos a Henrique, infante de Portugal. Este os ofereceu ao papa Martinho V, que, por sua vez, concedeu a Portugal a "soberania" sobre a África ao sul do Cabo Branco. A aceitação dos escravos por parte do pontífice e sua sucessiva concessão deram a Henrique a prova do consentimento do papa quanto ao tráfico de escravos.
Em 1460, os jesuítas convenceram Ngola, rei angolano-congolês do povo quimbundo, a conceder a Diaz de Novais, o navegador, a permissão para capturar escravos e levá-los para Lisboa. Os reinos de Angola e do Congo começaram a se separar por causa do tratado. Entre 1480-1500, os portugueses entraram na Guiné graças a tratados do gênero, feitos através de logros entre os missionários e os chefes tribais da Guiné e de Angola.
Em 1490, um certo Uoulof levou o chefe tribal a expulsar todos os missionários. Os soldados portugueses o mataram por isso, mas a resistência continuou a agir e impediu o estabelecimento de outros missionários.
Em 1505, a cidade de Kilwa resistiu aos missionários e à conquista. Foi saqueada e destruída enquanto os missionários abençoavam o massacre. Em 1508, os missionários enviados ao Congo criaram um comércio próprio de escravos. Em 1529, os portugueses incendiaram e pilharam Mombaça, em represália às revoltas populares contra invasores e missionários. O tráfico de escravos esvaziou as regiões do Congo.
Em 1534, São Tomé, sede principal do comércio, foi declarada cidade e arcebispado submisso aos missionários brancos. Em 1540, o Estado da Igreja tentou uma colonização militar do então reino etíope de Ambara-Galla-Harar.
Em 1553, uma nova missão jesuíta chegou a Mbanza, no Congo, onde se ocupou também do tráfico de escravos. Em 1600, Francisco de Almeida, os jesuítas e os colonos eram os donos absolutos das costas de Angola, mas não ainda do interior. Em 1628, os missionários ampliaram a própria influência e ganharam da resistência africana. Foram conquistados novos territórios na África oriental.
Em 1633, o cardeal Richelieu concedeu à Companhia Senegalesa de Dieppe e Rouen o monopólio do comércio de escravos por dez anos. Em 1650, os missionários da Zambésia foram desmoralizados pela prolongada resistência africana. Os dominicanos dispunham de enormes propriedades imobiliárias e da mão-de-obra escrava. Os jesuítas intensificaram sua participação no comércio de escravos em Angola e se tornaram latifundiários, como em Moçambique. A Companhia de Jesus possuía uma frota de navios particulares para o transporte dos escravos.
Em 1660, os capuchinhos estabelecidos nas colônias portuguesas falaram de uma ampla hostilidade dos africanos para com eles. Só em Goréé, nos duzentos anos seguintes, foram "exportados" vinte milhões de escravos.
Em 1676, as revoltas contra os missionários latifundiários e escravocratas obrigaram os bispos portugueses a abandonar São Salvador, na Angola setentrional. Em 1694, a maior parte das igrejas do país havia sido demolida pela resistência antiescravista africana.
Em 1700, os escravistas e os missionários retomaram Angola, mas a parte setentrional do país e São Salvador eram praticamente desertas e despovoadas, por causa do comércio de escravos. Calcula-se que, desde o início do tráfico, foram massacrados 25 milhões de africanos. Os missionários, com notável precisão, atribuíram o declínio moral e material do continente negro à resistência africana.
Em 1707, na África do Sul, um escravo iniciou uma revolta. Os missionários holandeses, a título de demonstração, torturaram quatro rebeldes com a roda e estrangularam uma escrava com as mãos.
Em 1721, na África do Sul, os missionários holandeses obrigaram as crianças nativas a serem batizadas, mas proibiram que os escravos, pais das crianças, presenciassem a cerimônia.
Em 1781, os bantos xhosas e os khoi-khoin, guiados pela rainha Hoho, rebelaram-se contra o roubo de seus animais e de suas terras. Resistiram por alguns anos, mas, no final, o exército branco, de grandes dimensões, os derrotou. Os sobreviventes, em 1792, foram conduzidos à missão de Baviaanskloof, a partir de onde foram distribuídos como escravos aos camponeses brancos.
Em 1800, o missionário Van der Kemp fundou a missão de Bethelsdorp, que serviu de base militar para os ingleses.
Em 1805, os irmãos Albrecht, missionários alemães anglicanos, deram início à conquista alemã, fundando uma missão em Warmbad, no sudoeste da África.
Em 1815, o missionário alemão Schnelen, com a concordância da Igreja e de seu governo, fundou a missão de Betânia, no território dos namas, destinada a desenvolver um papel fundamental no período das conquistas.
Em 1818, com o auxílio dos missionários, os ingleses do Cabo atacaram Makanda, general dos ndlambes.
Em 1819, na Cidade do Cabo, o missionário segregacionista John Philip propôs a formação de uma "cadeia de Estados". Seu governo teria como base as missões. O povo se rebelou, mas os missionários entraram em um acordo com o governo e os militares aplacaram as revoltas com o sangue. Os canhões ingleses abateram três mil xhosas que lutavam para defender a própria terra.
Em 1823, os missionários ocuparam os territórios baralong e criaram chefes fantoches para comandar a guerra contra Moshesh e os rebeldes.
Em 1828, os relatórios do missionário John Philip revelavam os planos dos missionários anglicanos, que pretendiam adotar critérios segregacionistas para escolas, locais públicos e reservas e utilizar um "sistema de tratados" para conquistar e sujeitar os africanos.
Em 1829, a missão de Philipton era a base militar britânica, juntamente com a missão de Glasgow em Balfour. O missionário metodista Shaw armou e sitiou grupos de brancos em Albany e na zona oriental do Cabo. Os colonos de Albany atacaram os negros para ampliar seus latifúndios.
Em 1834, o missionário Philip aconselhou o governador a anexar o Xhosaland e a recorrer ao governo indireto criando chefes fantoches. Mas os xhosas resistiram ao ataque combinado de uma força de vinte mil homens composta de ingleses, bôeres e missionários católicos, wesleyanos e anglicanos.
Em janeiro de 1835, os xhosas foram derrotados pelas tropas do missionário Philip. Os outros missionários seguiram seu exemplo.
Em 1837, graças ao apoio dos missionários católicos e wesleyanos, os bôeres massacraram, em Mosega, quatrocentos zulus, exclusivamente mulheres, velhos e crianças.
Em 1844, os missionários franceses "Pais do Espírito Santo" fundaram a missão de Santa Maria do Gabão e extorquiram "tratados" dos chefes das tribos, que permitiram que os franceses sitiassem o estuário do Gabão.
Em 1853, David Livingstone atravessou a África e chegou às margens do lago Niassa, onde fundou uma missão que transformou uma base contra os nativos, preparando o terreno para os colonos ingleses.
Em 1868, o chanceler alemão Bismarck pediu à Inglaterra para proteger os missionários do sudoeste da África. O governador do Cabo, Sir Philip Wodehouse, respondeu ao apelo do império prussiano, auxiliado pela missão do doutor Hahn, e atacou o povo dos namas. Estes resistiram enquanto puderam, mas, no final, foram exterminados quase por completo. Seu chefe foi punido pelos missionários.
Em 1894, no dia 6 de janeiro, na Drill Hall da Cidade do Cabo, Rhodes agradeceu publicamente às missões anglicanas e católicas, ao Exército da Salvação, ao Movimento dos Jovens Exploradores de Baden Powell e à Sociedade Abolicionista por terem contribuído para a "libertação" da Rodésia dos rebeldes africanos.
Em 1914, a maior parte do território africano pertencia às potências coloniais européias, que confiaram o controle da educação aos missionários cristãos.
Em 1920, a Aliança das Sociedades Missionárias no Quênia pediu à Comissão da África Oriental para não permitir as contratações livres entre empregados e patrões.
Em 1921, no Congo Belga, Kimbangu liderou o movimento anticolonialista. Seguidor de Gandhi, ele pregava a não-violência. Outro movimento de resistência foi liderado por Simon N'Tualani. Os missionários católicos pediram ao governo belga para perseguir os dois líderes e seus grupos, pois se recusavam a trabalhar e pagar impostos aos colonizadores. Kimbangu foi preso, torturado e morto. N'Tualani, por sua vez, conseguiu fugir, mas os missionários conspiraram com o governo colonial para prendê-lo. N’Tualani foi então capturado, junto com 38 mil pessoas, torturado e mantido em cárcere até sua morte.
Em 1926, a Conferência Missionária Internacional condenou as Igrejas africanas "etíopes" separatistas.
Em 1940, em maio, foi firmada uma concordata entre Portugal e o Vaticano que incluiu uma "orientação" missionária católica nas colônias portuguesas.
Em 1946, em Uganda, foi fundado o partido Bataka, cujo programa englobava a requisição de terras para os camponeses e os direitos de cidadania para os negros. Os missionários proibiram os membros do partido de entrar nas igrejas.
Em 1950, nasce o movimento nacionalista ugandense, cujo programa antimissionário previa a redistribuição da terra e um governo próprio.
Em 1953, no Quênia, os missionários, guiados por Crey lançaram uma campanha racista contra as populações kikuyu e mau mau (os guerreiros quenianos independentistas). Foi estipulada a pena de morte para quem prestasse o juramento mau-mau.
Em 1955, graças ao monopólio educacional das missões, o Congo não formou um só engenheiro ou advogado africano.
Em 1960, nas colônias portuguesas, havia mais de cem missões católicas. As atividades "didáticas e educacionais", controladas por essas missões e por outros quinhentos missionários protestantes, eram do tipo segregacionista: não existiam universidades para os negros, e grande parte das crianças em idade escolar não freqüentava as aulas. A assistência sanitária, também controlada pelos missionários, era só para os brancos. Em Angola, a mortalidade infantil era de 50%, havia um médico para cada dez mil habitantes, e quase todos a serviço dos grupos europeus. Quando a população da África do Sul se insurgiu contra a segregação, ateou fogo a muitas igrejas católicas.
Em 1964, depois da independência e do fim do monopólio das missões no campo educacional, a taxa de analfabetismo em Gana caiu de 85% para 25%.
Em 1977, na África do Sul, pela primeira vez no século, as escolas "brancas" católicas, anglicanas e metodistas admitiram não-europeus, através de critérios seletivos e limitados e com o consentimento tácito do governo, objetivando "desintrincar" a situação pós-Soweto.
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