quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O livro negro do cristianismo Partes 1 & 2


Dois mil anos de crimes em nome de Deus


PARTE 1

Jacopo Fo, Sérgio Tomat, Laura Malucelli


Sumário

INTRODUÇÃO

Os cristãos comem criancinhas?

de Jacopo Fo

Jesus amava as mulheres

Lutas fratricidas

Uma espiral possível

Hereges

Os exércitos cristãos

A Igreja escravista

PRIMEIRA PARTE

O CRISTIANISMO: DE SEITA SUBVERSIVA A RELIGIÃO DO IMPÉRIO

CAPÍTULO 1- Os primeiros cristãos e o advento de Paulo

Jesus, profeta judeu

Os primeiros cristãos

A doutrina de Paulo

CAPÍTULO 2 Constantino e a Igreja imperial

Notas biográficas

O cristianismo de Constantino

O primeiro Conselho de Nicéia e as heresias

A militarização do cristianismo

Os perseguidos se tornam perseguidores: a repressão ao paganismo

CAPÍTULO 3 - As heresias antigas

O que é uma heresia?

Argumentos religiosos que custaram milhares de mortos

Os bispos não pagam impostos

Começa a caça aos hereges

O arianismo depois de Constantino

Os bispos pedem a cabeça dos hereges

A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa

A heresia monofisista e o "latrocínio de Éfeso"

Os paulicianos

Os bogomilos

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO 4 Justiniano, os massacres em nome da fé

As repressões de Justiniano

O papa preso

A heresia monotelista

Os cristãos destroem imagens sacras

Iconoclastia

Nasce o Estado Pontifício

As "Doações de Constantino"

CAPÍTULO 5 Carlos Magno, as conquistas e os crimes

O papa agraciado com o milagre

Os súditos de Carlos

Carlos Magno santo

A corrupção do poder: a pornocracia romana

CAPÍTULO 6 - As Cruzadas: duzentos anos de guerras, roubos e crimes em nome de Deus

A ameaça turca e o apelo à Cruzada

A Cruzada dos "Mendigos"

Os judeus e a Cruzada do Pato Sagrado

A Cruzada dos Príncipes e dos Cadetes

O massacre de Jerusalém

Os reinos cruzados

A Segunda Cruzada

Saladino era um cavalheiro

A Cruzada que errou o caminho

As Cruzadas das Crianças

Outras Cruzadas

As ordens cavalheirescas

Os Templários

Os Cavaleiros Teutônicos

CAPÍTULO 7 As heresias medievais

Os pobres irrompem na história

Os movimentos reformistas

Os "pobres" hereges e os católicos

As cidades-Estado

Um panorama das heresias medievais

"Ou beije a cruz, ou se jogue no fogo": os hereges de Monforte

Os patarinos

Os petrobrusianos

Tanchelmo e Arnaldo de Bréscia

Os cátaros

Os valdenses

As Páscoas Piemontesas

O exílio e o glorioso repatriamento,

Os stendigs e os franciscanos

Jacopone de Todi

Frei Dulcino

Jan Hus, o Lutero da Boêmia

Joana d'Arc, bruxa, herege e santa

Jerônimo Savonarola

TERCEIRA PARTE MODERNIDADE E REPRESSÃO

CAPÍTULO 8 Os cristãos eram proibidos de ler a Bíblia

A Bíblia dos Setenta e a Vulgata

Bíblia = heresia

A invenção da prensa e as novas proibições

A Bíblia na fogueira

CAPÍTULO 9 A Inquisição

A Inquisição espanhola

Os judeus convertidos e os mouriscos

A Inquisição romana

Homossexualidade

CAPÍTULO 10 A caça às bruxas

Bruxaria e heresia

O Martelo das feiticeiras

A louca engrenagem da Inquisição

O processo

A tortura

Ordálio

Os bem-andantes, os bruxos "bons"

Xamãs europeus

CAPÍTULO 11 A salvação de Lutero e a Reforma Protestante

A venda de indulgências

Martinho Lutero

João Calvino

Henrique VIII e a Reforma inglesa

Maria, a Sanguinária, e Elisabete I

Puritanos e anglicanos

Na Irlanda, os católicos se rebelam

CAPÍTULO 12 A Guerra dos Trinta Anos

A caminho da guerra

A guerra (1618-1648)

CAPÍTULO 13 Colonialismo e escravidão

As Américas

Uma conquista "legal"

Os missionários e o assassinato da alma

América do Norte

As etapas da opressão

QUARTA PARTE

A IDADE CONTEMPORÂNEA

EPÍLOGO

Silêncio, omissão, segredos, mentiras..

Pequeno Estado, grande Império

A Igreja e o nazismo

A Igreja e as ditaduras

A Argentina

O Chile

A Teologia da Libertação

A Igreja e os negócios

O escândalo da pedofilia

Opus Dei

Hoje

APÊNDICES

Outros hereges

Guilhermina da Boêmia (cerca de 1269-282)

Os apostólicos

Beguinas e begardos

John Wycliffe e os lolardos

APÊNDICE 2 A tortura

O caso de Franchetta Borelli de Triora

Johannes Junius

APÊNDICE 3 O seqüestro dos corpos

O clero concubinário

Os batismos forçados

APÊNDICE 4 A doutrina na época da Reforma

Huldreich Zwingli

Brownistas ou barrowistas

Os anabatistas

Thomas Müntzer, o teólogo da revolução

Unitaristas ou antitrinitários

Miguel Serveto e as fogueiras protestantes

Os aminianistas

Os quacres

Giordano Bruno

Galileu Galilei

Paulo Sarpi

Os reformadores católicos

O muro da Contra-Reforma

APÊNDICE 5 A perseguição aos "antigos crentes"

Notas

Bibliografia

INTRODUÇÃO

Os cristãos comem criancinhas?

de Jacopo Fo

Acho que, em parte, devemos também ao cristianismo o fato de hoje o mundo parecer menos desumano, sádico e violento do que no passado.

Por dois mil anos, milhões de crentes tentaram de todas as maneiras testemunhar a palavra de paz e amor que Jesus pregava. Viam-se crentes nas cabeceiras dos doentes, recolhendo órfãos pelas ruas, curando os feridos depois das batalhas e saques.

Havia cristãos, como São Francisco, que davam casa e conforto aos que eram devorados pela lepra e comida a quem morria de fome. E muitos como ele atravessaram as linhas de frente das batalhas para promover a paz entre os exércitos. Existiam muitos fiéis que socorriam os sobreviventes das inundações, dos terremotos, das fomes. Havia ainda cristãos que tentavam impor um limite à brutalidade contra os escravos e servos da gleba oprimidos pelos possessores. Existiram cristãos que se expuseram abertamente a fim de obter a graça para um inocente condenado sem provas, apenas por fanatismo religioso.

Viram-se sacerdotes que construíram comunidades de índios e morreram com eles quando os conquistadores católicos decidiram que se agrupar em comunidades igualitárias e não pagar impostos constituía um crime contra Deus e a Coroa. Existiram sacerdotes que fundaram cooperativas e escolas para trabalhadores, que organizaram caixas de assistência mútua e ajudaram judeus e ciganos perseguidos a fugir... Mas essas pessoas, que por dois milênios contribuíram enormemente para melhorar a condição humana e civil dos mais fracos, raramente faziam parte dos vértices da Igreja.

Como aconteceu com todas as religiões do mundo que se tornaram "cultos do Estado", os centros de poder das principais igrejas cristãs foram conquistados por indivíduos inescrupulosos e maliciosos, dispostos a usar a fé e o misticismo com o único objetivo de obter riqueza e autoridade.

É claro que não se pode generalizar: existiram homens religiosos com grandes incumbências na esfera eclesiástica, que agiram com justiça e notável honestidade, e que sobretudo eram partidários — colocando em risco mesmo a própria vida — do direito à dignidade e à sobrevivência dos pobres, golpeando, com palavras e atos concretos, "os ricos bem nutridos e poderosos, inimigos de Cristo e dos homens" (de uma homilia de Santo Ambrósio). Mas também é verdade que, por séculos, os papas continuaram vendendo os cargos religiosos a quem oferecia mais, e para ser ordenado bispo bastava pagar, não era necessário nem ser padre. Por dinheiro, Júlio II consagrou cardeal um rapazinho de 16 anos. Assim, no final das contas, muitos enganadores conseguiram até chegar a ser eleitos papas e macularam suas vidas com crimes horrendos.

O papa Woityla pediu perdão a Deus pelos pecados cometidos no passado por aqueles que representavam a ou pertenciam à Igreja. Mas, por maior que seja a lista dos atos nefastos cometidos, não podemos pretender que ela seja exaustiva.

Então, demo-nos o trabalho de reunir o maior número de documentos que produzam uma idéia menos vaga do "pecado" que maculou a Igreja. Ao realizar esta pesquisa, deparamo-nos com um quadro de traços chocantes, povoado com um número inacreditável de episódios por vezes grotescos, mas sempre trágicos.

As histórias que contaremos não se encontram em todos os livros. Ao contrário, os textos que narram esses fatos (salvo raras exceções) foram colocados no limbo por especialistas.

Mas por que embarcamos em tal aventura? Decerto, não por um anticlericalismo doentio. Hoje, até mesmo no clero inaugurou-se um debate muito fértil sobre a pesquisa histórica do percurso das religiões. Em toda parte, nascem grupos de fiéis que tentam pôr em prática a palavra de Jesus e constroem solidariedade, liberdade, paz, superando obstáculos que ainda se interpõem à criação de um mundo onde a vida anterior à morte também seja digna de ser vivida. Mas, para que essa renovação seja profícua, é indispensável mergulhar profundamente no clima histórico, político e religioso que determinou o sacrifício de tantos mártires, vítimas da parte corrupta e autoritária do clero, muitas vezes com o auxílio dos grupos no poder.

Aquela consciência e aquela cultura, capazes de impedir que tais horrores se repitam, só podem ser construídas por meio da análise e do discernimento da natureza e gravidade dos abusos.

Este livro é dedicado a todos os cristãos e aos homens de boa vontade das outras crenças. Também é dedicado aos ateus, que, exatamente por não acreditarem, têm a obrigação moral de possuir um profundo senso religioso da vida.

Jesus amava as mulheres

Jesus pregava o amor, a fraternidade e a piedade em uma época em que esses sentimentos muitas vezes eram considerados infames sinais de fraqueza. Os Evangelhos nos contam que, dentre seus mais estimados seguidores, na primeira fila estavam as mulheres. Os evangelistas também narram como Jesus desprezava a riqueza e condenava veementemente aqueles que tentavam fazer da fé uma mercadoria.

Esta filosofia rapidamente colocou os cristãos contra a cultura e os poderosos da época, e as perseguições logo começaram. Mas apenas três séculos após a crucificação do Messias, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o que significa que nenhum súdito podia professar outra crença, sob pena de cruel perseguição e, muitas vezes, o patíbulo.

Como é possível que o mesmo Império que crucificara Jesus tenha decidido que o cristianismo seria a religião do Estado apenas trezentos anos depois? É um salto abissal.

Para entender isso, é preciso analisar algumas características do Império Romano.

A escola encheu nossas cabeças de histórias sobre generais geniais e legisladores brilhantes. Mas Roma também era outra coisa. As mulheres eram consideradas animais de propriedade dos pais e maridos, que tinham o direito de bater nelas e matá-las. Uma mulher romana digna era aquela que, assediada por um malfeitor, tirava a própria vida. Não tanto para salvar a própria honra, mas para glorificar a do marido.

As crianças, na escola, conheciam bem o chicote e os professores tinham exemplares de várias formas e tamanhos pendurados na sala de aula.

Como acontece ainda hoje em alguns lugares do planeta, em Roma, também, os bebês recém-nascidos do sexo feminino muitas vezes eram sufocados ou abandonados. As recém-nascidas abandonadas com mais sorte, muitas vezes, eram pegas por vendedores de escravos, que as criavam e, aos 5 ou 6 anos, começavam a prostituí-las.

Júlio César não pode, no entanto, ser considerado o inventor do extermínio em massa — antes dele, conhecemos outros matadores extraordinários (hititas, assírios, babilônios) —, mas o divino Júlio com certeza pode ser eleito o aperfeiçoador emérito do genocídio organizado. Em De Bello Gallico, explica como organizou e lançou a horda de bandidos gauleses e germânicos contra o povo eburone, culpado de não querer se sujeitar ao Império, oferecendo aos criminosos asilo e proteção em seus acampamentos fortificados. O futuro imperador depois narra, com certo prazer, como conseguiu aplicar toda espécie de infâmias, traições e armadilhas, até eliminar definitivamente da face da Terra a raça dos eburones.1 Foi o primeiro comandante a matar todos os habitantes de uma cidade, incluindo crianças, para puni-los por ter resistido2 (Moisés, pelo menos, depois de conquistar a cidade de Madian, poupou as mulheres virgens).3

Por séculos, os romanos se divertiram vendo prisioneiros de guerra lutando entre si nos circos. Em um único mês, o imperador Diocleciano fez quarenta mil homens se matarem no Coliseu, mais de mil por dia, enquanto uma multidão exaltada bebia vinho misturado com mel e chumbo, fumava ópio, fazia negócios e copulava com prostitutas e prostitutos, na maioria pré-adolescentes. A quantidade de sangue e de órgãos esquartejados não os incomodava e em parte era coberta pelo fedor de vômito, já que os romanos, para continuar se enchendo de comida e bebida, tinham o hábito de enfiar dois dedos na garganta para vomitar o que acabavam de ingerir.

O cristianismo fora maltratado cruelmente e sofria havia mais de um século as perseguições do poder imperial. Os cristãos eram arrastados até as arenas, onde eram massacrados entre os gritos e as risadas de uma multidão de apaixonados pelo genocídio lúdico. Então, de repente, os perseguidores se tornam paladinos da Igreja. Teologia, rituais, interpretações do Evangelho são cuidadosamente transformados e adaptados à linguagem e ao pensamento do poder romano. O cristianismo não redime quem havia martirizado os primeiros cristãos, e sim se limita a servir a eles.

As histórias sobre as conversões dos imperadores quase sempre são feitos colossais. Constantino é aquele que adota o cristianismo como religião oficial do Império. O mesmo imperador que mandou matar o próprio filho, a mulher, o sogro e o cunhado. Reza a lenda que Jesus apareceu para ele e lhe prometeu vitória na batalha em troca da adoção do cristianismo como única religião do "mundo civilizado" e do uso do símbolo da cruz, alçado de forma triunfante na batalha. Naturalmente, nem todos os seguidores de Jesus concordaram com esse pacto, que implicava uma verdadeira renúncia aos valores cristãos fundamentais. E, então, um dos primeiros gestos cristãos de Constantino foi perseguir todos os cristãos que seguiam o Evangelho literalmente e, assim, forçosamente, estavam em conflito com os devotos do poder. Um sem-número deles foi morto, outros tantos acabaram no exílio, desprovidos de qualquer bem, outros foram reduzidos à escravidão.

Lutas fratricidas

Os primeiros séculos do cristianismo são marcados por contínuas investidas contra os cristãos que não aceitaram os ajustes e as interpretações dos ditames do Filho de Deus. A elas se alternam lutas pela divisão do poder entre papas e imperadores, papas e antipapas, papas e bispos, bispos e bispos, em uma sucessão de conspirações, cismas e lutas que não excluíam a força física. É quase impossível reunir todos os acontecimentos sanguinários que primeiro assolaram a Europa e, depois, o mundo, e que nasceram de conflitos pelo poder nos quais a Igreja se interpôs entre as forças combatentes. Milhões de pequenas conspirações, guerrinhas e ameaças que ninguém nunca contou.

Neste livro, limitamo-nos a citar os eventos mais importantes, mas confiamos na imaginação do leitor para completar o quadro da situação da fé naquela época. Os níveis máximos de fúria eram atingidos exatamente quando se devia sufocar o renascimento das idéias originais de Jesus. Elas nunca deixaram de acordar as pessoas para a dignidade e a celebração do valor coletivo do amor cristão.

O que testemunha esse poder extraordinário da palavra de Jesus é o surgimento, durante séculos após seus ensinamentos, das incríveis utopias sociais e comunitárias, que funcionavam muito bem até a chegada dos soldados do papa e do imperador, excepcionalmente reunidos para massacrar os cristãos que viviam em comunidade, sem autoridade ou impostos.

No ano de 476, o Império Romano do Ocidente, há tempos já corrompido e devastado pelas lutas de poder, deixa de existir até oficialmente. Os "bárbaros" zinhos, confiantes em seu valor em sua homogeneidade social, chegam em ondas, mas logo são arrebatados pela febre da traição e da desconfiança. Nenhum império resiste muito tempo.

Mas entre as lutas religiosas e políticas, amplificadas pelas invasões "bárbaras", pode acontecer que um rei traído por seus súditos e abandonado pelos mercenários decorra aos camponeses, oferecendo a eles liberdade e a propriedade da terra, e obtendo em troca exércitos invencíveis.4 O envolvimento dos camponeses na política, a explosão do artesanato, das manufaturas, da cultura dos ofícios e da invenção de novas técnicas levam o povo a amadurecer uma idéia mais digna de si próprio e um senso de justiça mais profundo.

Assim, por volta do ano mil, este novo modo de conceber e viver o mundo se funde ao que resta das idéias do cristianismo primitivo. Desenvolvem-se movimentos que unem a idéia do retorno ao cristianismo puro e a vontade de organizar uma sociedade sem rei, generais ou escravidão. Basicamente, a população dos fracos começa a se rebelar contra o poder sagrado e abençoado dos nobres patrões, inspirados pelo indispensável clero. Eles também descobrem que os poderosos, como guerreiros profissionais, não são muito valorosos: os artesãos e camponeses reunidos na comuna, armados de lanças e bem treinados, muitas vezes conseguem abatê-los como a fantoches.

Hereges

E já que os nobres não servem para nada, por que não se livrar deles? E para que servem os padres, que muitas vezes são bispos e condes ao mesmo tempo? Ninguém mais acredita na santidade deles, já que, sob as vistas de todos, cometem todo tipo de pecado.

E assim nasce a idéia de que os sacramentos, se administrados por pessoas indignas, não têm nenhum valor. "Ignorem o indigno exemplo deles", grita logo um teólogo "sigam o que dizem os ministros de Deus, não o que eles fazem".

No século X, começam a nascer em toda a Europa grupos de fiéis que pregam e aplicam a comunidade do bem, a fraternidade, e recusam a autoridade eclesiástica. Combatendo esses movimentos, as hierarquias eclesiásticas e nobres (que muitas vezes são a mesma coisa) se organizam para exterminar os habitantes de regiões inteiras, condenando os sobreviventes ao suplício público. No ápice dessa perseguição, muitas pessoas são torturadas e assassinadas de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apóstolos não possuíam riquezas ou bens materiais. O mero fato de ter uma Bíblia em casa já bastava para levantar as suspeitas de se ser um inimigo da Igreja. Se essa Bíblia ainda fosse traduzida para o latim vulgar, ou seja, uma língua entendida pelo povo, e não tivesse autorização, a condenação por heresia era certa.

Os cristãos comunitários queriam se inspirar no Evangelho, sem intermediários. E muitas, muitas vezes, pagaram por isso com a própria vida. Um martírio que enfraquece aquele dos primeiros cristãos sob o Império Romano.

Contra os hereges, em dado momento, chegou a ser inventado um instrumento repreensivo de perfeição diabólica: a Inquisição. Os inquisidores eram, ao mesmo tempo, policiais, carcereiros, acusadores e juízes. Qualquer besteira já era suficiente para acabar em suas garras: um boato, uma carta anônima, um comportamento ligeiramente diferente do normal. Até ser devoto demais era considerado comportamento duvidoso. O suspeito era considerado culpado se não conseguisse provar a própria inocência. E quem testemunhava em favor de um suposto herege podia, por sua vez, tornar-se suspeito e sofrer um processo. Na verdade, as perseguições aos hereges começam logo depois da criação da Igreja de Estado e terminam no século XVIII, com as últimas ondas de caça às bruxas. As histórias dos processos e das perseguições realizadas pela organização eclesiástica e pelo "Santo Tribunal" são tão absurdas e contraditórias que não nos permitem nenhuma análise verossímil. É impossível fazer um balanço confiável dessas guerras e perseguições, e decerto milhões de pessoas foram assassinadas em mais de mil anos de crueldade desumana.

Os exércitos cristãos

E, como se não bastasse, foram os papas que ordenaram as Cruzadas e, posteriormente, a colonização das "terras novas" e os massacres que se sucederam.

Mas vejamos em ordem. Primeiro, foram as tentativas de invadir a Palestina, o Líbano e a Síria, com o pretexto de libertar o Santo Sepulcro. Em Storici arabi alle crociate,5 Gabrieli reúne os testemunhos de vários cronistas medievais no Oriente Médio. Por meio dessas declarações, pudemos saber que, até depois da metade do século XII, ou seja, antes do começo das invasões dos franco-cruzados, milhares de cristãos visitavam livremente a Palestina e todos os lugares onde Jesus Cristo vivera e pregara. As Cruzadas foram um projeto criminoso em todos os aspectos, e, mal nos questionamos sobre a sucessão de fatos que levaram à Terra Santa turbas desenfreadas aos gritos de "Assim quer Deus!", finalmente vemos aflorar a real motivação da campanha que levou São Francisco a tal indignação a ponto de exclamar: "Vim converter os infiéis e descobri que os que precisam de fé e noção de piedade não são os guerreiros muçulmanos, mas os soldados de Cristo e, antes de mais nada, os bispos que os conduzem!".6 Além do mais, os "exércitos de Deus" talvez tenham matado mais cristãos do que infiéis. Os exércitos cristãos que se dirigiam à Palestina tinham um longo caminho a percorrer, sem provisões ou acampamentos organizados. Portanto, tinham como costume obter o que precisavam saqueando as cidades cristãs pelas quais passavam durante a viagem. Por exemplo, a famosa "Cruzada dos Mendigos", em 1096, que causou o massacre de quatro mil pessoas apenas na cidade húngara de Zemun.

No mesmo ano, o contingente guiado pelo nobre alemão Gottschalck trucidou mais de dez mil pessoas culpadas de terem-se deixado dominar pelos saques. Alguns homens partiram para as Cruzadas seguindo os passos de um pato! Estes devotos acabaram se unindo a uma Cruzada guiada por um ilustre salteador chamado Emich, que nunca chegou à Terra Santa, limitando-se a um tour durante o qual massacrou milhares de judeus, espoliando-os de seus bens.

Mas outros cruzados, que participaram de expedições seguintes, também decidiram se preparar para a guerra contra os infiéis muçulmanos começando a massacrar infiéis judeus desarmados. Em 1212, trinta mil meninos da Europa Central partiram para as Cruzadas sozinhos e sem armas. A maior parte desse "exército" embarcou em Marselha acreditando partir para libertar o Santo Sepulcro. Em vez disso, os garotos (pelo menos os que sobreviveram aos contratempos da viagem) foram vendidos aos turcos como escravos.

A Quarta Cruzada, realizada em 1202, operou uma pequena devastação e, em vez de ir até a Terra Santa, tomou de assalto a perfeitamente cristã Constantinopla, conquistada por meio de saques e do massacre da população. No final das contas, quem ganhou com as Cruzadas, com certeza, não foram os soldados e seus capitães, e sim os mercadores das Repúblicas Marítimas italianas e a Igreja de Roma.

A volta das Cruzadas também foi uma aventura trágica. Os cruzados muitas vezes tinham que entregar aos transportadores todo o fruto de seus saques e roubos.

Sabe-se, também, que os cruzados, até pela forma como eram recrutados, não eram brilhantes em termos de disciplina e organização. Seus acampamentos eram erguidos sem nenhum cuidado estrutural. Em poucas palavras, eles não tinham áreas de higiene, não existiam enfermarias nem médicos organizados, e a cada chuva as barracas eram inevitavelmente carregadas pelas águas misturadas à urina e ao estéreo. Resumindo: Deus não estava com eles e os castigou matando vários de cólera, infecção gastrointestinal e doenças venéreas locais e exóticas. A propósito, não podemos esquecer a grande quantidade de prostitutas que seguiam o exército. A isso acrescentemos o fato de que os cruzados não costumavam tomar mais do que dois banhos por ano e muitos fizeram a promessa de não tomar banho até a libertação do Santo Sepulcro.

Ignorando as leis alimentares dos povos que já viviam há anos naquele clima, enchiam-se de carnes de porco assada ou salgada e se embebedavam da manhã até a noite. O resultado foi que, às epidemias normais em voga, acrescentaram-se outras ainda mais devastadoras. Além disso, como já lembramos, os pobres coitados eram tratados por médicos e cirurgiões cuja ignorância só se igualava a seu fanatismo. O resultado era que ser ferido em batalha ou contrair uma doença grave garantia, depois do tratamento médico, a certeza da morte inevitável.

Sobre esse assunto, transcrevemos o comentário de um médico oriental cristão durante a consulta de um cavaleiro ferido e de uma mulher doente:

...Apresentaram-me um cavaleiro que tinha um abscesso em uma perna e uma dona aflita pelo definhamento. Fiz um emplastro no cavaleiro, e o abscesso abriu e melhorou; prescrevi uma dieta para a mulher, com pouco tempero. Quando eis que chegou um médico franco, que disse: "Esse aí não sabe curar ninguém". E, dirigindo-se ao cavaleiro, perguntou: "O que prefere, viver com uma só perna ou morrer com duas pernas?" Tendo este respondido que preferia viver com uma só perna, ordenou: "Tragam-me um cavaleiro corajoso e um machado afiado". Chegaram o cavaleiro e o machado, e eu estava ali presente. O médico colocou a perna sobre um pedaço de madeira e disse ao cavaleiro: "Desça-lhe uma machadada, para cortar de pronto!" E, diante de meus olhos, deu a primeira machadada e, não conseguindo arrancar a perna, deu a segunda; a medula da perna jorrou e o paciente morreu na hora. Após examinar a mulher, ele disse: "Essa aí tem o demônio na cabeça, apaixonado por ela. Cortem-lhe os cabelos",. Foram cortados, e ela voltou a comer o alimento deles, com alho e mostarda, e o definhamento aumentou. "O diabo entrou na cabeça dela", sentenciou ele, e pegou a navalha e abriu a cabeça dela em forma de cruz, extirpando o cérebro até aparecer o osso da cabeça, no qual esfregou sal... e a mulher morreu na mesma hora. Naquele momento, perguntei: "Ainda precisam de mim?" Responderam que não e fui embora, depois de aprender o que ignorava da medicina deles.7

Acrescente-se a isso o fato de que muitos cruzados eram aventureiros dispostos a entregar armas e provisões ao inimigo em troca de dinheiro, a vender a mulher para pagar dívidas de jogo, a trucidar companheiros para derrubá-los. Muitos foram obrigados a partir para a Palestina, mais do que por um rompante de fé, pela lâmina que pendia sobre suas cabeças junto com uma sentença de enforcamento.

E as suas não eram cabeças quaisquer. Muitas vezes, tratava-se de nobres falidos e ambiciosos que tinham como único objetivo a riqueza pessoal e que não se detinham diante a nenhuma torpeza desde que concretizassem seus intentos. Viram-se batalhas entre exércitos de cruzados rivais pela posse de uma cidade, alianças entre príncipes cristãos e emires turcos. Muitos nobres cruzados permitiram que seus companheiros de armas fossem trucidados sem levantar um dedo, por questões de rivalidade.

O modelo das cruzadas tinha feito escola. E, assim, quando o papa Inocêncio III decidiu deter a heresia catara e valdense, decretou em 1209 uma verdadeira cruzada no sul da França, que durou vinte anos e massacrou dezenas de milhares de pessoas. Os cátaros eram culpados de propagar uma vida comunitária pacífica e solidária, respeitando os ensinamentos de Jesus e recusando-se a reconhecer "o poder por vontade de Deus" da Igreja. O pontificado de Inocêncio III marca também o auge do poder temporal do papado. O papa passava a ser um soberano para todos os efeitos, e o Estado da Igreja torna-se uma verdadeira potência européia. Como todos os soberanos, o bispo de Roma possuía territórios e exércitos, declarava guerra e realizava alianças. Vários reinos se reconheciam como vassalos da Santa Sé e pagavam conspícuos tributos a Roma.

Além disso, o papa utilizava o próprio poder espiritual para orientar a política dos Estados a ele alinhados. Se um rei era excomungado, perdia automaticamente o direito de cobrar obediência dos súditos e vassalos. Pode-se concluir, assim, que os soberanos cristãos pensavam duas vezes antes de pisar no pé da Santa Sé. Em suma, o papado acolheu por completo a herança criminosa do Império Romano. Houve até um papa, Júlio II, que encomendou uma armadura para conduzir seus próprios exércitos nas batalhas.

A Igreja escravista

Chegando a este ponto, a Igreja, faminta por expansão, passou a dedicar-se às conquistas coloniais. São os sacerdotes os primeiros colonizadores da África negra. Encontramos padres, ao lado dos conquistadores espanhóis, que massacraram os índios da América. Foram os padres que organizaram o comércio de escravos.

Na verdade, foi o próprio Estado da Igreja que ordenou, em 1344, a conquista das Ilhas Canárias. E, provavelmente, foi o bispo De Las Casas, após a conquista da América, que sugeriu que os indígenas, que não suportavam o trabalho massacrante e as doenças levadas pelos colonos, fossem substituídos por africanos.8 Assim, desde o início de 1500, os missionários da África começaram a organizar a exportação de escravos para a América, equipando os navios "missionários" para tal fim. Fala-se de dezenas de milhões de ameríndios mortos em batalha ou aprisionados, exterminados por doenças e pelo cansaço. O desastre foi tamanho que se calcula que, só no México, a população tenha passado de 25 milhões de índios, em 1520, a menos de um milhão e meio em 1595.

Calcular o massacre ocorrido com o comércio de escravos é impensável. Fala-se de pelo menos vinte milhões de pessoas levadas para a América. A expectativa de vida delas, a partir do momento do desembarque, era de sete anos. Mas, para cada negro que chegava à América como escravo, nove prisioneiros morriam durante a captura, a viagem até o porto de embarque ou a travessia.' Portanto, pode-se falar em 190 milhões de mortos. Mas a conta é bem mais dramática: as contínuas incursões dos escravistas por quase trezentos anos destruíram a economia de vastas áreas da África, privando populações inteiras de sua melhor mão-de-obra, o que fez milhões de pessoas morrerem de fome, epidemias e exaustão. Era possível percorrer centenas de quilômetros em meio às ruínas do que um dia foram civilizações brilhantes e culturalmente evoluídas e não encontrar um único sobrevivente, apenas ossos que brilhavam sob o sol.

O horror do colonialismo teve nos missionários seus mais ferozes defensores. Estes se dedicaram a extirpar as religiões tradicionais dos povos subjugados com a violência e a tortura. Chegaram até a impedir que as crianças falassem sua língua-mãe, punindo-as com castigos corporais.

E para entender como os padres brancos podiam ser desumanos, basta lembrar que muitas vezes eram enviados às missões sacerdotes manchados por crimes graves e que eram considerados indignos para realizar seu ofício na Europa. Eles abençoaram todas as formas mais infames de apartheid. Em muitos países da África, por exemplo, os negros eram proibidos de comercializar com os brancos ou de cultivar hortaliças ou cereais nas áreas em que a monocultura dos latifundiários brancos era obrigatória. Plantar abóboras custava uma das mãos na primeira vez, um pé na segunda e, na terceira, a cabeça. A razão de tanta brutalidade era simples: assim, os nativos eram obrigados a se dedicar à monocultura e a vender seu produto aos patrões brancos em troca de comida. Então, se quisessem sobreviver, teriam de vender aos brancos sem poder discutir o preço. Ou aceitavam ou morriam. E se analisarmos as condições em que muitos países do Terceiro Mundo se encontram hoje, não poderemos deixar de ver, na miséria e na violência atuais, a marca de séculos de exploração. Na escola, não aprendemos nada sobre o colonialismo e o papel da Igreja nele.

Os ingleses, por exemplo, especializaram-se no tráfico de drogas, vendendo enormes quantidades de ópio à China. Por três vezes, o imperador chinês proibiu este comércio e, por três vezes, canhoneiros ingleses bombardearam os portos chineses para impor sua liberdade de vender droga. Foram as famosas Guerras do Ópio: em 1848, em 1856 e em 1858. E tenham certeza de que o chumbo dos canhões era abençoado.

Finalmente, não podemos nos calar a respeito do papel que a Igreja teve ao apoiar o nazismo, o fascismo, o extermínio dos judeus, os massacres da Guerra Espanhola, e do suporte dado por boa parte do clero cristão a todas as mais infames ditaduras do planeta. Sacerdotes católicos abençoaram os torturadores e os esquadrões da morte no Chile, na Grécia, no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Argentina, na Indonésia. E mesmo o papa Woityla mandou cartas demonstrando apreço e bênçãos a ditadores sanguinários como Pinochet (que conheceu pessoalmente durante uma de suas várias viagens).

Dedico este livro ao meu pai, que desde que eu era pequeno me contava as loucuras dos cruzados e que ajudou enormemente na realização deste livro.

CAPÍTULO 1

Os primeiros cristãos e o advento de Paulo

Jesus, profeta judeu

Se Jesus, o "Cristo", era realmente o Messias esperado pelos judeus, o Deus feito Homem, como crêem os cristãos, é uma questão de fé para a qual não é possível dar uma resposta objetiva e definitiva.

O homem Jesus provavelmente era um profeta judeu, um dos tantos pregadores que, na Palestina do século I d.C, anunciava e esperava o advento do Reino de Deus.1 O termo "Reino de Deus" não era uma metáfora: Jesus e outros pregadores realmente achavam que Deus, ou um enviado seu, desceria à Terra e criaria um novo ordenamento político-social, virando do avesso o que nós hoje chamamos de "relações de classe" ("Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros.").2

Três elementos importantes, pelo menos de acordo com os evangelhos canônicos, diferenciavam Jesus de outros profetas e pregadores de seu tempo, e talvez até de alguns de seus próprios seguidores: o fato de que Jesus não pregava a luta armada; a impaciência com relação à exageradamente rígida observância exterior dos preceitos judaicos, à qual se contrapôs um estado de pureza interior — "O que entra pela boca não torna o homem impuro, mas sim o que sai da boca, isto é que torna o homem impuro!"3 —; a aceitação das mulheres entre seus seguidores, coisa impensável nas escolas rabínicas da época.4

Os primeiros cristãos

Os discursos de Jesus tinham evidentes implicações sociais. Ele exaltava os desfavorecidos, os pobres, falava para Pessoas que os judeus conservadores consideravam "intocáveis": coletores de impostos, adúlteras, pagãos, samaritanos (os samaritanos haviam realizado uma espécie de cisma dentro do judaísmo e, portanto, eram odiados pelos judeus).

Os apóstolos e os primeiros seguidores de Cristo viviam em comunidade: "Todos aqueles que se tornaram crentes ficavam juntos e tinham tudo em comum; quem possuía propriedades e bens os vendia e dividia com todos, de acordo com as necessidades de cada um".5

De acordo com as Sagradas Escrituras, o rico convertido Ananias entregou aos apóstolos apenas uma parte de seus bens, escondendo o restante. Por este grave pecado, ele teria morrido no mesmo instante.6

A doutrina de Paulo

O cristianismo provavelmente teria uma história bem diferente da que nós conhecemos se não tivesse cruzado seu destino um personagem complexo e misterioso.

Saulo de Tarso, chamado de Paulo na Cilícia, era ao mesmo tempo judeu e seguidor da corrente dos fariseus, discípulo do grande mestre Gamaliel e cidadão romano desde o nascimento.7

De início, era um perseguidor convicto dos cristãos, aprovando o apedrejamento do primeiro mártir, Estêvão. Então, foi "iluminado na estrada para Damasco" e se converteu, trilhando uma rápida carreira dentro da incipiente Igreja cristã, até obter o título de "apóstolo".

Segundo alguns estudiosos, Paulo foi o inventor do cristianismo, aquele que deturpou os ensinamentos do profeta judeu Jesus e os transformou em uma religião universal.8

Com certeza, Paulo contribuiu mais do que qualquer outro para a difusão da nova religião, até mesmo entre os não-judeus e no interior das primeiras comunidades cristãs, opondo-se vigorosamente aos judeus-cristãos, ou seja, àqueles que consideravam a observância da lei mosaica requisito fundamental para que alguém se tornasse cristão.

Na Epístola aos Gálatas, ele escreveu: "Não existe mais judeu ou grego, não existe mais escravo ou liberto; não existe mais homem ou mulher, pois vocês todos são um só em Jesus Cristo".9 O escravo Onésimo levou a sério tais palavras, fugiu de seu mestre Filêmon, rico proprietário convertido exatamente por Paulo, e buscou refúgio com o apóstolo. Mas Paulo o mandou de volta ao "remetente", acompanhado de uma comovente carta em que chamava Onésimo de "filho" e convidava Filêmon a tratá-lo como "irmão".10 Não sabemos se o rico Filêmon aceitou o convite ou se matou o pobre Onésimo. Aliás, esta era a pena prevista para os escravos fujões.

Com certeza, Paulo considerava perfeitamente admissível que um rico senhor de escravos aderisse ao cristianismo sem pagar o imposto da renúncia aos bens terrenos.

A igualdade que pregava valia no nível espiritual, ou pelo menos se operaria no final dos tempos, que muito provavelmente considerava iminente. Na Terra e no presente, as diferenças continuavam a existir, e era justo que assim fosse.

Na Primeira Epístola aos Coríntios (7, 20-24), Paulo sentencia: "Que cada um fique no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? Não te dê cuidado; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade! Pois aquele que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, é um liberto do Senhor; e assim também, o que foi chamado sendo livre, escravo é de Cristo. Por preço fostes comprados; mas vos façais escravos de homens!"

O conceito é repetido em Efésios 6, 5: "Escravos, obedecei aos vossos senhores com devoção e temor, servi com solicitude, como se se tratasse do próprio Senhor, e não de homens".

O que valia para os escravos também valia para as mulheres: "As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, aquele que é o salvador de seu corpo. E como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos".11

"Como em todas as comunidades de fiéis, que as mulheres se calem nas assembléias, pois não lhes é permitido falar; que estejam submissas, como diz a lei. Se quiserem aprender algo, que perguntem em casa, a seus maridos, pois não convém a uma mulher falar na assembléia."12 Se os primeiros apóstolos tivessem se comportado assim, as mulheres dificilmente os teriam avisado da ressurreição de Cristo.

E o conceito se repete na Primeira Epístola a Timóteo (2, 11-15): "A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois não permito que a mulher ensine nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, na caridade e na santificação, com modéstia."

Paulo, que para outros aspectos considerava a lei judaica superada (por exemplo, as proibições alimentares), no caso das mulheres, abriu uma exceção e retomou hábitos judaicos, como o costume de cobrir a cabeça nas cerimônias.

"O homem não deve cobrir a cabeça, pois é a imagem e glória de Deus; a mulher, em compensação, é a glória do homem. E, de fato, o homem não deriva da mulher, mas a mulher deriva do homem; nem foi o homem criado pela mulher, mas a mulher criada pelo homem. Por isso, a mulher deve usar na cabeça um sinal de sua dependência, por causa dos anjos [...] Julgai entre vós mesmos: é conveniente que uma mulher ore a Deus com a cabeça descoberta? Não vos ensina a própria natureza que é indecoroso para um homem deixar o cabelo crescer, enquanto, para a mulher, o cabelo comprido é uma glória? Pois a cabeleira foi-lhe dada no lugar do véu. Mas se alguém quiser contestar, não temos esse costume, nem as Igrejas de Deus."13

No que diz respeito a outros aspectos da doutrina de Paulo, é possível examinar o hino à caridade, talvez sua passagem mais conhecida, que diz:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse caridade, eu seria como o bronze que soa ou um sino que toca. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, que possuísse a plenitude da fé capaz de mover montanhas, se não tivesse caridade, eu nada seria. E ainda que distribuísse toda minha fortuna e entregasse meu corpo para ser queimado, se não tivesse a caridade, nada disso me adiantaria. A caridade é paciente, é benigna a caridade; a caridade não é invejosa, não se vangloria, não tem soberba, não falta com o respeito, não busca seus interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, e sim se rejubila com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."14

E até um hino desinteressado pode, na verdade, conter segundas intenções. Paulo o insere dentro de uma dissertação sobre os "dons do espírito" (ou "carismas"), aos quais dá uma espécie de classificação, deixando em último lugar um misterioso "dom das línguas".

O que significaria? Para entendê-lo, devemos voltar um passo atrás. Segundo os Atos, vejamos o que acontece aos apóstolos no dia de Pentecostes, cinqüenta dias depois da Páscoa da ressurreição: "De repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceram-lhes então umas espécies de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem."15

Não fica claro o que seria exatamente o dom das línguas: nos Atos, é descrito como a capacidade de entender e se expressar em todas as línguas do mundo, mas também como uma fala incompreensível, de "embriagados".16 Outras passagens do Novo Testamento levam a pensar em um estado de transe, que contemplava a emissão de sons e palavras de significado obscuro. Qualquer que seja a interpretação correta, na época, tal acontecimento era considerado algo extraordinário.

Paulo, que não fazia parte do grupo dos primeiros apóstolos, não recebeu o dom.

Como escreveu o estudioso Gilberto Pressacco: "Na verdade, Paulo, que buscava e queria um reconhecimento oficial e geral de sua natureza de 'apóstolo', não podia afirmar nem se vangloriar por estar entre aqueles que receberam o Espírito no Pentecostes, os quais se tornaram as pedras vivas que sustentaram o pilar da Igreja primitiva. Ele podia, no máximo, se gabar da experiência vivida na estrada de Damasco, uma revelação solitária, particular e, talvez, dúbia para aquela Igreja que ele por tanto tempo perseguira (as Pseudoclementinas chegam a insinuar que se tratava de uma revelação do diabo, e não de Cristo).

Definitivamente, a hostilidade de São Paulo só pode confirmar uma dolorosa sensação de inferioridade em razão da não-participação no acontecimento fundamental da Igreja, no qual fora dado um dom que ele não possuía e que, no entanto, era freqüente entre os primeiros cristãos."17

Por isso, Paulo exaltava o amor como a maior de todas as virtudes. Mas, apesar disso, ele parecia ter péssimo gênio: durante uma viagem missionária, brigou com o companheiro Barnabé de tal forma que os dois prosseguiram em direções diferentes; Barnabé, por mar até Chipre, e Paulo, por terra, pela Síria e a Cilícia.18 E nas cartas não faltam alfinetadas nos outros apóstolos.

Ele chegou a acusar publicamente de hipocrisia Pedro, o chefe da Igreja.

Quem narra o episódio é o próprio Paulo: "Mas quando Cefa (Pedro) chegou a Antióquia, eu me opus abertamente a ele, pois é evidente que estava errado. De fato, antes que chegassem alguns amigos de Tiago, ele fazia as refeições junto com os pagãos; mas depois que estes chegaram, começou a evitá-los e a se manter afastado, por medo dos circuncidados. E outros judeus também o imitaram na simulação, a tal ponto que até Barnabé deixou-se atrair pela sua hipocrisia. Quando vi que não se comportavam corretamente, segundo a verdade do evangelho, disse a Cefa, na presença de todos: 'Se você, que é judeu, vive como os pagãos, e não à maneira dos judeus, como pode obrigar os pagãos a viver à maneira dos judeus?'"19

Aqui se acena o conflito entre os judeus-cristãos, que consideravam um dever seguir a lei mosaica (que, entre outras coisas, tinha regras muito rígidas acerca dos alimentos e sua preparação), e aqueles que, ao contrário, consideravam tal lei superada. Na prática, Paulo criticava Pedro por ficar em cima do muro, tentando não desagradar nenhuma das duas facções.

Mas o próprio Paulo, em outras ocasiões, se comporta de maneira análoga: manda circuncidar um seguidor seu;20 quando os judeus-cristãos o acusam de ter abandonado a lei mosaica, reage acentuando gestos exteriores de observância aos preceitos judaicos;21 proíbe que se coma carne proveniente de sacrifícios pagãos (muito impura para os judeus praticantes) se o ato "escandalizar" os outros comensais.22 Finalmente confessa: "Eu agi como judeu entre os judeus para ganhar os judeus; com aqueles que obedecem à lei [judaica], tornei-me alguém obediente à lei, mesmo não o sendo, com o propósito de ganhar aqueles que o são. Com aqueles que não têm lei, tornei-me alguém sem lei, mesmo não sendo alheio à lei de Deus, ou melhor, seguindo a lei de Cristo, para ganhar aqueles que não têm lei. Tornei-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos; fui tudo para todos, para salvar alguém a todo custo."23

Apesar de seu zelo e de seu ativismo, as mulheres ainda falariam por muito tempo nas assembléias e, em alguns casos, teriam até "ditado leis". Muitos cristãos não tiveram de esperar o juízo universal para tentar criar uma sociedade mais justa.

Em pouco mais de cem anos, o cristianismo se difundiu por toda parte, no Império Romano e além. Havia comunidades cristãs na Europa, na Ásia e na África.

Os primeiros cristãos eram escravos, libertos (ou seja, alforriados), mulheres, trabalhadores e artesãos, na maioria das vezes de origem oriental e de língua grega. Mas em suas comunidades não faltavam intelectuais, pessoas de posses e até expoentes das famílias patrícias.24 Por coerência com a própria fé, não adoravam ou ofereciam sacrifícios às divindades romanas. Os primeiros cristãos se consideravam cidadãos do Reino dos Céus e "estrangeiros" nesta Terra.25 Tão estrangeiros, que muitos consideravam pecado exercer funções públicas.

"Pergunte-se sobre o trabalho dos catecúmenos", escrevia, por exemplo, São Hipólito de Roma, "se algum é desfrutador de mulheres, ou sacerdote de ídolos, ou gladiador, ou magistrado com gládio e manto, que deixe a profissão ou seja afastado [da Igreja] ".26 Vale notar que a profissão de magistrado é colocada no mesmo patamar que a dos que desfrutam da prostituição ou dos combates lúdicos.

É impossível estabelecer com exatidão o percentual de cristãos entre os súditos do Império, mas certamente devia se tratar de um fenômeno de grandes proporções.

Tertuliano, um dos primeiros escritores latinos do século II, assim reprovava os magistrados romanos: "Poderíamos ter lutado sem armas contra vocês, sem nos rebelarmos, mas apenas com nosso dissenso, com a hostilidade de uma secessão. Se, de fato, nos separássemos em grande número de vocês para nos refugiarmos em algum canto remoto da Terra, a perda de tantos cidadãos minaria sua dominação, punindo-a com a ruína total. Então teriam terror de sua solidão, do silêncio da natureza e do estupor de um mundo já morto, procurariam quem manda, mas teriam mais inimigos do que cidadãos."27 Um exagero, é claro, mas com um fundo de verdade.

As autoridades romanas reputavam subversivo qualquer movimento que agregasse longe de seu controle grupos populares e expoentes da aristocracia.28 Além disso, consideravam a manutenção dos cultos tradicionais um elemento de estabilidade indispensável à própria vida do Estado, tanto que o sacrilégio e a não-observância dos ritos constituíam um crime comparável à traição. Enfim, temiam de forma extrema os perigos da secessão: "Roma nunca conseguiu se recuperar do susto da secessão dos plebeus no período republicano. O terror da secessão em Roma é uma constante psicológica que desempenha um papel

histórico de notável relevância."29

Os cristãos reuniam as características que o poder imperial temia, o que explica as perseguições periódicas das quais foram vítimas no curso de duzentos anos, de 112 até 311.

Outro elemento caracterizava os cristãos, pelo menos nos dois primeiros séculos: a espera de um apocalipse iminente. Deus desceria sobre a Terra e faria justiça. Eles, os perseguidos, iriam se sentar em tronos à direita do Pai, e de lá assistiriam ao suplício de seus dominadores.

Mais uma vez, é preciso dizer que esta e outras visões descritas por autores de origem cristã não eram uma metáfora, mas deveriam ser lidas literalmente.™

O não-cumprimento das profecias apocalípticas e a sucessiva "constantinização" do cristianismo (ver os próximos capítulos) transportariam essas esperanças para muito longe no tempo e no espaço, a um local totalmente desligado deste mundo.

Mas, apesar disso, nunca se conseguirá "normalizar" completamente o cristianismo. Em cada período, haverá pessoas ou movimentos, os "hereges", que se oporão à transformação da Igreja em um aparato opressivo de poder e que tentarão implantar aqui na Terra o "Reino dos Céus", criando verdadeiras Igrejas alternativas.

CAPÍTULO 2

Constantino e a Igreja imperial

Notas biográficas

Constantino nasce em Mesia (a atual Sérvia), por volta de 274. Seu pai, Constâncio Cloro, era um oficial de carreira; sua mãe, Flávia Helena, concubina de Constâncio, era uma albergueira, ou seja, uma subserviente funcionária da estalagem da estação postal.

Constâncio Cloro depois repudiou Helena para se casar com Teodora, filha do imperador Maximiliano, e, no ano de 293, entrou na tetrarquia (governo de quatro) criada por Diocleciano, primeiro com o título de "césar" (vice-imperador), e, em seguida, em 305, com o de "augusto" (imperador pleno).1

Constantino participou de várias campanhas militares durante os anos de juventude, primeiro a serviço de Diocleciano, depois de Galério e, finalmente, de seu pai.

Quando Constâncio morreu, em 306, os soldados aclamaram Constantino "augusto", desobedecendo as disposições emanadas de Diocleciano,2 dando um verdadeiro golpe de Estado. Seguiram-se seis anos de guerra civil entre os vários pretendentes ao título de imperador, entremeada por lutas travadas para levar os bárbaros até as fronteiras.

Para consolidar seu poder, Constantino desposou Fausta, filha de Maximiliano, estabelecendo com ele uma aliança para reinarem juntos no Ocidente. Mas o casamento e o pacto não o impediram de atacar e matar Maximiliano em 310.

No mesmo ano, de acordo com um escrito comemorativo da época, Constantino visitou um templo de Apoio, na Gália, onde o próprio deus apareceu e colocou nele uma coroa de louros.3 O mesmo escrito cria uma genealogia que estabelecia que Constâncio, pai de Constantino, não era homem de origem humilde, mas filho do imperador Cláudio II.

Em 311, os pretendentes ao título de "augusto" eram quatro: Constantino e Magêncio, filho de Maximiliano, no Ocidente, e Valério Licínio e Maximino Daia no Oriente. Constantino se aliou a Licínio, concedendo-lhe a mão de sua irmã, Constância, e marchou rumo à Itália contra Magêncio. Em 312, naquela que é lembrada como a Batalha da Ponte Mílvio, mas que na verdade se iniciou em Saxa Rubia, Constantino derrotou Magêncio, que morreu durante a retirada, tornando-se, assim, único senhor do Ocidente. Em 313, ele e Licínio promulgaram o Edito de Milão, que assegurava liberdade de culto aos cristãos e transformava o cristianismo em uma das religiões oficiais do Império Romano. Iniciava-se o processo de integração dos cristãos à sociedade romana e à organização do Estado.

A liberdade de culto dada aos cristãos seria o pretexto para a luta pelo controle do Oriente entre Maximino (perseguidor dos cristãos) e Licínio (que, mesmo não sendo batizado, agia como defensor dos cristãos). A guerra no Oriente se encerra com a vitória definitiva de Licínio e o suicídio de Maximino.

Em 314, Constantino convocou o Concilio de Aries, que condenou definitivamente a heresia donatista (um movimento cristão de rigor excessivo que, em 311, em Cartago, elegeu um bispo alternativo àquele oficial e apoiado por Constantino) e permitiu que os cristãos ocupassem cargos públicos, o que até então era considerado pecado.4

Em seguida, abafou violentamente o protesto dos agonistas, ou circunceliões, que, por trás de motivações religiosas, escondia uma verdadeira guerra de classes.

No mesmo ano, Licínio se revoltou contra Constantino. Surgiu, assim, uma guerra que teve Constantino como vencedor. Compelido à rendição, Licínio foi obrigado a lhe ceder quase todas as províncias orientais, mantendo apenas a Trácia.

Em 323-324, Licínio se rebelou novamente e de novo foi derrotado. Dessa vez, foi preso e morto, apesar das súplicas feitas por Constância ao irmão Constantino. A partir de então, desaparece qualquer resíduo da tetrarquia criada por Diocleciano, e Constantino domina como um monarca todo o Império Romano.

Em 325, acontece o famoso Concilio de Nicéia, o primeiro concilio ecumênico da Igreja Católica. Dele participaram cerca de trezentos bispos e prelados, na maioria orientais, sendo presidido por Osio, um homem de confiança do imperador. As principais questões abordadas foram o dogma da Trindade, a reafirmação da origem divina de Cristo e a condenação à heresia ariana.

Em 326, Constantino manda matar seu filho preferido, o primogênito Crispo (concebido com uma concubina), e, em seguida, a mulher Fausta. Segundo diz a lenda, Fausta teria acusado falsamente o enteado de assediá-la, e Constantino só teria descoberto a verdade depois.

No mesmo ano, condenou à morte também Liciniano, filho de sua irmã Constância e de Licínio.

Em 330, Constantino transferiu a capital para a cidade grega de Bizâncio, rebatizada de Constantinopla, após ser ampliada e reconstruída. Décadas antes, os imperadores romanos já tinham transferido o centro de comando para fora de Roma, por motivos logísticos e militares. Constantino fez algo a mais: criou uma segunda Roma, com o mesmo número de palácios, um Senado e benefícios iguais aos dos cidadãos romanos para seus habitantes (como a distribuição gratuita de trigo). Talvez Constantino se sentisse mais seguro e protegido no Oriente, prevalentemente cristão, do que em Roma, onde o grupo de senadores hostis a ele ainda tinha muito poder e influência, e quisesse que seus sucessores governassem o Império a partir de uma nova capital, "livre" dos antigos ranços.

Constantino morreu em 337. Só foi batizado à beira da morte, por um bispo ariano.

A Igreja Ortodoxa Grega até hoje o venera como santo.

Pouco depois de sua morte, foram eliminados seus meios-irmãos Dalmácio e Anibaliano, e o Império foi dividido entre seus três filhos legítimos: Constantino II, Constâncio II e Constante.

Constantino II foi assassinado em 340, em uma emboscada, pouco depois de tentar usurpar os domínios do irmão Constante, que, por sua vez, foi morto alguns anos depois, por um matador do usurpador Magêncio.

Constâncio II morre de febre em 346, na véspera de um combate contra o sobrinho e rival Juliano.

O cristianismo de Constantino

Segundo a tradição, na véspera da Batalha de Ponte Mílvio, Constantino teve uma visão (ou talvez um sonho profético), durante a qual recebeu um brasão milagroso e a ordem celeste de reproduzi-lo nos escudos, para obter a vitória. Esse brasão, dependendo da fonte, poderia ser um "X ao contrário, com as pontas dobradas" ou as iniciais gregas do nome de Cristo, x (chi) e p (ro), entrecruzadas.

Muitos historiadores colocaram em dúvida ou redimensionaram a veracidade do episódio. Talvez os soldados de Constantino, provenientes da Gália, usassem um símbolo solar no escudo, que poderia ser confundido com a cruz cristã;5 ou Constantino pode ter mandado gravar o monograma apenas para distinguir suas tropas das de Magêncio.6

Com certeza, Constantino, na época, já travara contato com ambientes cristãos. Por exemplo, o bispo Osio, de Córdoba, já fazia parte de seu séquito.

É possível imaginar que Constantino tenha aproveitado a ocasião para testar a eficácia da nova religião e, tendo visto que funcionava,, decidido adotá-la, transformando o Deus dos cristãos em seu protetor pessoal.

Em seguida, Constantino concedeu crescentes favores, financiamentos e reconhecimentos ao culto cristão. Os bispos, por exemplo, foram isentos do pagamento dos impostos, tornaram-se funcionários imperiais e até juízes de apelação.7 Em troca, obteve uma ingerência cada vez maior nos assuntos internos da Igreja, da qual se considerava "bispo externo".

Ao mesmo tempo, ele assegurou por muitos anos, pelo menos aparentemente, a prática dos tradicionais cultos romanos: assumiu o encargo de "Pontífice Máximo", ou seja, grande sacerdote do culto politeísta romano; aceitou a realização de jogos e sacrifícios aos deuses em sua homenagem; mandou cunhar moedas com a imagem do Sol Invictus, o Sol Invicto; e tornou feriado o Dies Solis, o Dia do Sol, nosso "domingo". O Sol Invicto era uma divindade adorada por muitos povos do Império e pelo próprio Constantino, antes da conversão.8 Ao mesmo tempo, entretanto, a esfera solar podia ser considerada um símbolo do Deus dos cristãos e de outras religiões monoteístas do Império.

Outro sinal do empenho de Constantino foi a promulgação de leis morais muito rígidas. Um exemplo é a seguinte, emanada em 320.

O homem que tomar uma moça, com ou sem seu consentimento, sem antes ter estabelecido um acordo com seus progenitores [...] não terá na resposta da moça nenhuma vantagem dada pelo direito antigo, e a própria moça será considerada culpada de cumplicidade no delito. E como muitas vezes a vigilância dos pais é burlada pelos discursos e comportamentos cativantes das nutrizes, que sobre elas [...] recaia a ameaça do seguinte castigo: a abertura de sua boca e de sua garganta, que emitiram sugestões arrasadoras, será fechada com a ingestão de chumbo derretido. Se for verificado o consentimento voluntário da virgem, que esta seja punida com a mesma rigidez que seu raptor, e não será concedida imunidade nem às moças que forem raptadas contra sua vontade, pois poderiam ter permanecido em casa até o dia do casamento, e se a porta houver sido arrombada pela audácia do raptor, estas poderiam ter pedido ajuda aos vizinhos com seus gritos e se defendido a todo custo. Mas, para estas moças, cominamos uma pena mais leve e ordenamos que sejam deserdadas por seus progenitores [...] Se os progenitores, para quem a vingança pelo crime deveria ser uma preocupação particular, mostrarem tolerância e reprimirem sua dor, serão castigados com a deportação.9

Os historiadores contemporâneos garantem que a adesão ao cristianismo de Constantino foi convicta e sincera, e é provável que seja verdade, se levarmos em consideração que as concessões religiosas de um oficial romano da época eram bem diferentes das nossas: "...a função do imperador é a de se colocar como sujeito coletivo que represente toda a cidade e todo o mundo (orbis), na qualidade de Imperator orbis. De fato, o primeiro encargo que Augusto reserva a si mesmo é o de Pontifex Maximus, representante junto à divindade que constitui o pacto da aliança [...] E isso continua em vigor até Constantino. Roma, portanto, através de seus sacerdotes, de seus institutos, de seus colégios coletivamente representados pelo imperador, pede à divindade três coisas:

1. a fertilidade das mulheres (tanto mães quanto Mulheres, pois, para os romanos, havia pouca distinção);

2. a vitória dos exércitos;

3. a paz social.

Em troca, ofereciam o culto às divindades.

O direito penal romano tem penas atrozes para os transgressores do culto, pois desrespeitar o culto significava desrespeitar o pacto [...] e a conseqüência da chama apagada pela não-observância de uma vestal era a infertilidade das mulheres, a derrota do exército e a desordem social. Esse é o esquema com base em que Roma age da República até Constantino. Constantino, quando proclama o Edito de Milão, realiza uma operação muito simples: como os velhos deuses não funcionavam mais, pensa em substituir o velho Panteão pelo deus dos cristãos, e, ao perceber que o motor volta a funcionar a pleno vapor e se converte [...] Constantino continua pagão, ou seja, ligado à mentalidade religiosa clássica, até sua morte."10

O primeiro Conselho de Nicéia e as heresias

Por volta de 314, ao menos dois grandes movimentos heréticos surgidos no norte da África, onde se encontravam as comunidades cristãs mais numerosas e ricas do Império, preocupavam Constantino.

O primeiro foi o cisma dos donatistas, um movimento rigorista, contrário aos compromissos com o poder imperial, que contava com muitos prosélitos e que, em 311, chegou a eleger em Cartago um antibispo, em contraposição ao legítimo.

Constantino, após tentar uma mediação, acabou apoiando o bispo legítimo Ceciliano, subvencionando a Igreja "oficial", proibindo que os donatistas usassem os locais de culto e negando o asilo para alguns de seus líderes. Em seguida, seu filho Constante promoveu uma perseguição ainda mais cruel e sanguinária contra eles.11

O outro movimento era muito mais perigoso: tratava-se dos agostinianos, um verdadeiro exército de guerreiros em nome de Cristo.

Os agostinianos eram expoentes de classes populares com reivindicações políticas e sociais, como a libertação dos escravos, o perdão das dívidas e o fim dos usurários.

Eles se organizavam em batalhões armados que realizavam incursões avassaladoras nas grandes propriedades, incendiando casas e matando as famílias dos latifundiários mais odiados.

Foram massacrados pelas tropas imperiais.

Na época de Constantino, outra grande disputa dividia o cristianismo. Principalmente no Oriente, os cristãos haviam se dividido entre partidários e adversários de Ário, um presbítero da diocese de Alexandria.

Ário e seus seguidores afirmavam que o Filho de Deus, ao contrário do Pai e tendo sido por Ele criado, teve um início; portanto, Cristo representava uma divindade de segundo plano. Foi para resolver essa questão que Constantino convocou, em 325, em Nicéia (na antiga Turquia), aquele que ficou na história como o primeiro concilio geral da Igreja Católica. Dele participaram mais de 300 bispos e prelados, com exceção do bispo de Roma, que mandou dois representantes.

As conclusões desse primeiro concilio foram muito importantes para a história da Igreja. A grande maioria dos padres aprovou um Credo, no qual se afirmava que o Filho fora gerado, e não criado, com a mesma substância do Pai (em grego, homooüsion, quando, para os arianos, era apenas homoioúsion, ou seja, "de substância similar"). Pela primeira vez, foi proclamado dogma, ou seja, verdade revelada, um termo que não estava contido nas Escrituras (em nenhuma passagem, o Novo ou o Antigo Testamento afirmam que o Filho é consubstanciai ao Pai).

Além disso, os Padres Conciliares declararam sua crença no Espírito Santo, tradução do hebraico ruah, que era, no entanto, de gênero feminino.12 A Trindade proclamada pelo Concilio era constrangedoramente similar à tríade das religiões politeístas. E, para surpresa, até os bispos arianos aprovaram o novo Credo, salvo por dois deles, que logo foram exilados.

No Concilio de Nicéia, foram tomadas outras decisões muito importantes para a vida da Igreja: por exemplo, ficou estabelecido que apenas outros bispos, e não mais as comunidades que reuniam todos os fiéis, poderiam consagrar um novo bispo. O território da cristandade também foi dividido em zonas de influência, sujeitas ao poder, respectivamente, dos bispos de Roma, Antióquia e Alexandria, que passaram a se chamar metropolitas. A legitimação da autoridade na Igreja não vinha mais de baixo para cima, mas de cima para baixo.

O Concilio não marcou o fim do arianismo. Entre 327 e 328, Constantino reabilitou Ário e alguns de seus seguidores, e nomeou como conselheiro o bispo ariano Eusébio de Nicomédia, que o batizaria em seu leito de morte. Pelo contrário, a partir de 326 foram exiladas dezenas de bispos antiarianos.13

Sucederam-se vários combates entre facções, com muitos mortos e feridos; concílios e contraconcílios, que condenavam ora uma tese, ora outra; de exílios e de retornos; de perseguições por parte de imperadores "arianos" e "niceianos".

Todos os historiadores concordam que Constantino não entendia nada de questões doutrinárias. A única coisa que lhe interessava era tornar o cristianismo uma crença homogênea, sem nuances, sem ambigüidade, livre de conflitos internos perigosos.

Tirando isso, a unidade era uma obsessão sua: unidade do poder político em torno de sua pessoa e dinastia; unidade das populações sujeitas a Roma, amalgamadas por uma religião única, na qual confluíam elementos culturais de origens diferentes; e unidade da Igreja, obtida impondo-se a todos os crentes a opinião da maioria, ou pelo menos da maioria dos amigos do imperador, e se estes mudavam, mudava também a política religiosa do imperador.

As motivações de ordem política e social eram evidentes na repressão aos donatistas e aos agostinianos.

A história da heresia ariana, no entanto, foi mais complicada. Nem as teses trinitárias nem as arianas colocavam em risco o projeto imperial de hegemonia, mas a controvérsia em si representava um perigo.

Não se podem obter estabilidade e paz social com uma religião partida em facções que se condenam e renegam reciprocamente a autoridade e legitimidade da outra. Escolher significava, contudo, um "mal menor". Provavelmente, o que fez a balança pender primeiro para uma posição, depois para outra, foram considerações muito pragmáticas: a cada vez, a efetiva força de uma ou outra corrente ou a utilidade de seus defensores.

A militarização do cristianismo

Jesus ensinava a "dar a outra face", a "amar os próprios inimigos", mandou Pedro devolver a espada à bainha e o reprovou: "Quem com a espada fere com a espada perece" (Mateus, 26, 52).

Talvez nem todos os primeiros cristãos estivessem dispostos a "dar a outra face" e a sacrificar a vida, mas, com certeza, entre eles era muito difundido um sentimento de repúdio às armas.14 Teólogos e bispos, venerados ainda hoje como santos, escreveram páginas inequívocas sobre o assunto.

Nós, cristãos, não erguemos mais a espada contra uma nação, não aprendemos mais a arte militar.

O fato é que nos tornamos filhos da paz, graças a Jesus Cristo, que é nosso Senhor, e desertamos de chefes a quem serviram nossos antepassados: se aceitássemos suas ordens, nós nos tornaríamos estranhos à promessa divina.15 Que se diga ao soldado para não matar. Se receber ordem para matar, que se recuse. Do contrário, que seja afastado [da Igreja]. Se um catecúmeno ou fiel quiser servir como soldado, que seja afastado, pois despreza Deus. O cristão não pode se tornar soldado voluntariamente. Quem carrega uma espada deve prestar atenção para que não faça escorrer sangue. Se o fizer, não poderá participar dos mistérios."

Quando alguém comete homicídio, fala-se de crime; mas quando é o Estado que o encomenda, chama-se "ato de coragem". Aos cristãos não é permitido matar outrem; ao contrário, que deixem que assassinem a ele.17

Alguns cristãos chegaram a enfrentar o martírio por se recusarem ao serviço militar, como o jovem Maximiliano. Convocado em 295, declarou: "Não me é lícito prestar serviço militar, pois sou cristão", e foi decapitado.

As coisas mudaram com a chegada de Constantino.

O Concilio de Áries, de 314, excomungou os cristãos que desertaram em tempos de paz.18

O Concilio de Nicéia pareceu retomar os velhos costumes, tanto que o cânone 12, nele aprovado, dispõe: "Aqueles que, sentindo-se chamados pela graça, e por zelo a abandonaram a divisa, mas logo depois, como cães, voltaram atrás, chegando a oferecer dinheiro e presentes para serem aceitos novamente ao exército, devem permanecer entre os penitentes por treze anos..." Durante o reinado de Teodósio I, ao contrário, foram excomungados os relutantes e os desertores.

Os perseguidos se tornam perseguidores: a repressão ao paganismo

Os cristãos, que ainda exibiam na carne os sinais das perseguições," tornaram -se perseguidores.

Durante os últimos anos de vida de Constantino, vários templos pagãos foram demolidos, sobretudo no Oriente. Outros templos continuaram em atividade, mas foram despojados de tudo que tinham de precioso: estátuas, objetos preciosos, revestimentos de ouro e prata, portas de bronze. Muitas obras de arte foram levadas para embelezar a nova capital: Constantinopla.20

As festas tradicionais pagãs, com seus jogos circenses e as lutas entre gladiadores, eram cada vez menos toleradas, com exceção daquelas em homenagem ao imperador e à sua família.

Só em Roma os templos e antigos cultos continuaram íntegros.

Em 341, Constante tentou proibir os sacrifícios com um edito.21 Mas a política antipagã dos sucessores de Constantino bateu de frente com um grande descontentamento por parte do povo.22

Em 361, subiu ao poder o imperador Juliano, apelidado de "apóstata" pelos historiadores. Ele tentou reorganizar a antiga religião politeísta e criou estruturas de assistência aos pobres, que concorriam com aquelas cristãs. Ao mesmo tempo, assegurou a liberdade de culto a todas as religiões do Império, inclusive ao judaísmo e às comunidades cristãs hereges.

Juliano morreu após apenas dois anos de reinado, e seus sucessores retomaram a política antipagã.

Em 392, o imperador romano Teodósio I proibiu mais uma vez todos os sacrifícios e cultos pagãos, fossem públicos ou privados, sob pena de confiscar os locais ou terrenos em que eram realizados. Os templos foram abandonados. Muitos foram demolidos, outros foram transformados em igrejas cristãs.

Os pagãos desfilavam em verdadeiros cortejos de protestos, exibindo suas imagens sagradas. Essas manifestações, por sua vez, desencadearam a reação dos cristãos e provocaram sangrentos tumultos.23

O imperador Teodósio II (408-450) mandou punir algumas crianças, culpadas de brincar com restos de estátuas pagas. E, de acordo com os elogios dos cristãos, Teodósio "seguia conscienciosamente cada ensinamento cristão".24

Em 415, em Alexandria, uma turba de fanáticos cristãos linchou a matemática, astrônoma e filósofa neoplatônica Hipácia, importante expoente da cultura pagã.25

Nos séculos que se seguiram, as antigas religiões pré-cristãs se tornaram cultos cada vez mais diminutos, ainda praticados em algum vilarejo camponês perdido (a palavra "paganismo" deriva, na verdade, do latim pagus, "vilarejo") ou em grande segredo por alguns intelectuais neoplatônicos.

Mas o paganismo não morreria completamente. Ele "...revive nas manifestações litúrgicas ligadas à vida do dia-a-dia, nas libações sagradas e no uso cada vez mais difundido do incenso, no culto aos santos e às relíquias, que tomam o lugar dos ídolos, na veneração a algumas árvores, animais, fontes e fenômenos naturais, que vive ainda nos dias de hoje".26

CAPITULO 3

As heresias antigas

O que é uma heresia?

"Um cínico poderia definir a heresia como a opinião expressa por um grupo minoritário que uma maioria suficientemente poderosa para poder puni-lo considera inaceitável [...] Deus [...] está do lado da maioria: a ortodoxia, pode-se acrescentar, é aquilo que dizem Dele [de Deus]."1

O significado que hoje damos ao termo "heresia", ou seja, "opinião errada", é uma inovação tipicamente cristã. O primeiro a usá-lo com esta acepção foi São Paulo, em Gaiatas, 5, 20.

O termo "heresia" deriva do grego hàiresis, "escolha",2 e designava aqueles que pertenciam a uma escola filosófica por escolha. Hereges eram, portanto, os estóicos, os céticos, os epicuristas, mas também, no mundo hebraico, os fariseus, os saduceus e os essênios.3

A Igreja, desde o início, prestava uma atenção doentia à terminologia religiosa. Muitos eram os que se sentiam os únicos depositários da verdade. E, assim, um termo que indicava a pluralidade das escolas de pensamento assumiu o significado negativo que conhecemos hoje.

Mas não é fácil manter uma verdade. Durante a história, houve contínuas revisões e correções. Uma afirmação declarada herética por um concilio era derrubada por outro e vice-versa. O exemplo mais conhecido talvez seja o de Joana d'Arc, queimada na fogueira em 1431 e santificada em 1920. O bispo Teodoro de Mopsuéstia, que morreu em 428 em paz com a Igreja, foi declarado herege e condenado 125 anos depois de sua morte. Os bispos Estêvão, de Roma 254-257), e Cipriano, de Cartago (248-258), ferrenhos adversários sobre questões doutrinárias quando em vida, são ambos venerados como santos.

Argumentos religiosos que custaram milhares de mortos

Os primeiros séculos do cristianismo registram disputas intermináveis para estabelecer se Cristo era "da mesma substância do Pai" ou apenas "muito parecido", ou quantas naturezas coexistiam em Jesus Cristo. Disputas essa nas quais as opiniões consideradas equivocadas não eram apenas um erro, mas um pecado. Quem se obstinava em defender as próprias opiniões cometia um crime atroz, digno de uma pena severa.

Sobretudo quando o cristianismo se tornou religião de Estado, os "perdedores" nas disputas teológicas podiam ser punidos com o exílio, a tortura e a morte, a menos que se transformassem em perseguidores, quando o vento soprava a seu favor.

As tentativas de impor à força a "doutrina verdadeira" a populações inteiras podiam ensejar rebeliões, vinganças, massacres e guerras.

Mas divergências teológicas acerca da Trindade justificam conflitos que duraram séculos e fizeram milhares de mortos? Quantos dos participantes do Concilio de Nicéia, por exemplo, tinham real capacidade de compreender todas as nuances filosóficas do embate entre arianos e trinitários? Com certeza, os primeiros pensadores cristãos se encontravam diante de problemas teóricos nada pequenos: precisavam conciliar o rígido monoteísmo herdado dos judeus com sua fé em Deus feito homem, sem se confundir nem com as tradicionais mitologias pagãs (lembremos das transformações de Júpiter), nem com os cultos místicos concorrentes e as doutrinas agnósticas, segundo as quais cada homem que ultrapasse um determinado percurso iniciático pode se tornar deus.

Os bispos não pagam impostos

Mas havia questões doutrinárias que diziam respeito a elementos de importância concreta para a vida quotidiana das primeiras comunidades cristãs: por exemplo, era preciso definir se os fiéis que haviam renunciado à fé nas perseguições deveriam ser readmitidos ou se os sacramentos celebrados por sacerdotes indignos deveriam ser validados.

E, naturalmente, havia também os bastante concretos interesses materiais das nascentes elites cristãs.

Pouco mais de cem anos após a morte de Jesus, já existiam movimentos que lamentavam a corrupção e a decadência da Igreja, como os montanistas. Estes pertenciam a um movimento que nascera na Frígia no século II. Eles se consideravam puros, privilegiavam a relação direta com o Espírito, e as mulheres figuravam em primeiro plano. O próprio Montano, em sua missão, era ladeado por duas mulheres: Priscila e Maximília. Os montanistas foram perseguidos por séculos.4

Constantino, que transformou os bispos em funcionários do Império e lhes isentou do pagamento de impostos, apenas acelerou uma tendência já em curso no próprio corpo de Igreja. Os bispos há muito tinham deixado de ser simples porta-vozes das comunidades cristãs eleitos pelas Igrejas, ou seja, pelas assembléias de fiéis, tornando-se verdadeiros senhores que administravam a seu bel-prazer os bens da Igreja, ordenavam o clero menor de acordo com as próprias conveniências e, muitas vezes, "transmitiam" seu título aos filhos e irmãos. O cargo de bispo acabou se tornando muito desejado por membros das famílias abastadas.5

Apesar das disposições contrárias do Concilio de Nicéia, alguns homens foram nomeados bispos antes mesmo de serem batizados, como o filósofo neoplatônico (adepto de uma corrente de pensamento incompatível com o cristianismo) Sinésio de Cirene. O próprio Santo Ambrósio, já funcionário imperial, foi nomeado bispo poucos dias depois de ser batizado.6

Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, as acusações de heresia e as disputas teológicas se tornaram pretextos para jogos de poder nos quais a aposta era muito terrena: o controle de dioceses "ricas", o monopólio de recursos e matérias-primas importantes, a eliminação de rivais e adversários, e a divisão dos postos nas cortes imperiais.

Por vezes, de maneira ainda mais perversa, quem acreditava de maneira fanática na própria verdade podia usar o poder e a influência de que dispunha para impô-la aos outros. Alexandre, bispo de Alexandria, por exemplo, foi acusado de sabotar as provisões de trigo em Constantinopla para levar o imperador a assumir uma posição decisiva contra o arianismo.7

No espaço e no tempo, a mesma doutrina daria cobertura a projetos políticos bem diferentes entre si. Dentre os seguidores de Ário, estavam imperadores romanos que perseguiam os rebeldes e o rei godo Totila, libertador dos escravos.

Vários imperadores bizantinos aderiram à doutrina monofisista, mas muitos outros incentivaram rebeliões populares contra a autoridade de Constantinopla. E as aparentes contradições poderiam continuar.

Naturalmente, a muito complexa aventura do cristianismo não se explica apenas com fatores políticos, sociais e econômicos; há também elementos imponderáveis do ponto de vista racional.

Em épocas de grande taxa de analfabetismo, quando não existiam telecomunicações e as pessoas se locomoviam no lombo de um burro por estradas mal conservadas, um único pregador dotado de coragem e energia podia conseguir, com seu carisma e eloqüência, a conversão de populações inteiras.

Quando as teses de Lutero se difundiram no norte da Europa, muitos países as acolheram, conservando, no entanto, costumes católicos, como a confissão, que eram totalmente estranhos à doutrina luterana.

É provável que os bravos cristãos suecos e islandeses não se importassem com as divergências teóricas, que só quisessem ter ao seu lado padres que falassem sua língua, que fossem capazes de lhes explicar as Escrituras, que pregassem a moralidade sendo os primeiros a dar bom exemplo e não os dessangrassem com dízimos.

Começa a caça aos hereges

Talvez o primeiro caso de controvérsia religiosa dirimida por intermédio da lei tenha sido o de Paulo de Samósata, bispo de Antióquia (260-272). Ele era um monarquianista, ou seja, seguidor das doutrinas que não reconheciam a trindade de Deus.

Um sínodo de bispos convocado em 268 condenou suas doutrinas e o depôs. Em seguida, os bispos pediram ao imperador Aureliano que executasse suas decisões, estabelecendo, assim, o perigoso precedente da intervenção do poder temporal nas questões eclesiásticas. Tudo isso acontecia em uma época em que os cristãos ainda eram periodicamente perseguidos.

O imperador decretou a deposição de Paulo, que continuou em seu posto graças aos favores de Zenóbia, rainha de Palmira, sob cuja influência se encontrava a diocese de Antióquia, que impusera uma política anti-romana. '

Só em 272, quando o exército de Zenóbia foi derrotado pelo do imperador Aureliano, Paulo precisou abandonar sua cadeira.8

O arianismo depois de Constantino

O Concilio de Sárdica (Sofia), em 343, que se encerrou com a reiteração do que foi deliberado em Nicéia, foi abandonado pelos bispos orientais, que organizaram um contraconcílio em Filipópolis.

Em Constantinopla, durante o episcopado de João Crisóstomo (345-407), irromperam-se violentos conflitos entre arianos e niceianos9 que deixaram um saldo de vários mortos.

Em 353, Constâncio II, único imperador, impôs as doutrinas filo-arianas em todo o território do Império. Os arianos, então, passaram a defender a tese de que a Igreja deveria se submeter ao Estado, enquanto os niceianos lutavam por autonomia.

Em 357, o bispo ortodoxo Ósio, já centenário, foi obrigado, por meio de tortura, a subscrever as teses arianas do Concilio de Sírmio.

Em 361, com a ascensão ao trono de Juliano, o Apóstata, que tentou restaurar o paganismo, foi dada anistia geral a todos os cristãos perseguidos acusados de heresia, provavelmente emitida com o objetivo de enfraquecer o cristianismo.

O imperador Teodósio I, que subiu ao trono em 378, logo condenou as doutrinas arianas nos territórios do Oriente. No Ocidente, entretanto, onde de fato reinava a ariana Justina, a tolerância foi garantida.

Em 386, o bispo de Milão, Ambrósio, após negar a Justina a cessão de uma igreja para realizar o culto ariano, organizou uma vigília em sua própria basílica para defendê-la dos ataques dos emissários imperiais.

Os próprios arianos, por sua vez, estavam divididos em várias correntes. Em 362, em Antióquia, havia cinco comunidades cristãs separadas, cada qual com seu próprio bispo e hostil às demais. Quando Teodósio ampliou seus domínios aos territórios ocidentais, o arianismo foi banido por completo do território do Império, e o cristianismo niceiano se tornou a religião oficial do mundo romano.

Naturalmente, o decreto não significou a extinção automática da heresia ariana, que sofreria, mais de um século depois, perseguições por parte de Justino e, depois, de Justiniano.10

O cristianismo, em sua versão ariana, foi difundido entre os povos "bárbaros" do norte graças às preleções de Áudio, bispo de vida exemplar, e, sobretudo, de Wulfila (345-407), o bispo que, por volta de 375, traduziu para o godo o Antigo e o Novo Testamentos.

Foi graças a essa tradução que a crença ariana conseguiu se difundir entre os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os vândalos, os burgúndios e os lombardos.

"Ao contrário dos povos que viviam na Itália e que praticamente não se expressavam em latim, os bárbaros tinham a grande vantagem de aprender o Evangelho em sua língua falada. Os godos, assim, estavam mil anos à frente de Martinho Lutero."11

Em 525, o rei ostrogodo Teodorico interveio em defesa dos arianos de Constantinopla, oprimidos pelo imperador Justino. Para tanto, enviou à cidade um embaixador extraordinário, o papa João I, obrigado a apresentar ao imperador suas solicitações. Como o papa voltou a Roma no ano seguinte sem nada ter conseguido, Teodorico mandou prendê-lo, e João I morreu poucos dias depois.12

É óbvio que muitas vezes os soberanos arianos perseguiam os niceianos. Por exemplo, durante a dominação dos vândalos na África, estes sofreram vários tormentos. O auge foi no período entre 483 e 484, quando uma lei obrigou todos os católicos do reino vandálico a se converterem ao arianismo. Milhares de clérigos foram exilados no deserto junto com seus bispos. Muitos católicos foram condenados a torturas ou à pena de morte.'3

No entanto, até as populações bárbaras acabaram se convertendo ao catolicismo. No final do século VIII, o arianismo já havia desaparecido, e a crença niceiana triunfou como única Igreja verdadeira.

Os bispos pedem a cabeça dos hereges

É notório que os imperadores não eram muito sutis quando se tratava da eliminação dos dissidentes, mas, em determinado momento da história cristã, foram os próprios bispos que solicitaram a condenação à morte dos hereges.

O primeiro a sofrer as conseqüências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano, que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher.

Na realidade, as acusações infundadas de heresia e a condenação à morte pareciam servir a propósitos essencialmente políticos.14 O episódio causou horror em vários prelados católicos que não concordavam com as heresias doutrinárias. O papa Sirício condenou as mortes.

O bispo Martino de Tours (321-401) excomungou todos os bispos que sujaram as mãos com aquele sangue. Só mais tarde aceitou se reconciliar com eles, a pedido do imperador, e apenas para salvar a vida de outros "priscilianistas" condenados à morte. Até mesmo o bispo Ambrósio, de Milão, recusou-se a ter contato com os bispos envolvidos na morte de Prisciliano.

Naquela época, "a consciência da Igreja ainda não estava acostumada a considerar o derramamento de sangue uma expressão do amor pregado por Jesus Cristo".15

O assassinato de Prisciliano não pôs fim ao movimento, pelo contrário. Seus seguidores passaram a venerá-lo como mártir, dando vida a um movimento "priscilianista" que duraria mais de um século.16

A heresia nestoriana e o concilio que terminou em rixa

O nestorianismo deve seu nome a Nestório, bispo de Constantinopla que, por volta de 428, contestou a qualidade de "Mãe de Deus" atribuída a Maria.17 Na época, o culto mariano já era muito difundido, e as teses de Nestório deram vida a verdadeiros tumultos. Contra ele se opôs com violência até mesmo Cirilo, bispo de Alexandria (diocese que lutava contra a de Constantinopla pelo controle do Oriente).

Em 431, o imperador Teodósio II convocou um concilio ecumênico em Éfeso para dirimir a questão.

Naquela época, viajar era muito difícil, e, por essa razão, os bispos chegaram em momentos diferentes. Primeiro, foram os adversários de Nestório, aproximadamente duzentos bispos liderados pelo de Alexandria, Cirilo. Decidiram dar logo início ao concilio, sem esperar os que apoiavam a parte contrária ou os enviados do papa. Nestório foi obrigado a se apresentar e, como se recusou a entrar antes que seus seguidores chegassem, teve de depor "in contumacia". O bispo de Éfeso, Mêmnon, chegou a incitar a multidão contra Nestório. Poucos dias depois, chegaram cerca de quarenta bispos nestorianos, guiados por João de Antióquia, que formaram um contraconcílio no qual declararam hereges e excomungaram Cirilo e Mêmnon.

Chegaram, então, os enviados do papa, que reabriram o concilio "oficial" e excomungaram João de Antióquia.

Os trabalhos do concilio se complicaram ainda mais com a intervenção de alguns funcionários imperiais, as tentativas de corrupção e os embates populares entre partidários das duas facções. No final, o imperador Teodósio II encerrou a assembléia criticando duramente os participantes e exilou tanto Nestório quanto Cirilo.18

Derrotado no território imperial, o cristianismo nestoriano difundiu-se na Ásia, chegando à China, à índia e à Mongólia. Em 486, os cristãos da Pérsia adotaram as teses nestorianas e empreenderam uma feroz perseguição contra os católicos. Para o rei da Pérsia, era muito cômodo apoiar uma "Igreja nacional" que não dependesse de autoridades religiosas de um país adversário, como o bispo de Constantinopla.19

A heresia monofisista e o "latrocínio de Éfeso"

A doutrina monofisista deve seu nome ao grego monos, único, ephisis, natureza, e nasce como uma reação ao nestorianismo. Os mononsistas afirmavam que Jesus Cristo possuía uma única natureza divina e nenhuma natureza humana.

O líder da doutrina foi Eutiques, monge de Constantinopla que, por suas idéias, sofreu violentos ataques, sendo proibido de realizar os ritos sacerdotais. Graças a seus conhecimentos na corte imperial do Oriente, no entanto, suas doutrinas ganharam o apoio do imperador Teodósio II, que, em 449, convocou um concilio ecumênico em Éfeso para discutir a questão.

A assembléia foi fortemente direcionada de modo a dar ganho de causa às teses mononsistas. As tropas imperiais se lançaram com força contra os adversários de Eutiques, que não tiveram permissão nem para tomar a palavra. Um documento enviado pelo papa nem foi lido, e até mesmo o remetente foi excomungado. O bispo de Alexandria, Flaviano, levou uma surra tão grande que morreu pouco tempo depois.

O papa Leão Magno deu ao evento o nome de "latrocínio de Éfeso".20

Naturalmente, foi apenas o início de uma longa história. Por várias vezes, em uma intrincada trama de complôs, homicídios, alianças entre facções, ascensões ao trono de imperadores anti ou pró-eutiquianos, os católicos e os monofisistas se revezaram nos papéis de perseguidores e perseguidos, de vítimas e carrascos.21

As perseguições não deteriam a propagação do monofisismo. Ao contrário, graças às preleções de Tiago ou Jacó Baradai, bispo de Edessa, em 542, e fundador da Igreja Jacobita, países como Egito e Síria deram vida a Igrejas nacionais próprias, em contraposição à autoridade imperial. Mas nem Tiago conseguiu impedir a cisão de sua própria Igreja. Por exemplo, em 556, a sede episcopal de Alexandria tinha cinco pretendentes: quatro monofisistas de diversas correntes e um católico.

A Igreja etíope é até hoje monofisista. No século XVI, a Igreja romana contou com os portugueses para levar a ortodoxia à Etiópia, mas a operação falhou em razão de uma forte reação nacionalista que causou a expulsão de todos os missionários e a ruptura das relações com Roma. Mais recentemente, a Itália fascista tentou impor o catolicismo às suas colônias, mas a Igreja etíope resistiu. Ainda hoje, no Egito, existem duas Igrejas monofisistas: a copta e a melquita. Na Síria e na Mesopotâmia, ainda existem jacobitas, e na Armênia se professa uma confissão monofisista.

Os paulicianos

Seita de provável origem maniqueísta ou agnóstica,22 que surgiu na Ásia Menor por volta do século VIL Tinha essa designação por causa da peculiar veneração aos escritos de São Paulo.2'

Sua doutrina diferenciava claramente um Deus criador do espírito e um Deus senhor e criador da matéria. Os paulicianos negavam a Encarnação e consideravam Cristo um anjo de Deus. Aceitavam como textos sagrados apenas os Evangelhos e as Cartas de Paulo e recusavam os sacramentos, as imagens sagradas, a hierarquia eclesiástica e a vida monástica. Em vez da missa, celebravam o ágape (festa do amor).24

Os paulicianos também formavam um movimento de protesto político, social e de revolta contra o despotismo bizantino e búlgaro.


Sofreram várias perseguições por parte do Império Bizantino, que os condenou oficialmente em 687. Eles, então, se organizaram como Estado independente e empunharam armas em sua defesa, até a derrota militar definitiva, em 752. Mas a derrocada não significou o fim do movimento. Há provas de que foram perseguidos pelo Império de Constantinopla ainda em 840. Alguns deles acabaram se mudando para as terras do emir de Melitene e lutando entre os árabes.

Outro ramo do movimento, sediado na Trácia, teria sobrevivido até o século XIII e inspirado o movimento herético búlgaro dos bogomilos.

Os bogomilos

Movimento dualístico que surgiu nas primeiras décadas do século X e que ganhou este nome graças às profecias do padre búlgaro Bogomil.

Para os bogomilos, havia uma clara antítese entre Deus, criador do espírito, e o demônio, criador da matéria. Eles acreditavam nas mesmas teorias que os paulicianos e pregavam a igualdade social e o afastamento dos pobres do domínio do clero e da nobreza. O bogomilismo se difundiu nos séculos seguintes nos Bálcãs e até as fronteiras de Bizâncio. Fortemente perseguidos pelos soberanos búlgaros e pelos imperadores bizantinos, os bogomilos se espalharam por toda a Europa Central e Ocidental, onde foram alvo de repressão das autoridades católicas.25

Em 1203, o rei da França, Roberto, o Pio, a pedido da Igreja, mandou queimar na fogueira, em Orleans, uma dezena de hereges "maniqueístas", provavelmente bogomilos mais avançados ou, talvez, os primeiros cátaros.26 Um episódio análogo ocorreu em Milão por volta de 1208.27

Na Bósnia, o bogomilismo chegou a se tornar religião de Estado. Em 1203, no entanto, o soberano Kulin só conseguiu se manter no poder ao concordar em trocar a doutrina bogomilista pela católica romana e acatar a tutela húngara.28


CAPÍTULO 4

Justiniano, os massacres em nome da fé

O imperador do Oriente, Justiniano (527-565),1 conseguira consolidar o próprio poder graças ao auxílio de um "esquadrão da morte" treinado por ele próprio. Na prática, tratava-se de um bando de sanguinários que assassinava todos os seus rivais na corrida pelo trono: o general Vitaliano, o eunuco Amázio e um número impreciso de aristocratas.2

Uma testemunha da época comentou: "Até mesmo a mão de Deus, guiada pelo Patriarca, protege suas iniciativas de erradicar os inimigos da fé".3 De seu longo reinado, ficaram o imenso Corpus iuris civilis, código que ordena em um único conjunto de leis orgânicas toda a jurisprudência romana, e a decidida política de reconquista militar dos territórios ocupados pelos bárbaros. Mas não se pode esquecer o massacre de Nika, em janeiro de 532. Durante a partida de uma corrida de bigas no imenso hipódromo de Constantinopla, o imperador Justiniano e sua mulher, Teodora, foram vaiados pela multidão que reclamava das excessivas obrigações fiscais. O protesto transformou-se em um verdadeiro tumulto, que teve como insólitos aliados líderes de facções de grupos populares e de aristocratas. Justiniano precisou se refugiar em seu palácio, tal foi o assédio dos revoltosos.

O imperador, então, ofereceu doações em dinheiro aos líderes e convocou o povo todo para uma assembléia pública no hipódromo, onde anunciaria importantes novidades.

Os revoltosos, dessa forma, se reuniram no estádio, onde, em vez do imperador, entraram soldados do general Narsete, que assassinaram os presentes. Calcula-se que trinta mil pessoas tenham sido mortas.

Outro episódio famoso foi a violenta repressão aos rebeldes samaritanos, quando foram mortas mais de cem mil pessoas.


Talvez menos conhecida seja a pragmática disposição de 554, que estendeu a legislação imperial à Itália "liberta" dos bárbaros e que impôs a restituição de todos os bens desapropriados pelos godos aos aristocratas e à Igreja.

Dentre as propriedades a serem restituídas, havia também escravos e servos da gleba que os "bárbaros" haviam alforriado e que, assim, perderiam seu status de homens livres.4

O programa de Justiniano pode ser resumido pelo seguinte lema: "Um só Estado, uma só lei, uma só Igreja".5

A legislação imperial regulamentava cada aspecto da vida do Império, inclusive o religioso. Os bispos eram, em todo e qualquer aspecto, funcionários do Estado, com deveres de funcionários públicos, "assistentes sociais" e magistrados.6 Uma série de leis regulava, de maneira minuciosa, praticamente cada detalhe da vida do clero e dos monges, incluídas aí as práticas litúrgicas, como a entoação dos três cânticos principais do dia nos mosteiros (matutino, laude e vespertino). Além disso, as penas previstas para os transgressores eram severas: por exemplo, uma diaconisa que se casasse poderia ser punida com a morte ao lado do marido, e um monge que abandonasse o hábito era convocado pelo exército.7

As repressões de Justiniano

Justiniano foi um tenaz defensor da ortodoxia (é claro que era ele quem decidia o que era "ortodoxo" e o que não era) e um implacável perseguidor dos hereges e pagãos.

Um edito de 529 obrigava os súditos ainda não convertidos a se batizarem e se "instruírem na verdadeira fé dos cristãos". Os desobedientes seriam punidos com o confisco de todos os bens e a perda de todos os direitos; os batizados que voltassem a ser pagãos seriam punidos com a morte.8 Contra os hereges maniqueístas,' eram previstas medidas ainda mais graves: a morte e o confisco dos bens. A pena de morte também era aplicada aos ex-maniqueístas que voltassem a professar sua velha religião, que se relacionassem com os antigos companheiros de fé sem denunciá-los ou que guardassem escritos daquela seita, em vez de entregá-los às autoridades.10

Quando as tropas bizantinas reconquistaram a África e a Itália, Justiniano confiscou os templos de donatistas e arianos e mandou seus clérigos para o exílio.

É atribuída a ele a frase: "Para eles, já basta viver!"11 A repressão provocou uma rebelião de militares arianos na África, mas que foi contida após poucos meses de luta.

Em uma época em que os cultos pagãos ainda sobreviviam e os cristãos estavam divididos em infinitas correntes doutrinárias, é óbvio que não era difícil encontrar um traço qualquer em algum adversário político que o tornasse "inimigo da fé". De fato, não poucos expoentes da alta nobreza, acusados de paganismo ou heresia, foram presos, torturados, mortos ou se suicidaram.12

Outras igrejas montanistas foram destruídas pelos missionários de Justiniano nas décadas que se seguiram. Os ossos dos fundadores da seita, guardados e venerados como relíquias, foram incinerados.13

Com os judeus, no entanto, Justiniano manifestou uma relativa tolerância. Deixou-os livres para praticar seu culto, ainda que eles fossem juridicamente inferiores aos cristãos. Por exemplo, um judeu não podia testemunhar contra um cristão nem possuir escravos cristãos.

Seus ritos também eram disciplinados pela lei: os judeus não podiam celebrar sua Páscoa se esta acontecesse antes da cristã, nem discutir ou interpretar as passagens da Bíblia. Por lei, deviam acreditar na ressurreição dos mortos, na existência dos anjos e no juízo universal.14

O imperador, por outro lado, foi impiedoso com os samaritanos, os "cismáticos" do judaísmo: privou-lhes do direito de testemunhar e de herdar, e mandou destruir suas sinagogas.

A perseguição fez eclodir uma verdadeira revolta na Palestina; em represália, muitos cristãos foram mortos, e igrejas, incendiadas. "Seguiu-se uma violentíssima repressão: vilarejo por vilarejo, colina por colina, o país foi reconquistado em 529 e 530. Mais de cem mil samaritanos foram mortos, muitos fugiram para a Pérsia, outros se converteram."15 Em 555, uma segunda revolta foi contida de forma igualmente dura.

Portanto, quando se tratava de defender a "fé verdadeira", Justiniano não olhava nos olhos de ninguém. Mas abriu uma exceção para os monofisistas, pois sua mulher também era monofisista. E, como ela, muitos outros súditos, sobretudo no Egito, um dos "celeiros" do império. Teve para com eles um comportamento que oscilava entre repressão e tentativas de reconciliação.

No período entre 527 e 544, alternaram-se concílios, manifestações em praças, exílios, reintegração de bispos e teólogos mononsistas, intervenções de tropas para tirar bispos e sacerdotes hereges de seu posto, editos dogmáticos (ou seja, decretos que impunham posições doutrinárias por lei).16

Em 544, Justiniano emanou um edito que acolhia, ao menos em parte, as teses monofisistas. O texto, conhecido como "A condenação dos três capítulos", declarava heréticas as doutrinas de Teodoro de Mopsuéstia (morto mais de um século antes); Teodoreto, teólogo; e Ibas de Edessa, acusado de nestorianismo.

Nas primeiras décadas do século XX, o lema de um político vienense que embarcara no carro do anti-semitismo era: "Decido eu quem é judeu ou não".17 O lema de Justiniano (mas também de muitos outros reis e imperadores cristãos antes dele) poderia ter sido: "Decido eu quem é herege ou não".

O papa preso

O papa Virgílio (537-555) se recusou a assinar o edito imperial. As tropas de Justiniano reagiram tirando-o de Roma para levá-lo à presença do soberano.18

A isso sobreveio um longo período de "toma-e-dá", de inflamadas conversações entre o imperador e o papa, que durou anos. Até que, em 551, Justiniano, impaciente, mandou prender o papa. "Uma tropa armada os cercou e arrancou o papa e os bispos que estavam com ele da igreja na qual haviam se refugiado. Virgílio, que os soldados tentaram pegar pela barba e pelos pés, agarrou-se a uma coluna do altar, que se quebrou, e a mesa do altar o teria esmagado, se seus clérigos não a tivessem segurado. Os gritos hostis da multidão fizeram a tropa bater em retirada, obrigando Justiniano a negociar. No dia seguinte, Virgílio, confiando na promessa solene do imperador de que não lhe seria feito nenhum mal, concordou em voltar ao palácio de Placídia, mas logo foi feito prisioneiro, ficando impossibilitado de receber seus clérigos e sendo submetido a várias vexações."19

Virgílio conseguiu fugir do palácio-prisão e se refugiou na basílica de Santa Eufêmia, na Calcedônia. Veio outro período de negociações e "acidentes de percurso" (as tropas imperiais entraram em Santa Eufêmia e prenderam os colaboradores do papa), ao final do qual o pontífice concordou em convocar um concilio ecumênico para dirimir a questão.

O concilio se reuniu em Constantinopla em 553. Virgílio não compareceu em protesto, pois os bispos ocidentais estavam sub-representados.

No final, os bispos presentes aprovaram as teses imperiais e censuraram os atos do papa.20

Teodoro de Mopsuéstia, morto 125 anos antes, foi declarado "ímpio", "herege" e excomungado post-mortem. Os clérigos romanos que apoiavam o pontífice foram exilados ou presos.21 As conclusões do concilio foram impostas por lei, e os hereges que voltassem atrás da retratação seriam condenados à morte.22 A validade do II Concilio de Constantinopla ainda é reconhecida pela Igreja Católica e pela ortodoxa. Virgílio aprovou, com relutância, a Condenação dos Três Capítulos e morreu, talvez envenenado, no caminho de volta.23

A nova confissão de fé, que deveria ter conciliado as várias almas da cristandade, acabou descontentando a todos. No Egito e na Síria, as Igrejas monofisistas prosseguiram em suas estradas. Muitos bispos, monges e clérigos católicos dissidentes foram presos e açoitados. O novo bispo de Roma, Pelágio, enfrentou a hostilidade geral dos cristãos de Roma e só pôde voltar à cidade com a ajuda das tropas imperiais.

Na Itália, chegou a haver um cisma: o bispo de Aquiléia se autoproclamou patriarca e deu vida, com outros bispos do norte da Itália e da Dalmácia, a uma Igreja autônoma que duraria mais de um século.24

A heresia monotelista

O imperador do Oriente, Eráclio (610-641), na tentativa de dar fim às disputas em torno da natureza de Cristo, que ainda dividiam e enfraqueciam a cristandade, enquanto a expansão árabe-islâmica já pressionava o Império, criou, junto com o patriarca de Constantinopla, Sérgio, uma nova doutrina, o monotelismo, imposto por lei.

De acordo com essa doutrina, Cristo tinha duas naturezas, divina e humana (fato sobre o qual não se insistia muito, para não desagradar os monofisistas), mas uma só vontade, a divina. O cerne da questão teológica estava em um campo capaz de encontrar adeptos tanto por parte dos monofisistas quanto de seus adversários.

A doutrina monotelista foi aceita pelo papa Onório I, mas rejeitada por seus sucessores. Para os bispos e teólogos da Igreja de Roma, atribuir a Cristo apenas uma natureza divina significava reduzir a humanidade e, portanto, diminuir o valor da Paixão.

Essa decisão custou ao papa Severino o saque do Palácio de Latrão pelas tropas bizantinas, além do banimento de toda a corte papal de Roma.25 Em 648, o imperador bizantino Constante II lançou um edito proibindo todas as contendas a respeito da vontade de Cristo.

O papa Martinho I reagiu condenando o edito imperial e excomungando o patriarca de Constantinopla, e também pagou por sua insubordinação: foi preso em 653 sob a acusação de conspirar contra o Império, levado a Constantinopla, arrastado pela cidade nu e acorrentado, preso e, finalmente, mandado para o exílio na Criméia, onde morreu em conseqüência das privações sofridas em 655.26

Outro adversário do monotelismo, o monge grego Máximo, o Confessor, foi preso, torturado, mutilado e depois exilado.27

Apenas em 681, com o VI Concilio Ecumênico de Constantinopla, encerraram-se as controvérsias sobre a posição do Filho na Trindade.

Os cristãos destroem imagens sacras

No século VII, os cristãos se dividem acerca da questão do culto das imagens e se inaugura um século de guerras, invasões militares, perseguições, revoltas populares.

De um lado, estão os mosteiros, donos de imensas riquezas, com grande apoio popular graças exatamente ao culto das imagens sacras. De outro, estão os iconoclastas, que condenam as imagens sagradas como ídolos e superstições.

Os imperadores do Oriente temem o poder e a influência dos mosteiros e, assim, se aliam aos iconoclastas. Quem se rebela contra a nova corrente é perseguido e morto. Nem os bispos de Roma, tão distante de Constantinopla, conseguem escapar. Enfrentam várias conjurações e até mesmo expedições militares.

Mas a frota mandada por Bizâncio para sujeitar o papa afunda em uma tempestade. Deus apóia o culto das imagens?28

Iconoclastia

A iconoclastia (do grego eikon, imagem, e klaein, quebrar) consiste em um amplo movimento que se desenvolveu nos territórios do Império Bizantino, após os sermões de Serantapico de Laodicéia (cerca de 723). Os iconoclastas se remetiam às Sagradas Escrituras e, em particular, ao segundo dos dez mandamentos: "Não farás para ti ídolos nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na Terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra..."29

Os imperadores de Constantinopla, de imediato, apoiaram o movimento para ganhar a simpatia das comunidades orientais, próximas do invasor muçulmano, e para limitar o poder dos mosteiros.

No ano de 725, o imperador Leão III se declarou contrário à veneração das imagens e publicou algumas disposições que limitavam seu culto. Vários bispos orientais aderiram às diretivas imperiais, mas a oposição dos monges provocou, em Constantinopla e em outras cidades, revoltas populares reprimidas de maneira sanguinária.

A política iconoclasta dos imperadores de Constantinopla continuaria por mais de sessenta anos, período em que os adoradores das imagens seriam depostos, perseguidos, torturados e mortos sem piedade, e em que a questão das imagens teria servido de pretexto até para uma sangrenta guerra civil.

Em 786, a imperatriz Teodora convocou um concilio em Constantinopla, com a aprovação do papa, para restaurar o culto às imagens. A assembléia, no entanto, teve de ser dissolvida pela rebeldia de algumas tropas iconoclastas.

O concilio se reuniu depois em Nicéia, onde confirmou a validade do culto às imagens (787). Mas a iconoclastia seria recrudescida, primeiro durante o brevíssimo reinado de Constantino IV (deposto e cegado pela própria mãe, Irene), e depois, com maior estabilidade, sob o imperador Leão V, que subiu ao trono em 813, e seus sucessores. A adoração às imagens foi restaurada definitivamente em 843.

A iconoclastia deteriorou gravemente as relações entre o Império Bizantino e a Igreja de Roma. Os papas se opuseram orgulhosamente a essa doutrina e resistiram às reprovações de Constantinopla, que tentou em vão submeter a Igreja latina através de conjurações, ataques-surpresa e expedições militares. As divergências entre o papa e o imperador acabaram afastando total e definitivamente a cidade de Roma do controle da administração bizantina.

UMA PEQUENA CRONOLOGIA

723 - Por volta desse ano, com os sermões de Serantapico de Laodicéia, ganha espaço entre os árabes uma doutrina que condena a adoração às imagens sagradas: em breve, a iconoclastia irá se propagar até Constantinopla.

726 - O imperador Leão III se pronuncia contrariamente à adoração às imagens e manda retirar a imagem de Cristo de cima da porta de bronze do palácio imperial. A ordem dá ensejo a um protesto popular duramente reprimido. Em Roma, o papa Gregório II condena o edito de Leão III e convida os fiéis da Igreja de Roma a não segui-lo.

727 - Aproveitando as divergências que opõem Gregório III e o imperador Leão III, e as rebeliões populares que eclodem em várias cidades bizantinas, o rei lombardo Liutprando ocupa Sutri e Ravena, levando o exarco (o governador) Escolástico a fugir. Sutri, depois, é cedida ao papa. Essa doação é por muitos considerada a certidão de nascimento do Estado Pontifício.

Em Roma, exércitos fiéis a Bizâncio tentam matar Gregório II, mas são derrotados pelo povo romano; o exarco Paulo tenta capturar o papa, mas sua tentativa fracassa com a oposição das milícias romanas.

728 - O exarco Paulo se dirige a Roma, mas é derrotado e morto pelos antiiconoclastas. No mesmo ano, Roma se rebela contra o novo exarco Eutíquio, nomeado pelo imperador Leão III, separando-se definitivamente de Bizâncio. Os bizantinos, no entanto, conseguem reconquistar Ravena e tentam ocupar Bolonha, mas são derrotados pelos lombardos. Liutprando, rei dos lombardos, por sua vez, como defensor da fé ortodoxa e do papado, toma dos bizantinos a cidade de Classe e vários territórios na Emília.

729 - Acordo entre o exarco Eutíquio e o rei lombardo Liutprando. Eutíquio ajuda Liutprando a sujeitar os duques de Spoleto e Benevento, que, até então, gozavam de uma quase completa autonomia, em troca de auxílio para reconquistar Roma. Os dois exércitos, então, dirigiram-se a Roma, mas antes do ataque decisivo o papa Gregório II conseguiu convencer Liutprando a desistir da empreitada.

730 - Após o fracasso das tentativas com o clero contrário à iconoclastia, o imperador bizantino Leão III publica um edito em que ordena a destruição de todas as imagens cultuadas, depondo o patriarca Germano, que se recusa a aprová-lo. Para boicotar a igreja itálica antiiconoclasta, ele submete a Sicília e a Calábria à jurisdição do patriarcado de Constantinopla.

731 - O papa Gregório II se recusa a reconhecer Germano, o sucessor iconoclasta do patriarca de Constantinopla, mas pouco tempo depois falece. Sucedido por Gregório III, que de pronto condena a doutrina iconoclasta; mas os mensageiros encarregados de levar a decisão a Constantinopla são presos pelo comandante Sérgio na Sicília.

742 - O novo imperador Constantino V, em meio à campanha contra os árabes, é atacado e derrotado por seu cunhado Artavasde, que se proclama imperador, apresentando-se como o campeão da "adoração às imagens", e é coroado em Constantinopla. Enquanto o culto às imagens é restaurado na cidade, Constantino V foge e obtém o apoio incondicional de anatólicos e trácios.

743 - Constantino V retoma o poder pelas armas, manda cegar Artavasde e seus dois filhos, e se vinga de seus seguidores.

753 - O rei dos lombardos, Astolfo, impõe um tributo pessoal aos romanos, a título de protetorado. Sua recusa a suspender a aplicação do tributo leva o papa a solicitar o auxílio de Constantinopla para defender Roma, mas o imperador Constantino V se recusa a intervir. Com a ruptura da paz, os lombardos dirigem-se a Roma vindos de várias direções, para bloquear todas as vias de acesso à cidade. Diante do perigo lombardo, o papa envia um peregrino ao rei dos francos, Pepino, pedindo sua ajuda. Mas o rei Pepino não intervém, o papa deixa a Itália e, nos primeiros dias do ano seguinte, junta-se ao rei dos francos em Vetry.

754 - No palácio imperial de Hieria, na costa adriática do Bósforo, reúne-se um concilio de bispos favoráveis à iconoclastia ("sínodo acéfalo"), que condena a adoração das imagens. Após a assembléia, em toda parte as imagens sagradas são destruídas e substituídas por pinturas de temas profanos. Os dissidentes são perseguidos sem trégua.

756 - Astolfo mais uma vez cerca Roma. O papa manda outros embaixadores a Pepino, para pedir ajuda. Os francos descem até a península, derrotam o exército lombardo e impõem a Astolfo um novo tratado. O rei lombardo entrega o papa a Pentápolis e Comacchio e aceita pagar um tributo ao rei dos francos. Pepino dá ao pontífice os territórios, que se tornam oficialmente "patrimônio de São Pedro", recusando-se a aceitar o pedido dos embaixadores bizantinos que requeriam a restituição do exarcado de Ravena.

760 - Trezentos navios bizantinos chegam à Sicília para atacar a Península Itálica, enquanto a diplomacia de Constantinopla trabalha fervorosamente para isolar o papa.

767 - Em Constantinopla, a oposição à iconoclastia se reúne em torno do abade Estêvão de Auxentios, que, no entanto, é assassinado pelo povo, encorajado pelo imperador.

768 - Sérgio, filho de Cristóvão, no comando dos lombardos, monta acampamento na colina de Gianicolo. O papa Constantino é preso, e, para ocupar seu posto, é eleito o padre Felipe. Mas Cristóvão intervém e faz o povo romano expulsar Felipe, levando a uma nova eleição regular, na qual é escolhido Estêvão III. A eleição é acompanhada por novas desordens e uma série de vinganças.

775 - O imperador oriental Constantino V morre durante uma expedição contra os búlgaros. É sucedido pelo filho Leão IV, mais moderado e fortemente influenciado pela mulher, Irene, adepta do culto às imagens.

780 - A morte prematura de Leão IV leva ao trono seu filho, Constantino VI, de apenas 10 anos. A mãe, Irene assume a regência e se opõe vitoriosamente a uma tentativa de usurpação por parte dos tios paternos de Constantino, obrigando-os a se tornarem padres.

784 - Na igreja dos Santos Apóstolos em Constantinopla é aberto um concilio para restaurar a adoração às imagens, mas a intervenção dos soldados da guarda, em um primeiro momento, provoca a dispersão da assembléia. A imperatriz Irene afasta as tropas iconoclastas da capital com o pretexto de uma campanha contra os árabes e chama para Constantinopla tropas trácias, fiéis ao culto às imagens.

786 - Inicia-se, na igreja dos Santos Apóstolos, em Constantinopla, um concilio para retomar a adoração às imagens, mas a intervenção dos soldados da guarda, em um primeiro momento, dissolve a assembléia. A imperatriz Irene então afasta as tropas iconoclastas da capital, com o pretexto de uma campanha contra os árabes, e convoca tropas trácias, fiéis ao culto às imagens, para ocupar Constantinopla.

787 - Finalmente é realizado em Nicéia um concilio convocado pela imperatriz bizantina Irene, que retoma definitivamente — não sem oposição — o culto às imagens.

790 - Eclode, em Constantinopla, uma grande divergência entre o imperador Constantino VI e sua mãe, Irene, que gera uma rebelião de iconoclastas contra a imperatriz, que, no entanto, consegue sufocá-la. Irene, então, tenta legalizar o próprio poder absoluto, apoiada pelas tropas da capital, mas a decisiva intervenção do exército da Ásia Menor proclama Constantino IV o único monarca.

797 - O imperador bizantino Constantino VI, que nesse meio-tempo ganhou o apoio dos ortodoxos e dos iconoclastas, morre após ter sido cegado por ordem de sua mãe, Irene, que se torna a única governante do Império. Irene é a primeira imperadora de Bizâncio e, para conservar a simpatia da população, concede isenções fiscais, em especial aos mosteiros, levando o sistema financeiro do Estado ao caos.

802 - Para resolver o problema da coroação do imperador Carlos por parte de Bizâncio, são enviados a Constantinopla embaixadores do papa e do imperador do Ocidente, com a missão de pedir a mão da imperadora do Oriente, Irene, de forma a unificar os dois territórios. Contudo, pouco tempo depois da chegada dos embaixadores, uma revolta palaciana depõe Irene, que é deportada para Prinkipos e, posteriormente, para Lesbos, onde morre.

815 - Depois da Páscoa, tem inicio em Constantinopla um sínodo que anula o Segundo Concilio de Nicéia e volta à iconoclastia, retomando as perseguições contra os fiéis ao culto das imagens.

820 - O imperador de Bizâncio, Leão, o Armênio, é morto por seguidores de um antigo companheiro seu de armas, Miguel, o Armoriano, que ascende ao trono sob o nome de Miguel II. Durante seu reinado, as divergências religiosas têm um momento de trégua, já que ele proíbe qualquer discussão a respeito do culto às imagens.

829 - Sobe ao trono de Bizâncio o filho de Miguel II, Teófilo, último expoente da iconoclastia. Em seu reinado, a arte bizantina floresce notavelmente.

837 - João, o Gramático, tutor do imperador Teófilo e chefe dos iconoclastas, torna-se patriarca de Constantinopla e dá início a uma severa perseguição aos adoradores de imagens.

842 - Morre o imperador de Bizâncio, Teófilo, e a iconoclastia, já pouco popular, rui definitivamente.

843 - O patriarca João, o Gramático, é deposto em Constantinopla. Metódio é eleito para assumir seu lugar, e um sínodo realizado em março proclama solenemente a restauração do culto às imagens.

Nasce o Estado Pontifício

Pouco depois da morte de Justiniano, assentaram-se na Itália vizinhos inconvenientes para os bispos de Roma: os lombardos, que em várias ocasiões ocuparam boa parte da península.

Em 728, o rei dos lombardos, Liutprando, tentou tirar vantagem do conflito que opunha a Igreja de Roma e o Império Bizantino acerca da questão da iconoclastia e, sob o pretexto de defender o papa, invadiu os territórios bizantinos do exarcado de Ravena e da Pentápolis (composta por Rimini, Pesaro, Fano, Senigallia e Ancona).30 No mesmo ano, doou à Santa Sé os castelos de Sutri, Bomarzo, Orte e Amélia (o episódio é conhecido como a "Doação à Santa Sé"). Os territórios em si não tinham grande valor estratégico, mas foram o primeiro núcleo do que depois se tornaria o Estado da Igreja.

Nas décadas sucessivas, entretanto, o reino lombardo se tornou uma ameaça concreta à independência de Roma. Assim, os papas solicitaram a ajuda dos francos, um povo germânico que vivia há séculos na antiga Gália.31 No biênio 755-756, o rei dos francos, Pepino, desceu à Itália a pedido do papa Estêvão II, derrotou os lombardos que sitiavam Roma e presenteou a Igreja com Ravena, a Pentápolis e Comacchio. O ato do rei franco não foi uma doação desinteressada, e sim o pagamento de uma dívida. Alguns anos antes, na verdade, Pepirio era um simples ministro palaciano (o que hoje chamamos de "primeiro-ministro") do rei Quilderico III. Deu um verdadeiro golpe de Estado, com a aprovação prévia do papa. O próprio Estêvão II foi à Gália para coroá-lo rei, ungindo-o com óleo sagrado, em um rito tirado da Bíblia.32

Carlos Magno, filho de Pepino, ampliaria os territórios daquilo que, para todos os efeitos, era um Estado, dando-lhe a forma que manteria por mais de um milênio.

As "Doações de Constantino"

Todos Os territórios tão generosamente presenteados por Pepino eram, na verdade, propriedade do imperador de Bizâncio, que, furioso, protestou contra o furto. Providencialmente, tirou do nada um antigo documento, nada menos que o testamento assinado do imperador Constantino I. De acordo com o documento, Constantino, curado da lepra graças à ajuda do papa Silvestre, já havia doado à Igreja de Roma não só os territórios reconquistados por Pepino, mas toda a Península Itálica e o primado sobre as igrejas metropolitanas de Antióquia, Constantinopla, Alexandria e Jerusalém. Eis a razão por que, em dado momento, Constantino se mudou para Constantinopla: porque dera Roma ao papa.

O documento, conhecido como "Doação de Constantino" era falso, mas por dois séculos todos o acreditaram verdadeiro, inclusive os adversários do papa. A doação justificaria o poder temporal do pontífice durante toda a Idade Média. Nos séculos seguintes, entre altos e baixos, a Igreja incrementaria suas posses e sua influência sobre a vida política européia.

Os papas Gregório VII (1073-1085) e Inocêncio III (1198-1216) chegariam a teorizar a teocracia, ou seja, a supremacia do poder da Igreja sobre o dos reis e imperadores. Só em 1440, o humanista Lorenzo Valia conseguiria provar definitivamente que a doação era uma fraude, em seu tratado De falso credita et ementita Constantini Donatione.

CAPÍTULO 5

Carlos Magno, as conquistas e os crimes

Carlos Magno (cerca de 742-814) era o filho primogênito de Pepino, o Breve, ungido rei pelo papa Bonifácio, na presença dos bispos francos. Em 754, ajoelhou-se diante do papa para reconhecer por completo sua condição de súdito e autoridade. O papa, em troca do gesto de submissão, o ungiu rei e lhe conferiu o título de patrono dos romanos.

Com a morte de Pepino, em 768, o reino foi dividido entre os filhos Carlos e Carlomano, que morreu três anos depois. O irmão, então, apossou-se de todo o reino franco, expulsando seus sobrinhos, que se refugiaram, junto com a mãe, no reino dos lombardos, na Itália.1

Em 773, para socorrer o papado, tradicional aliado dos francos, Carlos desce à Itália para lutar contra os lombardos e toma toda a Planície Padana. Como causa direta da derrota militar, os súditos do duque lombardo de Spoleto e os habitantes de Ancona, Osimo, Fermo e Città di Castello se declararam súditos do papa.

Em 774, Carlos foi a Roma para a Páscoa, tendo sido triunfalmente recebido pelo papa e pelo povo. Nos anos seguintes, desceu mais duas vezes à Itália para conter a rebelião lombarda. Com as novas campanhas, apoderou-se do Friuli e sujeitou o duque de Benevento, destruindo, definitivamente, o domínio lombardo na Itália. Outra diretriz da expansão franca foi a Europa setentrional, dominada pelos saxões, contra quem Carlos se mostrou um conquistador impiedoso. Em 772, estabeleceu os primeiros antepostos em território saxão e mandou construir mosteiros para facilitar o trabalho dos missionários (os saxões eram pagãos). Era o primeiro passo de um conflito que duraria mais de vinte anos.

A guerra contra os saxões foi longa e cansativa: os exércitos francos penetravam os novos territórios, desmantelavam os acampamentos inimigos e construíam fortificações.

Os saxões, por,sua vez, reorganizavam-se e destruíam as fortalezas francas. Mas Carlos teimosamente reconquistava o terreno perdido, mandava reconstruir os antepostos e, quando podia, criava novos em posições mais avançadas. "Era um método extenuante de fazer guerra [e que custa caro em termos de vidas humanas] e que não trazia grandes sucessos; mas, com o tempo, os recursos humanos e econômicos do invasor, altamente superiores, estavam destinados a prevalecer." (Alessandra Barbero, 2000, p. 56.)

"A submissão da Saxônia foi, em última análise, resultado de seu lento estrangulamento, com a construção de uma rede de bases fortificadas capazes de dar apoio umas às outras, de bloquear todos os rios, de mandar companhias de soldados devastarem os territórios inimigos, espalhando o terror e submetendo os habitantes, enquanto os fortes erguidos pelo inimigo eram tomados de assalto e destruídos, um após o outro, lentamente, mas de maneira eficaz." (Alessandra Barbero, 2000, p. 57.)

Oficialmente, a guerra se deu por questões fronteiriças, mas Carlos acrescentou a elas também motivações religiosas, como a proteção dos missionários cristãos e a conversão dos pagãos. O batismo forçado era imposto aos saxões que se rendiam, e os que não aceitassem eram condenados à morte.2

Em 782, eclodiu uma repentina e violenta rebelião saxônica. Os revoltosos exterminaram uma expedição militar enviada para dominá-los, matando ainda alguns colaboradores próximos de Carlos. O rei dos francos, em represália, entrou na Saxônia com um novo exército, obrigou as tropas rebeldes a se renderem e entregarem as armas e mandou decapitar 4.500 rebeldes em um único dia.3 A partir de então, Carlos Magno conduziu uma verdadeira guerra de devastação, que só terminou em 785, com a rendição dos saxões, assolados pela fome, e o batismo dos últimos líderes rebeldes.

Na mesma época, foi publicado o Capitulare de partibus Saxoniae, uma lei que punia com a morte quem ofendesse a religião cristã e seus sacerdotes. Dentre as "ofensas" punidas com a morte, havia faltas menores, como a não-observância do jejum de sexta-feira.4

Em 793, eclodiu a última grande rebelião dos saxões. Carlos, dessa vez, ordenou a deportação em massa da população das províncias rebeldes, substituída por colonos francos e escravos. Então, amenizou as medidas repressivas antipagãs e se reconciliou com os nobres saxões sobreviventes.

A expansão franca também chegou à Espanha, que na época estava sob o domínio do emir árabe de Córdoba. Com a cumplicidade de alguns dignitários muçulmanos contrários ao emir, Carlos organizou duas expedições militares em 778 e 797. A primeira foi um fracasso, e, durante a retirada, a retaguarda das tropas imperiais foi massacrada pelos bascos. A segunda levou, em 799, à conquista de Vichy. Outras expedições de conquista ampliaram os domínios ibéricos dos francos, até que, em 810, o emir de Córdoba firmou um tratado de paz reconhecendo o domínio franco na Espanha setentrional.

Finalmente, falemos da expansão para o leste, na Panônia (atual Hungria). Aqui, Carlos lutou contra o povo pagão dos ávaros, contra quem lançou uma guerra de extermínio. Os historiadores da época falam de um número tão alto de vítimas que deixou a Panônia "deserta".5 Os territórios assim esvaziados teriam sido então ocupados por colonos francos e germânicos.

O papa agraciado com o milagre

Em 795, Leão III é eleito papa. Sacerdote de origem humilde e reputação duvidosa, era malvisto pela nobreza. O próprio Carlos duvidava de sua moralidade, tendo em vista que, em uma carta cumprimentando-o pela eleição, pedia que o novo bispo de Roma seguisse escrupulosamente os cânones e as Constituições dos Pais da Igreja; além disso, encarregava o abade Angilberto de garantir pessoalmente que o novo papa "vivesse honestamente".6 Em 799, Leão III fugiu durante uma revolta de nobres romanos e se refugiou na corte de Carlos. Nesse meio-tempo, espalhou-se o boato de que o pobre papa teve os olhos arrancados e a língua cortada. Essa era uma prática comum para os bizantinos, para tornar inofensivo um adversário político sem se manchar com o pecado do homicídio.

Na verdade, Leão III permaneceu incólume e contou que sua língua e seus olhos voltaram a crescer por milagre.7

Ao território de Carlos chegaram também os adversários do papa, que o acusaram de perjúrio e adultério. Carlos entregou a questão a uma espécie de comissão de eruditos que devia avaliar a veracidade das acusações contra o pontífice. Um dos integrantes, o bispo Arno de Salisburgo, personalidade de prestígio e acima das partes, enviou à corte um verdadeiro relatório, cujas conclusões não deviam ser muito favoráveis ao papa. Tanto que Alcuíno, conselheiro de Carlos, destruiu o documento e respondeu ao prelado usando o famoso lema evangélico: "Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra."8 No final, Carlos decidiu tomar partido do papa e o mandou de volta a Roma escoltado por um exército. Pouco depois, em 23 de novembro de 800, ele mesmo dirigiu-se a Roma e foi recebido triunfalmente pelo clero.

Em 1° de dezembro, "Carlos, agindo como um novo Constantino, inaugurou os trabalhos do concilio que, na basílica vaticana, deveria se pronunciar a respeito das acusações feitas ao papa. Àquele ponto, no entanto, todos sabiam que se tratava de um processo político e que Leão sairia dele ileso: a assembléia confirmou que, tecnicamente, ninguém poderia julgá-lo e permitiu que se desculpasse das acusações, jurando solenemente sobre os Evangelhos a própria inocência, o que o papa tratou logo de fazer" (Barbero, 2000, p. 101). Leão III até hoje é adorado pela Igreja Católica como santo.

Em 23 de dezembro, Leão prestou o juramento de purificação relativo às acusações que lhe foram impostas, e seus adversários foram exilados.

Dois dias depois, durante a missa da noite de Natal, Leão III coroou Carlos Magno imperador e "augusto" do Sacro Império Romano. O círculo se fechava: por um lado, o papa cortava qualquer relação com o Império Bizantino (que considerava Roma sua extensão) e criava para si um imperador sob medida, com quem seria muito mais fácil se entender e de quem seria ainda mais fácil obter ajuda. Por outro lado, Carlos se tornava o verdadeiro chefe da cristandade no Ocidente e via formalmente legitimado e justificado o poder que já detinha de fato. Carlos (como Constantino antes dele) entendeu perfeitamente a formidável função agregadora e de instrumento de domínio espiritual que o cristianismo tinha em uma Europa ainda desunida e com as fronteiras ainda ameaçadas pelas populações "bárbaras" pagãs. Por essa razão, antes de ser coroado imperador, adotara uma política decisiva de cristianização dos povos a ele submetidos.

"Em seus cabeçalhos, se intitulava 'por graças de Deus e por concessão de sua misericórdia, rei e reitor do reino dos francos e devoto defensor e humilde servo da Santa Igreja, mas não nos deixemos enganar por seu tom.

A ajuda que o rei dava à Igreja consistia em nomear os bispos e abades, em vigiar severamente seu comportamento e reuni-los em concilio quando julgasse oportuno, determinando pessoalmente a ordem do dia e promulgando as conclusões; todas as responsabilidades que acostumamos a ver ligadas ao papa." (Barbero, 2000, p. 107.)

Para administrar e controlar melhor o Império, Carlos dividiu seu amplo domínio em reinos, por sua vez fragmentados em uma série de pequenos distritos chamados condados. Cada condado era entregue a um conde, que centralizava os poderes militar, judiciário e econômico. Nas regiões de fronteira, por razões militares, os condados eram reagrupados em unidades maiores, os marquesados, sob o governo de marqueses ou duques, onde sobreviviam os títulos lombardos. Um grande número de funcionários imperiais, os missi dominici, em geral eclesiásticos, viajavam de um condado a outro levando as ordens do imperador e controlando o trabalho dos vassalos.9

Carlos morreu em 814. Seu império duraria menos de um século, esfacelado pelas guerras entre seus sobrinhos e pelas ambições dos grandes feudatários.

Os súditos de Carlos

Quem pagava a conta das campanhas de Carlos? Quando lemos a respeito de exércitos em marcha e campanhas de conquistas que duraram anos, temos que pensar que, na época, as tropas não levavam seus provimentos consigo, tomando das populações locais tudo aquilo que precisavam: comida, cavalos, bois, forragem para os animais, lenha para o fogo etc. A passagem de um exército tinha como conseqüência quase inevitável devastações e escassez.

Na Itália arrancada dos lombardos, por exemplo, a escassez tinha chegado a níveis tais que muitos venderam seus terrenos a preços ínfimos e chegaram a vender a si mesmos e as próprias famílias como escravos aos mercadores gregos, embarcando em seus navios. O fenômeno atingiu proporções tamanhas que alarmou o papa e o próprio Carlos. Tanto que, no final, o imperador decretou uma lei extraordinária anulando a redução à condição de escravo e as alienações realizadas em estado de necessidade.10

Mas também em tempos de paz, para os povos conquistados, tornar-se súdito dos francos não devia ser grande negócio. Todos os súditos, aos 12 anos, deviam fazer um juramento de fidelidade ao imperador, que dizia expressamente que o fiel devia servir a Deus, obedecer aos mandamentos da Igreja, prestar serviço militar e, dependendo de sua situação econômica, pagar os impostos. Além dos tribunais ordinários, existiam os episcopais, para os crimes de natureza religiosa.

Os funcionários e os exércitos que os vigiavam a mando do imperador tinham o direito de se hospedar onde quisessem e requisitar cavalos, animais, carros, forragem e comida. Teoricamente, tais obrigações recaíam sobre todos os súditos livres, mas, na verdade, os mais prejudicados eram os pobres.11 Muitas vezes, condes, duques e marqueses criavam, por iniciativa própria, impostos e serviços obrigatórios, ainda que a lei, teoricamente, proibisse isso.

Uma reclamação de alguns súditos istrianos, que antes se submetiam ao Império Bizantino, expressa bem a idéia do nível de vexações às quais eram submetidos: "Na época dos gregos, nunca pagamos pela forragem;12 nunca trabalhamos de graça nas empresas públicas; nunca alimentamos os cães; nunca coletamos impostos, como fazemos agora; nunca pagamos pela matéria-prima, como fazemos agora, entregando todos os anos ovelhas e carneiros; e ainda devemos prestar o serviço de transporte até Veneza, Ravena, na Dalmácia, e ao longo dos rios, o que nunca fizemos antes. Quando o duque precisa partir para a guerra do imperador, pega nossos cavalos e leva consigo a força de nossos filhos, fazendo-os guiar os carros e depois tomando-lhes tudo e mandando que voltem para casa a pé; e nossos cavalos ficam lá na França ou são entregues a seus homens. Na época dos gregos, entregávamos, por ano, se necessário para os ritos imperiais, uma ovelha a cada cem, quem as tivesse; agora, ao contrário, quem tem mais de três deve entregar uma por ano. E fazemos todas essas prestações e pagamentos à força, porque nossos pais nunca os fizeram; e nossos parentes e vizinhos riem de nós em Veneza e na Dalmácia, assim como os gregos, que nos governavam antes." (Barbero, 2000, p. 215.)

Mas os bravos súditos istrianos também reclamaram das autoridades eclesiásticas: "Primeiro, a Igreja pagava metade de todos os impostos recolhidos para o Império, agora não mais. No mar público, onde todo o povo pescava junto, não ousamos mais pescar, pois os homens da Igreja nos pegam a pauladas e cortam nossas redes." (Barbero, 2000.)

Carlos Magno santo

Depois de sua morte, nasceu um verdadeiro culto à imagem de Carlos. Em 1165, Frederico Barba-Ruiva mandou sua "criatura", o antipapa Pascoal III, santificá-lo oficialmente.

Parece que já naquela época alguns eclesiásticos levantavam o problema de sua vida particular, por nada irrepreensível, dividida entre massacres promovidos por vingança e uma enorme quantidade de concubinas (e não se entende bem qual dos dois pecados era considerado o mais grave). Até hoje, a Bibliotheca Sanctorum, texto oficial da Igreja Católica, mostra algum constrangimento ao delinear sua biografia:

A vida particular de Carlos foi absolutamente deplorável, e não se podem decerto esquecer dois repúdios e muitas concubinas, nem os massacres justificados apenas pela vingança ou a tolerância para com a liberdade dos costumes da corte. Não faltavam, contudo, indícios de sua sensibilidade para a culpa em um período predominantemente rude e corrupto. Seu biógrafo Eginardo informa que Carlos não gostava dos jovens, muito embora convivesse com eles, e embora sua vida religiosa pessoal nos seja desconhecida, sabemos que fazia questão de observar os ritos litúrgicos que mandava celebrar especialmente em Aquisgrana (atual Aachen) com honras suntuosas.13

Hoje, o culto a Carlos Magno é celebrado oficialmente apenas na diocese de Aachen e é "tolerado por indulto da Santa Congregação dos Ritos" também em Metten e Münster.14

A corrupção do poder: a pornocracia romana

Observando a solenidade e a retidão dos conclaves atuais, é difícil imaginar que, nos primeiros séculos do cristianismo, as eleições dos bispos de Roma acontecessem em um clima bem diferente: com brigas, confrontos em praça pública, contestação de resultados, eleições de contrabispos. Quando o cristianismo se tornou religião de Estado, e o cargo de bispo de Roma passou a ser um dos mais cobiçados do Império, as lutas entre as facções dos candidatos rivais, por vezes, chegaram a níveis sangrentos. Durante a eleição episcopal de 336, por exemplo, os confrontos entre os que apoiavam Damaso, de base popular, e os que apoiavam seu rival Ursino, a aristocracia, deixaram um saldo de 136 mortos em um único dia. O próprio Damaso, eleito papa, foi intimado para responder no tribunal pela acusação de homicídio, mas foi absolvido.15

Os séculos seguintes presenciaram uma situação aparentemente paradoxal: o papado aumentava cada vez mais seu poder e sua influência, pelo menos no Ocidente. Mas justamente por isso, muitos tinham interesse em colocar no trono de Pedro um homem de sua confiança. Nobres romanos, grandes senhores feudais itálicos, prelados ambiciosos, imperadores legítimos e seus rivais... cada um jogava com as próprias cartas, que podiam ser intriga, homicídio, revoltas populares ou invasões militares. Nos 130 anos entre a eleição de João VIII (873) e a morte de Silvestre II (1003), houve 33 papas mais quatro antipapas. Dez deles morreram assassinados. Muitos foram presos ou exilados. Poucos governaram por muito tempo, muitos ficaram menos de um ano ou até poucos dias. Nobres romanos e grandes senhores feudais itálicos, imperadores legítimos e seus rivais: todos procuravam colocar no trono de Pedro um homem de sua confiança.

Talvez isso possa explicar o que os historiadores chamam de período da pornocracia (ou seja, do "governo das prostitutas"),16 um dos mais negros da história da Igreja.

De fato, por décadas, o poder de Roma esteve nas mãos das mulheres da poderosa família Teofilatto, que teve grande influência sobre a vida pública e o papado, utilizando como instrumento de poder qualquer meio à sua disposição, incluindo os ilícitos e imorais. Aqui nos limitaremos a narrar as saliências de alguns papas cuja conduta pode ser definida como licenciosa.

João VIII foi envenenado em 882, mas como o veneno não surtiu o efeito desejado, seus inimigos acabaram quebrando-lhe a cabeça a golpes de martelo. Um de seus adversários era Formoso, que se tornou papa em 891. Seu sucessor, Estêvão VI (896-897), que pertencia a uma facção oposta, exumou seu corpo em putrefação, para que fosse julgado e condenado por um concilio, mandando jogá-lo nas águas do Tibre. Estêvão, por sua vez, foi preso e estrangulado.

Leão V e o antipapa Cristóvão foram destronados, presos e assassinados. Sérgio III (904-911) foi amante de Marozia Teofilatto, mulher do conde Alberico di Tuscolo, com quem teve até um filho, o futuro papa João XI (931-935). João X (914-928), inicialmente apoiado por Marozia, demonstrou-se independente demais da família Teofilatto e acabou preso e sufocado com um travesseiro.

É provável que o poder ilimitado de Marozia tenha dado vida à lenda da papisa Joana, que presumivelmente nasceu da sátira antipapal. De acordo com a lenda, uma mulher vestida com roupas masculinas foi eleita para o trono de Pedro em 17 de julho de 855. A papisa, entretanto, ficou grávida e, durante uma procissão, no meio da multidão, caiu de quatro e começou o trabalho de parto. Revelada a verdadeira identidade "do papa", a multidão enfurecida esquartejou Joana. A lenda fez com que nenhum outro papa passasse por aquele caminho e que o sucessor da papisa retirasse o nome de sua predecessora dos registros históricos.

Voltando a Marozia, nesse meio-tempo ela havia atiçado a multidão de Roma contra o próprio consorte Alberico, que foi linchado, deixando-a, assim, viúva e livre para se casar com o conde Guido, da Toscana.

Em 931, o filho de Marozia torna-se o papa João XI. Este, aliado ao meio-irmão Alberico (filho do conde linchado pela multidão), mandou prender a mãe e expulsou de Roma seu terceiro marido, o rei da Itália, Ugo. Foi instaurada na cidade uma república aristocrática. O pontífice morreu na prisão em 936.

O ano de 955 presenciou a eleição de João XII, de 20 anos (955-964, primeiro papa a alterar o nome de batismo), filho daquele Alberico que se tornou o chefe de Roma. João era um jovem apaixonado por festas e pela caça, e totalmente alheio à liturgia. Ele transformou São João de Latrão em um bordel e foi acusado de adultério e fornicação. Foi durante seu pontificado que o imperador Otone I sancionou o Privilegium Othonis, ou seja, o direito do imperador de ratificar a eleição dos papas e exigir sua fidelidade. Deposto por Otone, substituído pelo antipapa Leão VIII, João retomou a posse do trono pontifício em 864. Morreu no mesmo ano (talvez assassinado), na cama de uma mulher casada.

As décadas seguintes viram a luta entre a facção imperial e aquela ligada à nobreza romana. Várias vezes a cátedra de Pedro ficaria vaga ou seria reivindicada contemporaneamente por dois ou mais rivais.

Em 965, João XIII foi expulso de Roma por uma revolta de nobres e recolocado no trono por Otone I. Em 974, Bento VI foi preso no Castelo de Sant'Angelo pela facção romana antigermânica e estrangulado no cárcere. João XIV também morreu no cárcere (984), talvez morto pelo fio de uma espada, talvez de fome. João XV foi exilado e recolocado no trono pelo imperador Otone III. O antipapa Bonifácio VII morreu envenenado em 984, e seu cadáver nu não foi enterrado. O antipapa João XVI foi torturado por soldados imperiais e trancado em um mosteiro, onde morreu em 998.

Em 996, o imperador Otone III, então com 16 anos, foi a Roma e fez seu primo de 23 anos ser eleito papa, sob o nome de Gregório V. Assim que Otone partiu, uma nova rebelião eclodiu em Roma, o papa foi expulso, e foi eleito um antipapa, João XVI. O imperador então voltou a Roma, mandou mutilar o antipapa e decapitou Crescêncio, líder da facção antigermânica. E a história poderia continuar...

Na metade do século XI, o papado chegou a seu ponto de decadência máxima com Bento IX (1032-1045). Contam que ele viveu da maneira mais libertina possível, ainda que, do ponto de vista teológico, fosse extremamente ortodoxo. Foi expulso de Roma por um breve período de tempo e substituído por Silvestre III. Mesmo voltando em abril de 1045, após expulsar o usurpador, Bento abdicou em maio, quiçá para se casar, vendendo seu pontificado a João Graciano, seu padrinho (provavelmente por 1.000 talentos de ouro), que se tornou o papa Gregório VI. Talvez arrependido da venda, Bento voltou a Roma três anos depois, para reivindicar o trono de Pedro. O imperador Henrique III desceu à Itália em 1046, para dirimir a controvérsia acerca do papado. Na verdade, três pontífices eleitos (o demissionário Bento IX, Gregório VI e Silvestre III) lutavam ao mesmo tempo pelo cargo de bispo de Roma.

Henrique III convocou, em Sutri, um concilio que depôs tanto Gregório VI quanto o rival Silvestre III (em seguida, um sínodo em Roma depôs também Bento IX) e fez eleger o bispo saxão Clemente II, que, no Natal, o coroou imperador. Mas a intervenção pacificadora do imperador tinha um preço: o controle imperial sobre o papado (ao menos em teoria) tornou-se absoluto.17

CAPÍTULO 6

As Cruzadas: duzentos anos de guerras,

roubos e crimes em nome de Deus

Jerusalém caiu nas mãos dos infiéis e precisava ser libertada. "Deus quer" era o lema dos cruzados. Seguiram-se ao menos duzentos anos de guerras para libertar os lugares sagrados. Duzentos anos de guerras inúteis: no final, Jerusalém permaneceu nas mãos dos muçulmanos. As Cruzadas deterioraram irremediavelmente as relações entre o Oriente ortodoxo e o Ocidente católico e, em última análise, facilitaram a expansão turca.1

A ameaça turca e o apelo à Cruzada

Em 1070, os turcos, povo de origem muçulmana, conquistaram Jerusalém, a cidade sagrada dos cristãos, meta de peregrinação de vários deles. Na verdade, havia séculos que Jerusalém estava sob o domínio dos árabes, que toleravam, no entanto, a presença cristã.

Na primeira metade do século XI, as relações diplomáticas entre os dominadores árabes da cidade e o Império Bizantino eram bastante cordiais. Mas os novos conquistadores turcos, além de tornarem mais difícil a peregrinação, representavam uma ameaça à incolumidade do Império Cristão do Oriente e à própria Europa.

Em 1095, o papa Urbano II, respondendo ao pedido de ajuda do imperador bizantino ameaçado pela invasão turca, convidou todo o Ocidente a intervir militarmente. Aos voluntários da Igreja, prometia a delação do pagamento dos débitos, a anulação de eventuais condenações penais, a remissão dos pecados com as indulgências plenárias e outros prêmios.

De acordo com cronistas da época, o discurso do papa foi: "Ricos e pobres deveriam igualmente partir, deveriam parar de se matar uns aos outros e, em vez disso, lutar uma guerra justa, realizando a obra de Deus; e Deus os guiaria. Quem morresse em combate receberia a absolvição e a remissão dos pecados.

Aqui, a vida era miserável e malvada com homens que se entregavam até destruir o próprio corpo e a própria alma; aqui, eles eram pobres e infelizes, lá, seriam felizes, ricos e verdadeiros amigos de Deus." (Runciman, 1996, p. 94.)

Os europeus logo se lançaram ao feito, convencidos de que a conquista dos países mediterrâneos orientais seria fácil, pois era sabido que o domínio turco estava despedaçado em emirados hostis entre si, exatamente como os senhores feudais da Europa.

Os bizantinos logo se dissociariam dos feitos dos cruzados, seja porque estes, durante sua passagem, saquearam também cidades cristãs, seja porque a idéia de uma "guerra santa" com tantos bispos, abades e monges armados de tudo era estranha à sua mentalidade.

A Cruzada dos "Mendigos"

O apelo do papa Urbano II obteve, ao menos de início, uma resposta bem morna por parte dos soberanos e dos grandes senhores feudais, mas, ao contrário, uma adesão entusiasta, superior às previsões, nas classes mais baixas. Pregadores que viajavam pela Europa anunciando a Cruzada obtinham muito sucesso junto aos aventureiros, homens de armas miseráveis e camponeses famintos que sonhavam em mudar de vida.

A Primeira Cruzada (1096 1099) foi chamada a dos "mendigos", pois era composta principalmente por pessoas muito pobres e famílias camponesas provenientes, na maioria, da França, Alemanha e Itália, que esperavam encontrar no Oriente a liberdade da opressão dos senhores feudais e novas terras onde se estabelecer.

Por volta de 20 de abril de 1096, antes mesmo que a Cruzada "oficial" estivesse pronta, um exército de vinte mil pessoas guiadas pelo monge e pregador Pedro, o Eremita, partiu de Colônia. Sem provisões ou dinheiro, os cruzados, durante sua longa viagem, realizavam pilhagens. Ao chegar à cidade húngara de Zemun, um tumulto iniciado por uma discussão banal se transformou em uma verdadeira batalha. Os cruzados atacaram a cidade, saquearam-na e mataram quatro mil húngaros (todos cristãos), e por isso fugiram às pressas com medo da chegada do exército. Em seguida, destruíram um contingente militar de turcos fiéis ao imperador e saquearam e incendiaram Belgrado.

Ao chegar aos arredores da cidade servia de Nis, os seguidores de Pedro provocaram outros incidentes, obrigando as tropas do governador cristão Nicetas a lutar contra eles. Muitos cruzados foram trucidados, outros foram presos (incluindo mulheres e crianças) pelo resto da vida.2 Após muitas travessias, os sobreviventes finalmente chegaram a Constantinopla. O imperador Aleixo I Comneno perdoou os cruzados pelos crimes cometidos e convidou Pedro para uma audiência na corte.

"Aleixo, com sua experiência, julgava a expedição muito pouco eficaz e temia que, se passasse pela Ásia, fosse destruída pelos turcos. Por outro lado, a indisciplina dos peregrinos o obrigou a afastá-los o quanto antes dos arredores de Constantinopla. Os ocidentais cometiam furtos sem fim, faziam irrupções em palácios e nas cidades dos subúrbios, roubavam até o chumbo dos telhados das igrejas." (Runciman, 1996, p. 112.)

Em 8 de agosto, os cruzados foram embarcados para além do estreito de Bósforo. Durante sua breve campanha, abandonaram-se a ferozes saques, massacrando e torturando até mesmo os habitantes cristãos da área. Dizem que alguns cruzados chegaram a assar crianças em espetos.

Mas nos primeiros grandes combates militares contra o exército turco, os "mendigos" foram exterminados. Alguns se salvaram renunciando ao cristianismo; outros, mulheres e crianças, foram poupados por terem bela fisionomia e foram vendidos como escravos. A última bandeira dos sobreviventes foi salva por uma expedição de socorro bizantina.

A expedição de Pedro não foi a única do tipo "faça você mesmo". Outras cruzadas menores partiram na mesma época. Por exemplo, Gautier Sans-Avoir, um pequeno dono de terras francês, partiu de Colônia com alguns milhares de seguidores poucos dias antes de Pedro e entrou nos territórios do Império Bizantino, encontrando as autoridades totalmente despreparadas para sua chegada. Em Belgrado, pilhou os campos próximos e lutou contra a guarnição da cidade, saindo vencedor. Muitos cruzados foram mortos em combate, outros foram queimados vivos dentro de uma igreja. O exército de Gautier foi seguido e escoltado até Constantinopla, onde se juntaria ao de Pedro, o Eremita, dividindo com ele o destino trágico.

Os judeus e a Cruzada do Pato Sagrado

O clima geral de hostilidade para com os infiéis muçulmanos não podia não atingir outra categoria de infiéis presentes na Europa havia mais de um milênio: os judeus.

"Para um cavaleiro, era caro se equipar para uma Cruzada, e [...] precisava pedir dinheiro emprestado aos judeus. Mas era justo que, para lutar pela cristandade, fosse necessário cair nas garras da raça que crucificara Cristo? O cruzado mais pobre muitas vezes já tinha dívidas com os judeus: era justo que fosse impedido de cumprir com seu dever cristão em razão de obrigações com alguém que pertencesse àquela raça ímpia? A pregação evangélica da Cruzada evidenciava particularmente Jerusalém, local da crucificação, e inevitavelmente chamava a atenção para o povo que havia feito Jesus Cristo sofrer. Os muçulmanos eram os inimigos do momento [...] mas os judeus com certeza eram piores, pois haviam perseguido o próprio Cristo." (Runciman, 1996, p. 121.)

As várias comunidades judaicas da Europa, por volta de 1095, estavam muito alarmadas: começava a circular um boato de perseguição e massacres contra elas. Dizia-se que o próprio Godofredo de Bulhão (futuro "libertador" de Jerusalém) tinha jurado vingar a morte de Cristo com o sangue dos judeus. Assim, as comunidades judaicas de Colônia e Magonza lhe ofereceram uma contribuição espontânea de mil moedas de prata para financiar a Cruzada. Godofredo agradeceu de bom grado e acalmou os doadores a respeito de suas intenções.

Pedro, o Eremita, pediu aos judeus franceses uma carta de apresentação convidando a comunidade judaica de toda a Europa a acolhê-lo e a abastecer seus seguidores com todas as provisões que tivessem pedido. Se não concordassem, seria difícil segurar seus homens... Obviamente, o pedido foi atendido.

O imperador Henrique IV, por sua vez, mandou os grandes senhores feudais garantirem a incolumidade de todos os judeus em suas terras.

Mas essas boas intenções não interromperam o massacre. Em abril de 1096, o conde alemão Emich de Leinsingen, já conhecido no passado por seus atos de vandalismo, fingiu ter ganhado os estigmas e se fez cruzado, reunindo um exército que contava com alguns nobres e vários peregrinos entusiastas. Entre eles, havia um pato e uma dezena de seguidores, convencidos de que o animal era inspirado diretamente por Deus e que os conduziria sem parar até a Terra Santa.

Emich resolveu inaugurar sua cruzada no dia 3 de maio, com um ataque contra a comunidade judaica de Spira. Mas os judeus de lá pediram proteção ao bispo, proteção esta que, obviamente, custou caro, e assim os cruzados conseguiram trucidar "apenas" 12 deles, que haviam se recusado a abjurar, além de uma mulher que se suicidou para fugir do estupro. Alguns assassinos foram depois capturados pelas forças do bispo e tiveram as mãos arrancadas.

Em Worms, os cruzados, juntamente com alguns habitantes e camponeses locais, conseguiram fazer melhor. Dezenas de judeus foram mortos pelas ruas. Não satisfeitos, os fanáticos invadiram o palácio do bispo e massacraram outros cinqüenta judeus lá refugiados.

Em Magonza, os seguidores de Emich encontraram as portas da cidade fechadas por ordem do arcebispo Rothard. Mas, após alguns tumultos anti-semitas, alguns cidadãos abriram as portas para deixar os "peregrinos" entrarem. Os judeus, sitiados na sinagoga, enviaram doações em dinheiro ao arcebispo e ao senhor laico local para que os hospedassem em seus respectivos palácios, além de sete libras de ouro ao próprio Emich, que prometeu poupar a cidade, mas foi dinheiro jogado fora. Emich atacou de surpresa o palácio episcopal, provocando a fuga de Rothard e de sua corte, e trucidou todos os judeus lá refugiados. Depois, ateou fogo ao palácio do protetor laico, obrigando os ocupantes a evacuá-lo. Muitos judeus salvaram a vida renegando a própria religião. Todos os outros foram mortos. Alguns dos que haviam abjurado se mataram por remorso. Um deles incendiou a sinagoga, para que não fosse profanada. O rabino Calonymos se refugiou com cerca de cinqüenta companheiros em Rudesheim, onde o arcebispo aproveitou a situação para tentar convertê-lo. O rabino reagiu com um gesto que custou a vida dele e de seus seguidores. O balanço final do massacre de Magonza foi a morte de pelo menos mil judeus.

Depois de Magonza, foi a vez de Colônia. Aqui, os judeus já haviam fugido ou estavam escondidos nas casas de cristãos conhecidos. Emich precisou se contentar em queimar a sinagoga e trucidar um casal de judeus que não quis abjurar. A intervenção do arcebispo impediu outros assassinatos. A esse ponto (estamos em 2 de junho), Emich decidiu finalmente deixar a Renânia e continuar sua viagem em direção à Terra Santa. Um grupo de seguidores o abandonou e continuou o que poderíamos chamar de "cruzada anti-semita" nos vales do Mosel. Em Treviri, o grosso da comunidade judaica se refugiou no palácio do arcebispo, mas alguns, em pânico, jogaram-se no rio e se afogaram. Em Metz, foram mortos 22 judeus. Os cruzados então voltaram a Colônia, de onde partiram para massacrar os judeus de várias outras localidades e depois se dispersaram.

Alguns voltaram para casa, outros se uniram à cruzada oficial de Godofredo de Bulhões.

No entanto, Emich e o grosso da tropa haviam entrado na Hungria, onde não foram bem acolhidos. Após uma série de embates, seu exército foi destruído quase por completo. Tendo por sorte se salvado, ele voltou para casa, onde pequenos senhores feudais se uniram às expedições seguintes. "O esfacelamento da cruzada de Emich [...] impressionou profundamente a cristandade ocidental. Para muitos bons cristãos, pareceu um castigo infligido do alto aos assassinos dos judeus; outros, que consideravam insensato e iníquo todo o movimento cruzado, viram nos desastres a aberta desaprovação de Deus." (Runciman, 1996, p. 126.)

Outras cruzadas anti-semitas foram as guiadas por Volkmar (um discípulo de Pedro, o Eremita) e por Gottschalk. Volkmar, que perseguira cerca de dez mil homens, no dia 30 de junho massacrou os judeus de Praga. Suas fileiras então foram feitas em pedaços pelo exército húngaro. Gottschalk, que tinha um exército um pouco mais numeroso, se distinguiu pelo massacre dos judeus de Ratisbona. Chegando à Hungria, primeiro foi tratado com benevolência; então, quando seus homens deram início aos saques e empalaram um jovem do local, as tropas húngaras obrigaram os cruzados a entregar as armas e os atacaram, matando do primeiro ao último.

A Cruzada dos Príncipes e dos Cadetes

A primeira Cruzada "oficial", que partiu também em 1096, era composta de cavaleiros bem armados e bem equipados, como Godofredo de Bulhões e seu irmão Balduíno. Em sua maioria, eram cavaleiros cadetes, ou seja, nobres sem terras que perderam o direito de sucessão e eram particularmente ambiciosos e ávidos por terras. Muitos deles já tinham trabalhado como mercenários, alguns até como piratas.

Estes cruzados também, como seus antecessores "mendigos", tiveram alguns acidentes de percurso durante a viagem. Por exemplo, Balduíno, em Constantinopla, capturou sessenta pechenegues que tentavam frear os roubos dos cruzados e matou vários outros. O próprio Godofredo teve desentendimentos com as tropas imperiais de Bizâncio, até que cedeu e aceitou jurar fidelidade ao imperador.

Um ramo da cruzada, que havia seguido outro caminho, encontrou um vilarejo de hereges paulicianos na estrada e queimou as casas com os moradores dentro.

De qualquer forma, os cruzados provaram seu valor no campo de batalha. Conquistaram Nicéia (durante o ataque, os soldados cristãos cortaram as cabeças de muitos cadáveres inimigos e jogaram-nas do outro lado das muralhas, para enfraquecer o moral da guarnição turca), que se entregou, no entanto, às tropas bizantinas, evitando um provável massacre. Em seguida, expugnaram Tarso, e aqui começaram seus desentendimentos. A cidade fora "libertada" pelos cavaleiros de Tancredo, mas Balduíno, chegando com um exército mais numeroso, obrigou-os a ir embora e deixou do lado de fora das muralhas um destacamento de trezentos cavaleiros vindos nesse meio-tempo para ajudar os homens de Tancredo.

Apesar das súplicas, Balduíno não os deixou entrar, e os cavaleiros foram todos massacrados durante a noite pelas forças turcas que corriam pelos campos.

Depois de Tarso, foi a vez de Edessa, cidade habitada na maioria por armênios cristãos, onde os cruzados fundaram seu primeiro estado. Aqui, Balduíno deixou que uma revolta local matasse o governador legítimo, Thoros, que o havia adotado como um filho em uma cerimônia pública, e transformou a cidade em um condado de seu domínio. A seguir, utilizou o tesouro de Edessa para comprar em dinheiro o emirado de Samosata, ocupando a cidade de Saruj em nome do príncipe muçulmano Barak (na prática, ele havia se tornado um mercenário pago por um "infiel"), mas a tomou para si.

Em Antióquia (conquistada graças à traição de um oficial armênio), os cruzados não pararam até terem assassinado o último turco, fosse ele homem ou mulher. Fala-se de milhares de mortos. Na confusão, também foram mortos muitos cristãos. Todas as casas dos cidadãos, cristãos ou muçulmanos, foram pilhadas. Grande parte das riquezas, das provisões e das armas encontradas foi inconscientemente destruída.

O cavaleiro Boemundo, futuro príncipe da Antióquia, comprou a cabeça do emir Yaghi-Siyan, que um camponês lhe levara como troféu de caça. "Não se podia andar na rua sem pisar em um cadáver, e todos logo entravam em putrefação no calor do verão, mas Antióquia era cristã de novo." (Runciman, 1996, p. 202.)

Outro massacre aconteceu na cidade de Maarat an-Numan. Quando entraram, os cruzados mataram todos que encontraram e saquearam e incendiaram as casas. Boemundo prometera incolumidade a todos que se rendessem e se refugiassem em uma grande sala próxima da porta principal. Mas as coisas não aconteceram bem assim: os homens foram trucidados, e as mulheres e as crianças foram vendidas como escravos.

O massacre, de Jerusalém

O filme se repete, mas em maiores dimensões, entre 14 e 15 de julho de 1099, com a conquista de Jerusalém. Os únicos muçulmanos a se salvarem foram o emir Iftikhar e seus homens, pois foram escoltados por Raimundo de Toulouse para fora da cidade, em troca de uma polpuda soma em dinheiro. Todos os outros foram trucidados.

"Os cruzados, enlouquecidos com uma vitória tão exultante [...] se lançaram pelas ruas, nas casas e nas mesquitas, matando todos aqueles que encontravam, fossem homens, mulheres ou crianças, sem distinção. O massacre continuou por toda a tarde e toda a noite." (Runciman, 1996, p. 247.) Nem um grupo de muçulmanos protegidos pelos homens de Tancredo, reunidos em uma mesquita encimada por seu estandarte, se salvou.

Quando Raimundo de Aguiler, mais tarde naquela manhã, visitou a área do templo, precisou abrir caminho entre os cadáveres e o sangue que chegava a seus joelhos. Nem os judeus de Jerusalém, acusados de terem ajudado os muçulmanos, foram poupados. A sinagoga em que haviam se refugiado foi incendiada, e todos morreram.

"O massacre de Jerusalém impressionou muito todo o mundo. Ninguém pode dizer quantas foram as vítimas, mas a cidade foi esvaziada de seus habitantes muçulmanos e judeus. Muitos cristãos também ficaram horrorizados [...] e, para os muçulmanos [...] dali em diante nasceu a certeza de que os ocidentais deveriam ser expulsos. Aquela sangrenta demonstração de fanatismo cristão reacendeu o fanatismo islâmico. Quando, em seguida, os latinos mais sábios do Oriente se esforçaram para encontrar uma base qualquer para a colaboração entre cristãos e muçulmanos, a lembrança do massacre sempre se colocou no caminho." (Runciman, 1996, p. 248.)

Mais de sessenta mil pessoas foram mortas.

Com o massacre de Jerusalém, encerra-se a Primeira Cruzada que tirou a vida de mais de um milhão de pessoas.

A notícia da tomada de Jerusalém devolveu o ânimo a muitos cavaleiros aventureiros que andavam em busca de fortuna.

Em 1100, partiu para a Terra Santa uma expedição de nobres lombardos, eclesiásticos e famílias inteiras de camponeses famintos. Essa nova Cruzada era tragicamente parecida com a de Pedro, o Eremita. E acabou em um desastre semelhante. Como seus antecessores, estes cruzados criaram vários problemas de ordem pública em Constantinopla.

Assim que chegaram à Terra Santa, em vez de cumprir sua missão (restabelecer os meios de comunicação entre o Império Bizantino e a Síria), os lombardos quiseram seguir a própria cabeça e entraram na Anatólia, no meio do território turco, levando consigo também os estandartes de cruzados alemães e franceses.

No primeiro grande ataque dos turcos, os cavaleiros lombardos fugiram tomados de pânico, abandonando a infantaria. Coube, então, aos franceses conter o ataque e reagrupar a expedição.

Não satisfeitos, os lombardos insistiram em continuar a marcha em território hostil, em vez de buscar a salvação na região costeira. E, como lá estavam, saquearam também um povoado cristão.

Próximo à cidade de Mersivan, houve uma batalha campal entre os turcos e os cruzados, na qual os últimos levaram a pior. "Os lombardos perderam as cabeças bem rápido e, com seu comandante, o conde de Biandrate, à frente, fugiram abandonando suas mulheres e os padres." (Runciman, 1996, p. 302.)

A retirada provocou a queda também dos mercenários turcos. Assim, os cruzados franceses e alemães, desguarnecidos, tiveram que capitular. No final, apenas os homens a cavalo conseguiram escapar. A infantaria foi massacrada, junto com civis e mulheres idosas. "Os lombardos, cuja obstinação fora a causa do desastre, foram aniquilados, com exceção dos líderes. As perdas foram estimadas em quatro quintos de todo o exército. Grandes quantidades de objetos de valor e de armas caíram nas mãos dos turcos, e os haréns e mercados de escravos do Oriente se encheram de moças e crianças capturadas naquele dia." (Runciman, 1996, p. 302.)

Os reinos cruzados

As décadas seguintes veriam a ampliação dos domínios cruzados com a conquista de importantes cidades costeiras, como Beirute e Trípoli. Nesta última, os cruzados italianos deram início a um massacre generalizado, antes que o soberano de Jerusalém conseguisse freá-los. Nas terras conquistadas, os cruzados criaram Estados; o mais importante era o Reino de Jerusalém, no modelo dos feudos europeus. Os Estados eram independentes entre si (aliás, não faltaram batalhas entre os soberanos cruzados, com tropas mistas turco-cristãs) e não reconheciam a jurisdição do Império de Constantinopla. Os súditos dos reinos cruzados tinham obrigações pesadas: os servos da gleba, árabes e sírios, tinham que pagar ao proprietário de suas terras um imposto de quase 50% da colheita. Os camponeses livres eram submetidos com o uso da força.

Nas cidades costeiras, o comércio estava nas mãos dos genoveses, venezianos e marselheses, que haviam obtido o privilégio de poder constituir suas colônias. Os cruzados não levaram nenhum elemento novo à vida econômica dos países conquistados, simplesmente porque, na época, as forças produtivas e a riqueza cultural do Oriente eram muito superiores às ocidentais.

Eles, na maioria das vezes, comportaram-se como ladrões e opressores, o que explica a constante hostilidade das populações locais,

No que concerne à religião, os conquistadores tentaram substituir o clero bizantino e o árabe por seus prelados e ritos, de início, até mesmo com o uso da violência. Por exemplo, no dia seguinte ao da conquista de Jerusalém, foi nomeado um novo arcebispo latino, o intolerante e corrupto Arnolfo. Uma de suas primeiras medidas foi torturar os sacerdotes ortodoxos que escondiam o pedaço maior da Vera Cruz (a relíquia mais sagrada da cidade) para que a entregassem. Como os sacerdotes relutaram, mandou torturá-los.

Para defender os locais sagrados e proteger os peregrinos, foram criadas as Ordens Cavalheirescas (a dos Templários, de origem francesa; a dos Teutônicos, de origem alemã; e a dos Joanitas, ou Hospitalários, mais conhecidos como Cavaleiros de Malta). Eram ordens religiosas armadas cujos membros, além dos votos religiosos de castidade, pobreza e obediência, também juravam defender os lugares sagrados contra os infiéis e dependiam diretamente do papa. Depois, as ordens receberam igualmente a incumbência de conquistar novos territórios e realizar a cristianização forçada das populações nativas.

A Segunda Cruzada

A Segunda Cruzada teve origem na queda de Edessa (1144). Na época, em Roma, foi realizado o Segundo Concilio de Latrão (1139), que havia proibido o uso da balestra, sob pena de excomunhão, pois a arma causava feridas horríveis. Mas seu uso foi admitido na guerra contra os infiéis. O papado conseguiu convencer o rei da França e o imperador germânico a se lançarem contra os turcos. Como na época da Primeira Cruzada, a empolgação contra os infiéis, de inicio, mirou os judeus. O abade de Cluny, Pedro, o Venerável, protestou porque estes não versavam uma contribuição para financiar a Cruzada.

Na Alemanha, o monge cisterciense Rodolfo instigou a multidão a massacrar os judeus e só foi calado após a intervenção decisiva de Bernardo de Chiaravalle. Como as outras Cruzadas, esta também teve seus "acidentes de percurso". Em Filipópolis, por exemplo, os cruzados incendiaram um mosteiro e trucidaram seus ocupantes.

Saladino era um cavalheiro

A Terceira Cruzada foi causada pela queda de Jerusalém (1187), por obra do grande comandante islâmico Saladino, que já estendera seu domínio ao Egito e à Arábia Ocidental. Ao contrário dos cruzados, Saladino não promovia massacres nas cidades que conquistava. Os cristãos tinham a chance de ir embora se pagassem um resgate em ouro (para um homem, dez dinares; para uma mulher, cinco). Quem não pagasse era feito escravo. Os nobres cristãos capturados podiam baratear a liberdade com a entrega das fortalezas a eles designadas. Assim, a conquista acontecia de maneira fácil e indolor.

Embora os reis da Inglaterra e da França, bem como o imperador germânico, participassem da Cruzada, seus resultados foram irrelevantes (o imperador Frederico Barba-Ruiva chegou a morrer na época, e nem foi em combate) em razão das divergências internas.

Jerusalém permaneceu nas mãos dos turcos, ainda que os cristãos tivessem liberdade de acesso. O único resultado útil foi deter, pelo menos momentaneamente, o avanço turco.

A Cruzada que errou o caminho

O papa Inocêncio III ordenou a Quarta Cruzada (1202-1204), procurando aproveitar a morte de Saladino (1193). Os cruzados entraram em acordo com a República de Veneza para poderem usar sua poderosa frota. O plano era desembarcar no Egito, conquistá-lo e, de lá, chegar a Jerusalém. Mas Veneza, que tinha boas relações comerciais com o Egito, conseguiu desviar a Cruzada com a astúcia.

Para começar, os venezianos puseram os cruzados em uma posição de inferioridade. "Acampados na pequena ilha de São Nicolau do Lido, atormentados por mercadores venezianos com quem haviam contraído dívidas, mantidos sob a ameaça de terem suspensas todas as provisões se não desembolsassem dinheiro [...] os cruzados estavam dispostos a aceitar qualquer condição." (Runciman, 1996, p. 728.) E a condição dos venezianos era a seguinte: os cruzados só poderiam partir se antes aceitassem conquistar, para a Sereníssima, a cidade cristã de Zara, em Istria. Em poucos dias, Zara foi atacada, conquistada e saqueada.

Indignado, Inocêncio III excomungou os cruzados, mas logo depois lhes concedeu o perdão, na esperança de que, finalmente, se lançassem contra os turcos.

Enquanto os cruzados invernavam em Zara, chegou ao acampamento o filho do imperador de Constantinopla para anunciar que o pai havia sido banido pelo irmão. Se o ajudassem a retomar o trono, os cruzados ganhariam grandes somas em dinheiro e a submissão da Igreja grega a Roma.

Os cruzados, então, se dirigiram a Constantinopla, onde encontraram a resistência dos cidadãos, que não queriam saber dos latinos. O imperador deposto e cegado foi recolocado no trono sem que fosse derramado sangue nobre, pois o irmão usurpador já havia fugido da cidade. Os cruzados exigiram que o filho fosse coroado ao lado do imperador, com o mesmo título, para garantir os compromissos feitos em Zara.

O tesouro de Constantinopla, todavia, estava vazio. O patriarca e o povo se recusavam a reconhecer o papa como chefe da Igreja Universal, e não tinham a menor intenção de pagar as dívidas do imperador nem de conceder privilégios aos cruzados e aos venezianos. Por essa razão, a população bizantina se rebelou, matando o imperador, o filho e algumas centenas de soldados.

Os cruzados invadiram novamente a cidade e a saquearam terrivelmente, proclamando o Império Latino do Oriente e se esquecendo de Jerusalém.

"O saque a Constantinopla não teve paralelos na história. Por nove séculos, a grande cidade foi capital da civilização cristã. Era cheia de obras de arte deixadas pela Antiga Grécia e de obras-primas de seus próprios e excelentes artesãos. Os venezianos conheciam efetivamente o valor de tais objetos e, onde puderam, apoderaram-se dos tesouros para adornar as praças, as igrejas e os palácios de suas cidades. Mas os franceses e os flamengos estavam ávidos pela destruição. Lançavam-se furiosos e gritando pelas ruas e pelas casas, arrancando tudo que brilhava e destruindo tudo que não pudessem transportar, parando apenas para assassinar ou violentar, ou para arrombar as adegas e matar a sede com vinho. Não poupavam nem mosteiros, nem igrejas, nem bibliotecas. Na própria [basílica de] Santa Sofia, viam-se soldados bêbados arrancando as tapeçarias e quebrando as iconóstases de prata, pisando nos livros sagrados e nos ícones. Enquanto bebiam alegremente do cálice do altar, uma prostituta se sentou no trono do patriarca e começou a cantar uma canção obscena francesa. Muitas freiras foram violentadas em seus próprios conventos. Palácios e cabanas foram igualmente invadidos e destruídos. Mulheres e crianças feridas jaziam moribundas pelas ruas. Por três dias, as terríveis cenas de saque e derramamento de sangue continuaram, até que a imensa e magnífica cidade foi reduzida a um matadouro. Até os sarracenos teriam sido mais misericordiosos, exclamou o historiador Niceta, e com razão." (Runciman, 1996, p. 792.)

No comando da Igreja bizantina, foi colocado um novo patriarca que procurou fazer um jogo que fosse vantajoso, aproximando a população local, a grega e a eslava do catolicismo. O papa condenou oficialmente o massacre, mas, quando viu que o imperador eleito e o patriarca reconheciam sua supremacia sobre toda a Igreja cristã do Oriente e do Ocidente, decidiu aceitar o fato.

Mais ainda que o papado ou os senhores feudais, foi Veneza que tirou maior vantagem da conquista do Império Bizantino. Os mercadores venezianos, em especial, conseguiram obter isenção fiscal para suas mercadorias em todos os países do Império.

O Império Latino ruiu em 1261, sob o golpe conjunto dos búlgaros, dos albaneses e dos bizantinos, ajudados pelos genoveses, que temiam a presença veneziana nos Bálcãs.

O Império de Bizâncio sobreviveria por outros duzentos anos, mas nunca mais voltaria a seu antigo esplendor.

As Cruzadas das Crianças

Os apelos de Inocêncio III para a partida de uma Cruzada "verdadeira" (já que a Quarta Cruzada havia sido desviada para Constantinopla) obtiveram, em uma Europa incessantemente percorrida por pregadores tomados por uma espécie de histeria coletiva contra os infiéis de toda espécie (muçulmanos e hereges; na época havia também a Cruzada contra os cátaros), um efeito curioso. Inflamados pela propaganda da época, milhares de crianças da França e Alemanha formaram verdadeiros exércitos e marcharam em direção à Terra Santa.

Em maio de 1212, Estêvão, um pastor de 12 anos proveniente da cidade de Cloyes, em Orleans, apresentou-se à corte do rei Felipe da França. Ele afirmava que, enquanto conduzia as ovelhas ao pasto, Cristo em pessoa apareceu e o mandou chamar os fiéis para a Cruzada, entregando-lhe uma carta para o rei.

O rei da França mandou o menino voltar para casa, mas este não se deixou abater e começou a pregar em público diante da porta da abadia de Saint-Denis. Prometeu que aqueles que se juntassem à Cruzada veriam os mares se abrirem, como o Mar Vermelho para Moisés, e que chegariam a pé até a Terra Santa.

O rapaz "tinha o dom de uma eloqüência extraordinária; os adultos se impressionavam, e as crianças respondiam em massa ao seu chamado" (Runciman, 1996, p. 806). Estêvão começou sua viagem pela França reunindo prosélitos e pedindo a ajuda de seus convertidos nos sermões.

Todos os garotos se reuniram em Vendôme por volta do final de junho. Os cronistas da época falavam em pelo menos trinta mil jovens, nenhum de mais de 12 anos. Eram na maioria órfãos, filhos de pais desconhecidos ou pequenos camponeses cujos pais viam a partida como um alívio, livrando-se, assim, de mais uma boca para alimentar. Mas havia também descendentes da nobreza foragidos de casa e algumas moças.

Aos "pequenos profetas", como os chamavam os cronistas da época, juntaram-se alguns peregrinos adultos e alguns jovens padres, talvez incentivados, em parte, pela compaixão para com aqueles meninos, em parte, pela esperança de receber alguns dos donativos que choviam sobre os rapazes.

Estêvão dividiu a horda em bandos, cada um guiado por um chefe que levava uma auriflama, o estandarte do rei da França. No final, a Cruzada partiu em direção a Marselha: os pequenos camponeses marchavam a pé; os pequenos nobres, a cavalo, ao lado de seu profeta; e Estevão, sobre um carro decorado, encimado por um baldaquim para protegê-lo do sol. "Ninguém se ressentiu do fato de que o inspirado profeta viajava confortavelmente, mas, ao contrário, todos o tratavam como um santo e guardavam chumaços de seus cabelos e pedaços de suas roupas como preciosas relíquias." (Runciman, 1996, p. 807.)

Naquele ano, o verão foi árido, a seca causou escassez de comida e de água, e viajar a pé pelas estradas da época não era fácil. Muitas crianças morreram pela estrada, outras abandonaram a Cruzada e tentaram voltar para casa. Mas, no final, o grosso da expedição chegou a Marselha, onde os meninos foram acolhidos cordialmente pelos habitantes. Os pequenos cruzados correram para o porto para ver o mar se abrir, mas como o milagre não acontecia, alguns se revoltaram contra Estêvão, acusando-o de tê-los enganado, e fizeram o caminho de volta.

Muitos, no entanto, permaneceram à beira do mar, esperando o milagre por mais alguns dias, até que dois mercadores marselheses lhes ofereceram uma "carona de graça" no navio para a Palestina. Estêvão aceitou de bom grado e todo o contingente de jovens partiu a bordo de sete barcos.

Só em 1230 se receberiam notícias deles, dadas por um ex-membro da expedição que, por sorte, voltara à Europa. Dois dos sete navios afundaram por causa de uma tempestade, e todos os seus ocupantes morreram afogados. Os sobreviventes foram entregues aos sarracenos pelos mercadores de Marselha, para serem vendidos como escravos. Em Bagdá, 18 deles foram martirizados por se recusarem a abraçar o islamismo. De acordo com os relatos do ex-membro, no momento em que ele partira, dos trinta mil componentes da expedição que saíram de Vendôme, só restavam aproximadamente setecentos.

A notícia dos sermões de Estevão logo se espalhou pela Europa, inflamando a imaginação de muitos jovens da sua idade. Poucas semanas após sua partida, na Alemanha, surgiu outro pequeno pregador: chamava-se Nicolau e provinha de um vilarejo à beira do Reno. Começou sua obra no santuário dos Três Reis Magos, em Colônia. Ele também anunciava que os jovens podiam fazer melhor que os adultos e que o mar seria aberto na frente deles. Mas, ao contrário de Estêvão, Nicolau anunciava que as crianças não conquistariam a Terra Santa com as armas, mas com a conversão dos infiéis.

Nicolau, auxiliado por outros pequenos pregadores seus discípulos, reuniu em Colônia um verdadeiro e próprio exército. Os meninos alemães deviam ser um pouco mais velhos que seus colegas franceses; entre eles também havia mais moças e um contingente de descendentes de nobres mais numeroso. Também não faltavam vagabundos e prostitutas.

A expedição se dividiu em dois grupos, que se dirigiam para a Itália (onde o mar deveria se abrir para permitir que chegassem a pé à Terra Santa): um para o lado do Mar Tirreno, outro para o Adriático. O primeiro contingente, de vinte mil unidades, guiado pelo próprio Nicolau, atravessou a Suíça e os Alpes, sofrendo perdas consideráveis durante o difícil percurso. Menos de um terço dos rapazes saídos de Colônia chegou a Gênova, em 3 de agosto. Lá, as autoridades (que temiam um complô alemão) permitiram que descansassem apenas uma noite, mas ofereceram a todos os que quisessem a possibilidade de se estabelecer definitivamente na cidade.

Os cruzados alemães também correram para a beira do mar no dia seguinte, esperando que ele se abrisse, e mais uma vez houve muita desilusão quando o milagre não aconteceu. Muitas crianças aceitaram a oferta das autoridades genovesas, mas Nicolau e o grosso do contingente continuaram a viagem: se o mar não se abriu em Gênova, talvez pudesse fazê-lo em outro lugar. Poucos dias depois, chegaram a Pisa, onde dois navios a caminho da Palestina concordaram em aceitar vários rapazes a bordo. Nunca mais se teve notícias deles.

Contudo, Nicolau permanecera em terra, junto com seus mais fiéis seguidores, pois ainda esperava o milagre. Os rapazes que sobreviveram se dirigiram a Roma, onde foram recebidos pelo papa Inocêncio III. "Ele ficou comovido com a devoção deles, mas confuso com sua loucura. Com gentil firmeza, disse que deveriam voltar para casa; quando crescessem, poderiam cumprir suas promessas e combater pela cruz." (Runciman, 1996, p. 808.) Aos garotos só restou pegar o caminho de volta. Muitos deles, em especial as moças, cansados com as loucuras da viagem, detiveram-se na Itália. Apenas poucos debandados voltaram à Renânia na primavera seguinte, e não é certo que Nicolau estivesse entre eles. O pai do pequeno profeta, acusado de ter encorajado o filho em sua obra vangloriosa, foi preso pelos pais dos rapazes desaparecidos e enforcado.

Nem o ramo "adriático" dos jovens alemães teve sorte. Cansados da viagem realizada em condições precárias, os pequenos cruzados chegaram a Ancona, onde esperaram inutilmente pelo milagre da abertura do mar. Então, continuaram viagem até Brindisi. Lá, alguns embarcaram em navios que zarpavam para a Palestina, mas a maior parte recuou, batendo em retirada para casa. Desde então, apenas um grupo desaparecido de fato voltou.

Outras Cruzadas

A Quinta, a Sexta, a Sétima e a Oitava Cruzadas não tiveram muita importância, senão pelo número de mortes que causaram: os cruzados sofreram outras derrotas, apesar da adesão dos mongóis contra os turcos e os árabes.

O imperador Frederico II chegou a entrar em acordo com os turcos sem ao menos lutar. O fato é que, depois da Quarta Cruzada, não havia mais quase ninguém no Ocidente disposto a participar de expedições distantes e perigosas, e por isso os cruzados enfrentavam dificuldades e nunca conseguiam a ajuda e os reforços requeridos.

Nos séculos XII-XIII, na Europa, verificou-se um notável aumento da produção agrícola. As técnicas de cultivo haviam se aperfeiçoado, as cidades haviam se desenvolvido. O aumento das áreas cultivadas e do produto das colheitas fez os camponeses perderem o interesse de emigrar. Os mercadores se contentaram com os resultados das primeiras quatro Cruzadas, que haviam assegurado a eliminação da função mediadora entre leste e oeste exercitada pelo Império Bizantino. Os cavaleiros, por sua vez, tiveram a possibilidade de ingressar nas tropas mercenárias das monarquias nacionais européias, cujo poder só crescia.3

Mas não houve apenas Cruzadas pela reconquista de lugares sagrados na Terra Santa: houve Cruzadas contra os hereges,4 Cruzadas contra reis e imperadores católicos, e outras que se dirigiram ao norte e ao leste da Europa (vide seção sobre os Cavaleiros Teutônicos).

As ordens cavalheirescas

Os Templários

A ordem militar religiosa do Templo (Pauperes Commilitones Christi Templique Salomonis, Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão) foi fundada em 1119, em Jerusalém, por Hugo de Payens, para defender os lugares sagrados e proteger os peregrinos. De 1128 em diante, foi criado um regulamento próprio, inspirado em Bernardo Chiaravalle, fundador da Ordem Cisterciense. A estrutura interna previa uma classe de cavaleiros, uma de escudeiros e uma de capelães; no ápice, estava o grão-mestre, auxiliado por alguns dignitários. O símbolo da ordem era a cruz vermelha sobre fundo branco para os cavaleiros, e sobre fundo marrom para os escudeiros. Os Templários se destacaram por seu valor e pelos vários episódios de guerra contra os árabes (Batalhas de Acre, em 1189; Gaza, em 1244; al-Mansura, em 1250), e seu número aumentou notavelmente no Oriente e no Ocidente.

Enriquecendo, por causa das várias doações e se tornando uma poderosa força financeira, independente do reino cruzado de Jerusalém, a ordem atraiu a hostilidade dos soberanos. Felipe IV (o Belo) da França, em especial, em 1307, pediu ao papa Clemente V a proibição da ordem, dando início a uma feroz caça a seus membros ativos na França, muitas vezes torturados e condenados à morte, com as mais variadas e fantasiosas acusações: heresia, bruxaria, sodomia (o lacre dos Templários mostrava dois cavaleiros, mas um só cavalo, o que, dentre outras coisas, foi utilizado para acusá-los de sodomia). Conta-se que dois mil Templários foram presos e torturados, e centenas foram queimados. Em 1312, com a bula Ad providam, o papa decretou oficialmente a dissolução da ordem e a transferência de seus bens para os jerosolimitanos.

Os Cavaleiros Teutônicos

Esta ordem, nascida também na Terra Santa a partir de 1200, foi utilizada pela Igreja Católica e por reis e imperadores cristãos para conquistar novos territórios no Báltico e nos países eslavos, lutando contra povos pagãos ou de religião ortodoxa grega. Os Teutônicos e os outros cruzados do norte foram conquistadores e dominadores impiedosos, similares a seus colegas na Terra Santa.5

Como recompensa pelos serviços prestados, a Ordem Teutônica ganhou grande parte dos territórios conquistados em forma de feudo. Em um segundo momento, no entanto, esses territórios foram militarmente redimensionados pelo rei da Polônia, e os cavaleiros tiveram de se contentar com a Prússia Oriental. Eles tentaram estender seus domínios até a Rússia, mas lutaram contra um inimigo natural invencível (Napoleão, Mussolini e Hitler o conhecem bem). Lembremos uma batalha especial dos Cavaleiros Teutônicos:

A batalha no gelo (1242)

O nobre Alexandr Nevsky reunira um exército de camponeses para defender a Rússia das incursões dos Cavaleiros Teutônicos... Obviamente, estes estavam convictos da superioridade das armaduras pesadas que lhes cobriam o corpo e os cavalos.

Na frente desse exército de guerreiros profissionais, dedicados às orações e aos saques, estava a horda de pobres malvestidos em sua primeira primavera na gélida Rússia. O plano era simples. Aliás, muito simples. Os russos iniciaram a batalha na borda do lago Peipus. O lago estava congelado, tudo estava coberto de neve, e não se podia perceber onde terminava a terra firme e onde começava o lago. Quando os Cavaleiros Teutônicos atacaram as fileiras do nobre Alexandr, os russos, após uma leve resistência, fugiram abandonando as armas.

Os cavaleiros, tomados de excitação, esporearam seus cavalos e correram atrás dos soldados em fuga. Os russos os atraíram para cima do lago, onde o gelo era mais fino. Em dado momento, ele começou a ceder com o peso da cavalaria teutônica, que morreu na água gelada.

Foram necessários poucos segundos para que, do exército, só restassem as pegadas dos cavalos na neve.

Foi a última vez que os Cavaleiros Teutônicos apareceram.6

As ordens cavalheirescas continuaram a obra de destruição ainda por um bom tempo. Durante o cerco a Belgrado, em 1456, oitenta mil muçulmanos foram mortos. Na Polônia, no século XV, os monges guerreiros saquearam 1019 igrejas e 18 mil povoados.


CAPÍTULO 7

As heresias medievais

Os pobres irrompem na história

Cátaros, patareus, albigenses, frades, apostólicos, dulcinistas, beguinos... Tantos nomes, tantas facetas de um grande fenômeno. Um gigantesco movimento de pessoas que reivindicavam uma Igreja livre das rédeas do poder e se chocavam com a prepotência dos nobres. Contra eles, a resposta do rei e dos prelados será impiedosa: torturas, execuções e até verdadeiras guerras.

Como vimos nos capítulos anteriores, os anos entre os séculos X e XI viram a extrema decadência do papado, a submissão das hierarquias eclesiásticas à autoridade imperial e uma corrupção geral da Igreja. A simonia (pecado que consiste na compra e venda de absolvições, indulgências e benefícios eclesiásticos e em seu uso para enriquecimento pessoal) e o concubinato do clero foram um grande problema para a Igreja, tanto que, em dado momento, um conselho declarou os eclesiásticos simoníacos (1075).

Outro elemento de corrupção da Igreja era a instituição dos bispos-condes. Como já foi dito antes, o Império Romano do Ocidente (ou o que restava dele) e vários reinos cristãos haviam repartido seus próprios domínios em feudos (marquesados, condados, ducados etc.), confiados aos vassalos ou senhores feudais. Teoricamente, os vassalos eram apenas funcionários, que podiam ser exonerados de suas funções a qualquer momento. Com o tempo, no entanto, principalmente os senhores feudais maiores tendiam a se considerar donos absolutos do território a eles designados e tinham conquistado o direito de passá-los aos filhos.

Os imperadores resolveram o problema confiando feudos aos eclesiásticos, que, fazendo voto de castidade, não podiam ter descendentes legítimos. Mas quem ordenava os bispos? Hoje, a resposta parece óbvia: os bispos são nomeados pelo papa ou uma autoridade eclesiástica. Mil anos atrás, a questão não era tão simples. Na Alemanha e no norte da Itália, os bispos eram investidos pelo imperador, por costume antigo. Obviamente, este escolhia os colaboradores mais capazes e confiáveis. Não é necessário dizer que os bispos-condes se comportavam mais como administradores de patrimônios do que como pastores de almas, e que eram mais fiéis ao imperador do que à Igreja.

No século XI, começou uma queda-de-braço entre o papado e o Império, que entrou para a história com o nome de "Luta pela Investidura" e que duraria quase um século, terminando apenas com a vitória da Igreja de Roma.

O contraste entre os dois potentados se acendeu mais sob o pontificado de Gregório VI (1073-1085), eleito graças também à pressão de uma revolta popular. Expoente dos movimentos reformistas, Gregório impôs a doutrina da autonomia e da autoridade absolutas do papa sobre toda a Igreja e da submissão de todos os cristãos, reis e também imperadores à autoridade espiritual. Conseqüentemente, não só o poder de consagrar os bispos era uma prerrogativa absoluta do papa, bem como os bens temporais por eles administrados deveriam, de algum modo, passar para a jurisdição da Igreja de Roma.

O imperador Henrique IV, em 1076, convocou em Worms um concilio de bispos alemães, que declararam a destituição do papa. Este respondeu excomungando o imperador e isentando seus súditos da obrigação de fidelidade. Os príncipes alemães logo aproveitaram a ocasião para se rebelar, e o imperador foi obrigado a pedir o perdão papal.

Em 1077, enquanto se hospedava no castelo de Canossa, Gregório VII recebeu a visita do imperador, que teve de esperar por três dias do lado de fora das muralhas, com roupas de penitente. O papa concedeu o perdão, mas o ato não pôs fim à rebelião.

Derrotado pelas tropas rebeldes e mais uma vez excomungado, Henrique IV jogou com tudo que tinha. Com os soldados que lhe permaneceram fiéis, desceu até a Itália, ocupou Roma militarmente (1084) e nomeou um antipapa, Clemente III, que, por sua vez, o coroou imperador.

Pouco depois, chegaram a Roma as tropas normandas, aliadas ao papa, que expulsaram as imperiais, mas causaram tanta devastação à cidade que os romanos se rebelaram contra o próprio pontífice, que morreu no exílio no ano seguinte.

Henrique IV moveu seus exércitos também contra o papa Urbano VIII (1088-1099) e Pascoal II, sendo, em ambos os casos, detido por uma rebelião: a primeira, sob liderança de seu primogênito, Conrado; a outra, de seu segundo filho, Henrique V.

Este, ao suceder o pai, desceu à Itália em 1110, ocupou Roma, mandou prender o papa Pascoal II (1099-1118), junto com os cardeais, e o obrigou a coroá-lo imperador.

A luta pela investidura só terminou com a concórdia de Worms, de 1122. O imperador renunciava ao direito de nomear os bispos, mas mantinha o de presenciar sua eleição e de garantir-lhes os benefícios feudais. Era reconhecida formalmente a supremacia espiritual do pontífice, enquanto, na prática, o imperador ainda possuía amplo poder de intervenção na escolha dos bispos.

Os movimentos reformistas

Em reação contra a corrupção na Igreja, surgiram dois movimentos reformistas de origem diversa, um do tipo monástico, outro popular. O movimento monástico era o cluniacense, cujo nome provém do mosteiro francês de Cluny, fundado em 910, que envolveu as ordens regulares dos beneditinos, dos cistercienses, dos cartusianos, dos camáldulos, além de boa parte do clero e muitos leigos. Os cluniacenses lutavam pelo renascimento da moral da Igreja e pela sua volta à qualidade de guia espiritual. Acreditavam que poderiam obter o resultado desejado reforçando a autonomia e a autoridade do papado.

Além desse, havia um movimento político-religioso de origem popular que lutava contra o excesso de poderes dos feudatários eclesiásticos e por uma Igreja mais próxima dos pobres. Em Milão, ele criou o fenômeno da "pataria", do qual falaremos mais adiante. O termo "popular" não deve suscitar mal-entendidos: na época, o "povo" era formado pelos membros das classes que hoje podemos considerar burguesas. Podemos, portanto, imaginar que não lhes faltassem elementos dotados de iniciativa, cultura e meios econômicos.

O inimigo comum dos cluniacenses e patarinos eram os bispos-condes, independentes demais em relação ao papa e dependentes demais do imperador. E foi contra este último adversário que se criou uma aliança inédita. Em Milão, expoentes do clero (dentre eles o futuro pontífice Alexandre II) entraram na pataria. Em Florença, os monges reformistas instigaram uma rebelião contra o bispo simoníaco Pietro Mezzabarba. "Os cidadãos se transformaram de cordeiros em feras", observava, desconsolado, o bispo de Alba. Mas os monges reformistas não ignoravam os "planos elevados": muitos brilhantes membros do movimento se plantaram na corte papal.

O sonho dos cluniacenses foi coroado com a eleição de um deles para papa: Gregório VII (1073-1085). Gregório, que fora eleito graças também à pressão do povo de Roma, teorizou e tentou colocar em prática a autoridade absoluta do papa no corpo da Igreja, além da primazia do poder espiritual sobre o temporal.

A pataria e os movimentos afins foram um instrumento útil para subtrair o poder dos bispos-condes e reforçar a autoridade central da Igreja de Roma. Mas agora que o objetivo fora alcançado, a "ralé" não tinha mais utilidade e devia voltar ao seu lugar, por bem ou por mal. Após um primeiro momento de moralização e aproximação, a Igreja se afastou ainda mais dos pobres, que, em teoria, deveria ter defendido.

Em 1200, o papa já havia se tornado um soberano sob todos os aspectos, talvez um dos mais poderosos soberanos europeus, que, como todos os outros regentes, tinha pretensões territoriais, firmava tratados, fazia e desfazia alianças. Um soberano que, com as Cruzadas, podia mandar exércitos para a guerra e influenciar pesadamente os reis e imperadores católicos com a arma da excomunhão (que na época incluía, também, a perda de todos os direitos).

Os bispos-condes, ainda que nomeados em Roma, continuavam a deter nas próprias mãos a pastoral, símbolo do poder espiritual e o cetro do poder feudal, e possuíam em suas dependências exércitos, vassalos e servos da gleba. Os conventos eram proprietários de imensas riquezas e latifúndios, que geriam com ampla autonomia com relação ao poder estatal, verdadeiros Estados dentro dos Estados (algumas ordens, como a dos Cavaleiros de Malta, gozam ainda hoje da extraterritorialidade em seus palácios). Não era incomum que altos eclesiásticos assumissem funções de destaque nas dependências dos vários soberanos europeus.

Tudo isso só provocava uma crescente corrupção do clero, cada vez mais ocupado com a gestão dos próprios bens temporais e sempre menos atento à própria missão de guia espiritual, tornando a carreira eclesiástica atraente para as pessoas erradas e pelos motivos errados. A situação não era melhor no clero menor, formado não raro por pessoas rudes, ignorantes e corruptas, às vezes até analfabetas e certamente menos eloqüentes e menos fiéis às Escrituras do que muitos pregadores "hereges".1

Apenas para entender qual era o fermento da época contra o clero, eis o que escreve Pierre Cardenal, poeta do século XIII, sobre os eclesiásticos.

Sua pobreza não era de espírito:

guardam o que é seu e pegam o que é meu.

Para túnicas, usam tecidos de lã inglesa,

deixam o cilício muito áspero.

E não dividem suas vestes

como fazia São Martinho.

Mas as esmolas com as quais se mantém

a gente pobre, querem todas para eles.

Com roupas leves e largas, com a capa passada,

fina no verão, grossa no inverno,

com sapatos delicados — de solas francesas

quando faz frio — de couro marselhês,

sempre amarrados com maestria —

pois mal-amarrado é imperdoável —

vão pregando, com seu sutil saber,

que para servir a Deus devemos dar o coração e os bens.

Se fosse marido, eu teria medo

se um homem sem meias se sentasse próximo à minha mulher...2

As Cruzadas, que na época já provocavam o horror de muitos crentes, afetaram a cristandade com outro veneno poderoso: o conceito de Guerra Santa, a idéia de que matar um infiel era não só um ato lícito, como também abençoado por Deus. Qualquer um que pregasse o retorno a uma Igreja mais simples, mais pobre, não comprometida com o poder, corria o risco de se ver, apesar de tudo, declarado herege e inimigo da Igreja.

Por todos esses motivos, uma massa crescente de pessoas se afastou da instituição eclesiástica para se aproximar dos movimentos heréticos, cujos líderes eram os primeiros a colocar em prática os preceitos da pobreza e da caridade que pregavam. As heresias medievais, em muitos casos, eram verdadeiros movimentos populares que uniam, aos sermões religiosos, a prática de um estilo de vida solidário e igualitário.

Em alguns casos, os hereges professavam efetivamente uma doutrina diferente da "oficial", mas, em outros, a acusação de heresia tinha apenas finalidades políticas, como no conhecido caso de Joana d'Arc.

Os "pobres" hereges e os católicos

"O que inicialmente distinguia São Francisco de Pierre Valdo? Ambos queriam se desfazer dos próprios bens e devolver à Igreja sua simplicidade primitiva, mas um é venerado em todas as igrejas do mundo católico, enquanto o outro foi tachado de herege."3

Talvez o pontificado de Inocêncio III (1198-1216) tenha marcado o ápice do poder político do papado na Europa. Um papado que, no entanto, precisou enfrentar uma grave ameaça: os pregadores cátaros e valdenses que obtinham um sucesso crescente. Os cátaros (apoiados pelos nobres locais) chegaram a criar, no sul da França, uma Igreja alternativa, que corria o risco de superar a oficial. Para conter o perigo, Inocêncio III atuou em duas frentes: primeiro acolheu na Igreja movimentos como o dos franciscanos, que criaram sua própria regra de pobreza, desde que se submetessem à autoridade do pontífice; criou uma congregação de "pobres católicos" rival à dos valdenses. "Uma das maiores instituições de Inocêncio III foi a compreensão de que a capacidade de conseguir adeptos junto aos cátaros era exatamente a vida humilde, escondida, pobre. Quando o papa se viu diante dos fenômenos franciscano e dominicano, intuiu que o caminho da pobreza podia 'salvar a Igreja', enquanto tinha também o poder de destruí-la. Se o poder eclesiástico era acusado de não abraçar mais o mandamento da pobreza de Cristo [...] o aparecimento de homens fiéis às instituições e capazes de retomar a genuinidade das origens podia lhe devolver a credibilidade." (Benazzi D'Amico, 1998, p. 33.)

Ao mesmo tempo, ele puniu impiedosamente as heresias, encorajou Domingos de Gusmão (o futuro São Domingos) a pregar contra elas no sul da França e ordenou que os bispos procurassem os hereges e os reconduzissem ao seio da Igreja ou os punissem de forma exemplar. Inocêncio III foi o promotor da famosa Cruzada contra os cátaros.

Com o passar do tempo, os vértices da Igreja acabaram considerando perigoso o próprio conceito de "pobreza evangélica". Se Inocêncio III e Honório III reconheceram as Regras das Ordens mendicantes (franciscanos e dominicanos), um século depois, João XXII decretou herética a afirmação de que "Cristo e seus apóstolos nada possuíam".4

As cidades-Estado

Dentre as mudanças anunciadas da nova época, há uma que com certeza não é menos importante: um crescente número de camponeses deixava a condição de servos da gleba e incrementava a população e a disponibilidade de mão-de-obra das cidades, onde se afirmava uma nova classe de mercadores, artesãos, profissionais. Estes grupos, aliados a alguns expoentes da pequena nobreza, dariam vida, por volta do final do século XI, a uma nova civilização, a das cidades-Estado.

As cidades-Estado eram verdadeiras repúblicas autônomas que, aos poucos, se libertavam do domínio dos feudatários, leigos ou eclesiásticos, e impunham um ordenamento que podemos definir como democrático (ainda que os expoentes das classes mais humildes e as mulheres fossem excluídos da vida política). Sofrendo com a ingerência e as pretensões imperiais, logo surgiram cidades-Estado nos territórios papais. A cidade-Estado de Roma, que nasceu em 1145, chegou a expulsar o pontífice de seus domínios. O descontentamento popular se devia ao cansaço decorrente das contínuas guerras realizadas pelo Estado pontifício e pela opressão das classes nobiliárias.

A revolução das cidades-Estado não foi apenas política e social, mas também cultural. Se nos séculos anteriores a transmissão da cultura foi monopólio do clero, a nova época viu o nascimento das universidades, associações autônomas nascidas por iniciativa dos próprios estudantes e professores (só depois a Igreja tomaria o controle dessas novas instituições, através da infiltração em massa de docentes dominicanos e franciscanos).

Nas cidades nascia, em número cada vez maior, um novo grupo intelectual de funcionários e profissionais de formação "leiga". Nos atos públicos e comerciais, mas também na produção artística, o "vulgar" (ou seja, a língua do povo) era cada vez mais difundido, em detrimento do latim (língua escrita dos doutos, do clero e dos juristas).

A independência política, econômica e cultural das cidades-Estado permitiu também um grande grau de tolerância para com os movimentos e pregadores hereges (desde que não contestassem o poder das novas classes dirigentes) e uma maior liberdade de pensamento e de expressão. E no momento em que a ingerência papal era vista como um perigo, algumas adotaram sérias restrições contra a Igreja, chegando mesmo a proibir que seus cidadãos tivessem relações com o bispo.

O herege Arnaldo de Bréscia pregou ser incomodado na cidade-estado de Roma. O papa Honório III (1216-1227) definira Brescia como "a sede da heresia", e Milão era "um fosso cheio de hereges". A cidade de Gênova foi condenada pelo bispo de Toulouse por se recusar a introduzir no próprio ordenamento leis contra os hereges.

Um panorama das heresias medievais

Apresentaremos, a seguir, uma lista de alguns dos mais significativos personagens e movimentos hereges da Idade Média. A lista não pretende ser completa, mas permite reconstruir, graças também à bibliografia especializada e aos exemplos retratados no apêndice, o clima geral da época.

"Ou beije a cruz, ou se jogue no fogo": os hereges de Monforte

Os hereges de Monforte, para a Igreja, eram culpados de graves crimes: praticavam a castidade, sujeitavam-se ao jejum e eram vegetarianos. Mas a coisa mais escandalosa era que seus bens eram comuns a todos. Centenas deles foram queimados.

Por volta de 1028 (a data não é precisa), o arcebispo e feudatário de Milão, Ariberto, visitou a diocese de Turim, que na época era dependência sua. Lá, soube do surgimento de um movimento herético no castelo de Monforte, na diocese de Asti. Preocupado, chamou um homem da comunidade para ter informações a respeito de suas atividades. Apresentou-se, então, um tal Gerardo, que ilustrou a vida da comunidade: eles davam grande valor à castidade, havia pessoas casadas que faziam voto de virgindade perpétua; nunca se alimentavam de carne e realizavam ipium continuamente. Os maiores se revezavam nas rezas durante o dia "para que nunca houvesse um instante sem orações".5 Finalmente, seus bens eram todos comunitários.6

As declarações de Gerardo sobre a Trindade eram heterodoxas, mas o que chamou a atenção do arcebispo foi que, ao ser perguntado sobre a fé na Igreja de Roma, Gerardo respondeu que eles não acreditavam no bispo de Roma, mas em seu próprio pontífice, "que todos os dias visita os irmãos espalhados pelo mundo".7 No final do interrogatório, o arcebispo mandou seus soldados ao castelo de Monforte com a ordem de prender todas as pessoas que ali encontrassem. Dentre os prisioneiros, estava a condessa Berta, senhora do castelo, que demonstrara simpatia pelo movimento.

Os hereges de Monforte foram levados a Milão, onde o arcebispo pretendia vigiá-los de perto e tentar, com calma, fazê-los cair em si. Mas o tiro saiu pela culatra: os integrantes começaram a pregar também em Milão, e a cada dia atraíam multidões de pessoas da cidade e dos campos próximos.

Os nobres locais, então, decidiram recorrer à força. Em uma grande praça, foram instaladas uma cruz e uma fogueira, e todos os hereges de Monforte tiveram de escolher: ou abraçar os pés da cruz e voltar à Igreja Católica, ou se jogar no fogo. Alguns abraçaram a cruz e abjuraram, mas a maioria (algumas centenas) cobriu o rosto com as mãos e se jogou no fogo. Até poucos anos atrás, a praça onde a execução foi realizada se chamava Piazza Monforte.

De acordo com os cronistas da época, a decisão de matar os hereges foi tomada por leigos notáveis da cidade (feudatários dos campos milaneses e administradores dos bens da Igreja), impondo-se ao próprio arcebispo, que teria preferido continuar a obra de persuasão e conversão. O que assustava os senhores locais não era tanto a heresia doutrinária, mas a mensagem de igualdade que os "monfortenses" pregavam.

É provável que aquela tenha sido uma das primeiras comunidades cátaras, um movimento herege que, nos dois séculos seguintes, atingiu proporções gigantescas e ameaçou, em várias regiões da Europa, a própria hegemonia da Igreja de Roma.

Os patarinos

A pataria foi um movimento social e religioso que se desenvolveu em Milão por volta do início do século XI. Os patarinos lutavam contra os desmandos do arcebispo Guido, senhor de Milão e nomeado pelo imperador, e de seus vassalos e contra um clero profundamente corrupto (em Milão, por exemplo, existia um verdadeiro tarifário das prestações eclesiásticas). O nome "pataria" se deve ao mercado milanês de tecidos, e os seguidores do movimento foram pejorativamente chamados de "patarinos" ou "esfarrapados".

O líder da revolta foi o diácono Arialdo, ao lado de um padre, Anselmo de Baggio (o futuro papa Alexandre II, 1061 -1073), e de um clérigo, Landolfo. Arialdo e Landolfo, excomungados pelo arcebispo para não se apresentarem diante de um concilio convocado pelo próprio Guido, recorreram ao papa, ameaçando chegar, se necessário, a um cisma da Igreja milanesa. Roma interveio a favor dos patarinos e, em 1066, excomungou o arcebispo Guido.

Guido, que contava com apoio do imperador, rejeitou a excomunhão e acusou os patarinos de querer a autonomia da Igreja milanesa, sujeitando-a à romana. Eclodiram tumultos e embates entre os adeptos das duas facções. Arialdo, obrigado a fugir de Milão, foi capturado e morto pelos matadores dos nobres feudais.

Erlembaldo, irmão de Landolfo, assumiu, assim, a liderança do movimento, expulsando Guido da cidade e se vingando furiosamente em seus seguidores. Guido, considerado o mandante do homicídio de Arialdo, foi obrigado a se exonerar em 1067.

O conflito se reacendeu quando o imperador Henrique IV da Alemanha, atacou o subdiácono Godofredo, do arcebispado.

Em 1072, os patarinos elegeram um bispo alternativo, o clérigo Antão. O papa Alexandre II (de origem patarina) confirmou a nomeação, e o movimento conseguiu impedir a entrada do bispo imperial na cidade. O papa Gregório VII, que sucedeu Alexandre II em 1072, conseguiu entrar em acordo com Henrique para dar uma solução pacífica à questão. Mas um incêndio desastroso que aconteceu em Milão naquele ano, e que foi atribuído aos patarinos, fez eclodirem novos tumultos, nos quais foi morto Erlembaldo, marcando, assim, o declínio do movimento.

Marginalizada sob o ponto de vista político-social, a pataria foi derrotada também no âmbito doutrinário. Se os patarinos afirmavam que sacramentos dados por sacerdotes indignos não eram válidos, a Igreja de Roma adotou oficialmente uma posição conciliatória: confirmou a condenação dos comportamentos simoníacos, mas admitiu a validade dos sacramentos, ainda que celebrados por oficiantes corruptos.

Um século depois, os cátaros também acabaram por receber a denominação pejorativa de "patarinos", que se tornou, para todos os efeitos, sinônimo de "hereges"

Os petrobrusianos

O nome vem de Pedro de Bruys, pregador do início do século XII, que rejeitava o batismo de crianças (os adeptos de seu movimento eram rebatizados quando adultos), a eucaristia e as liturgias como a missa e a oração para os defuntos. Além disso, opunha-se fortemente à adoração da cruz: para ele, a partir do momento em que ela foi instrumento da morte de Jesus, os cristãos deveriam odiá-la, em vez de venerá-la.8 Ele e seus seguidores foram acusados de profanar igrejas e queimar cruzes. Morreu queimado vivo por volta de 1135.

Tanquelmo e Arnaldo de Bréscia

O holandês Tanquelmo afirmava que a autoridade do papa não era absoluta e que os sacramentos não eram válidos se celebrados por clérigos corruptos. Foi acusado (mas provavelmente era calúnia) de propagar o amor livre. Foi preso pelo arcebispo de Colônia e morto em 1115, durante uma tentativa de fuga.9

Arnaldo de Bréscia, sacerdote de vida exemplar, afirmava que nenhum membro do clero deveria possuir bens ou exercitar poder temporal. Ele também era contrário ao batismo de crianças e declarava inválidos os sacramentos celebrados por sacerdotes indignos.

Por causa de suas idéias, foi banido várias vezes e precisou vagar pela Europa. Em 1145, chegou a Roma e, graças a seu carisma e eloqüência, tornou-se um dos conselheiros políticos e espirituais da cidade-Estado de Roma, sorteado alguns anos antes para a função de antipapa. De acordo com um cronista da época, Arnaldo "criticava abertamente os cardeais, dizendo que suas assembléias [...] não eram a Igreja de Deus, mas um mercado e uma espelunca de ladrões [...] Nem o papa era o que dizia ser, homem apostólico e pastor de almas, mas um homem sanguinário cuja autoridade tinha por base incêndios e homicídios, torturador das igrejas, perseguidor da inocência, que no mundo só servia para envergonhar as pessoas, enchendo o próprio cofre e esvaziando os dos outros" (Merlo, 1989, p. 35).

Sua popularidade lhe permitiu atuar por anos em Roma sem ser perturbado, até que, em 1155, o papa Adriano IV conseguiu mandá-lo ao exílio com a ameaça de publicar um "interdito" contra a cidade, uma espécie de "embargo religioso" que suspendia as atividades eclesiásticas sobre seu território. O interdito ameaçava tirar da cidade o lucrativo mercado de peregrinos.

Enquanto fugia de Roma, Arnaldo foi capturado pelas tropas de Frederico Barba-Ruiva, que o entregou ao papa. Foi enforcado, e, por medo de que surgisse um culto popular em torno de seus restos mortais, seu corpo foi cremado, e as cinzas, jogadas no Tibre. Seus seguidores, os arnaldistas, continuaram, no entanto, a arrebanhar adeptos por anos, até se juntarem aos valdenses.

Os cátaros

Embora conhecidos por vários nomes — albigenses, patarinos, concorrenzzianos10 —, preferiam ser chamados de "cátaros", os "puros", do grego katharos. Eram ascetas e pacifistas, e seus sacerdotes não possuíam riquezas. Os cátaros tinham uma concepção dualista do mundo, herdada dos bogomilos:11 o espírito é o bem e a matéria é o mal. Rejeitavam a doutrina da encarnação (já que a matéria é má, Deus não podia ser Jesus encarnado), o matrimônio, a procriação, e observavam longos e rigorosos jejuns. Praticavam uma espécie de batismo espiritual com a imposição das mãos. Tinham um "clero" próprio formado por "maiores" (bispos), presbíteros (padres) e diáconos. Além disso, distinguiam entre "perfeitos" (os plenamente adeptos à seita, com todas as obrigações vinculadas) e "crentes" (uma espécie de "simpatizantes" a quem os cátaros permitiam a adesão formal aos ritos da Igreja Católica).

A heresia cátara era muito difundida na França meridional, a ponto de quase prevalecer sobre o catolicismo. Várias comunidades estavam presentes também na Itália e na Espanha setentrional, nos territórios eslavos e em Constantinopla. Os cátaros (como os primeiros cristãos) estavam presentes sobretudo nos centros urbanos. A população era conquistada por seu ascetismo e moralidade, muito maior do que a do clero ortodoxo. Aceitavam apenas uma parte das Sagradas Escrituras e consideravam a Igreja de Roma uma criatura do demônio. Assim, em 1167, fundaram uma verdadeira Igreja alternativa, com um concilio internacional numeroso no sul da França.12 Os cátaros gozavam do apoio dos nobres provençais, que sonhavam em se apoderar dos bens da Igreja e temiam seu poder.

Em 1179, o Terceiro Concilio de Latrão estendeu os benefícios previstos para os cruzados da Terra Santa a quem empunhasse armas contra os hereges do sudoeste da França. Era a primeira vez que se ordenava uma Cruzada contra os cristãos.13

Em 1208, o papa Inocêncio III, preocupado com o crescimento contínuo da influência dos cátaros, renovou o chamado à Cruzada, prometendo de novo as mesmas indulgências e os mesmos privilégios concedidos aos cruzados.14

Assim, dois anos depois, foi formado um exército de duzentos mil cruzados, na maioria nobres do norte da França ansiosos por conquistar terras e mercadorias às custas de seus colegas do sul. "Por vinte anos, a parte mais civilizada da Europa — e, segundo alguns, também mais feliz —, a terra dos trovadores, foi devastada por saques e destruições em larga escala." (Christie-Murray, 1998, p. 155.)

A Cruzada teve episódios de grande fúria, como o massacre de Béziers, em 1209. Quando os cruzados conquistaram a cidade e perguntaram ao representante do papa como poderiam diferenciar os católicos dos hereges, este respondeu: "Matem todos. Deus reconhecerá os seus." "A cidade de Béziers foi dominada, e como nossos homens não distinguiram dignidade, sexo ou idade, quase vinte mil homens morreram sob a espada... a cidade foi saqueada e queimada: assim a atingiu o admirável castigo divino." (Christie-Murray, 1998, p. 155.) Assim escreveram os representantes do pontífice, em um relatório oficial ao papa sobre os acontecimentos.

O massacre de Béziers causou o autêntico repúdio da opinião pública da época. Eis o que escreve o trovador provençal Guilhem Figueira, em seu "Sirvente contra Roma", composto por volta de 1227:

Roma...

Seria bom privá-la

De cérebro,

pela vergonha que carrega no chapéu,

você e seus Citeaux — que massacraram

Béziers, e assustadoramente!15

Após Béziers, sucedeu-se a conquista de Carcassone, Narbonne e Toulouse. A Cruzada se encerrou em 1229, com a tomada de Toulon e o tratado de Meaux, no qual o conde Raimundo VII, de Toulouse, reconheceu o domínio do rei da França, que lhe cedeu parte dos próprios territórios, e se reconciliou com a Igreja Católica. O tratado também equiparou o crime de heresia ao de lesa-majestade. Para provar sua boa vontade, em seguida, o conde mandou pessoalmente 80 hereges à fogueira em Agen, em 1249.

Os cátaros sobreviventes se refugiaram parte na Itália setentrional, parte nos Bálcãs, onde incrementaram as fileiras de uma Igreja dualista autônoma hegemônica na Bósnia-Herzegóvina, que foi destruída pela invasão turca do final do século XV.

Em 1244, o arcebispo de Narbonne, "seguindo as diretrizes apostólicas" (ou seja, as ordens do papa Inocêncio IV), mandou para a fogueira mais de duzentos hereges de ambos os sexos capturados após um ano de sítio à fortaleza de Montségur. Enquanto isso, a Igreja desenvolveu uma legislação para encorajar o "arrependimento". Em Milão, por exemplo, o período de noviciado para os ex-hereges que quisessem entrar para a ordem dos dominicanos foi reduzido. E houve ex-cátaros que se tornaram inquisidores e perseguidores de hereges, como o dominicano Ranier Sacconi. No início do século XIV, "a questão cátara já estava resolvida: os focos de resistência seriam facilmente debelados pelos inquisidores". (Merlo, 1989, p. 98.)

Os valdenses

Estes devem seu nome a Pierre Valdo (ou Valdense), rico mercador de Lyon, que abriu mão de seus bens, doando-os aos necessitados, e, em 1176, reuniu um grupo de paupérrimos pregadores errantes. Gostavam de ser chamados de "Pobres de Lyon" ou "Pobres no Espírito", e ao menos no início puderam contar com certa simpatia por parte dos meios eclesiásticos.

Os valdenses atacavam a corrupção na Igreja romana e atribuíam o sacerdócio a todos os fiéis, homens ou mulheres. Para eles, todo bom cristão tinha o direito de pregar, absolver dos pecados e ministrar os sacramentos. Rejeitavam a comunhão, as orações pelos mortos, as indulgências, a confissão, a penitência, os hinos cantados, a recita de ladainhas em latim e a adoração aos santos. Para eles, o homicídio e a mentira, qualquer que fosse, eram pecados mortais, portanto, eram pecadores também os promotores das Cruzadas.

Os pastores valdenses se consagravam ao celibato e à pobreza e se dedicavam aos sermões. Graças ao zelo missionário, sua crença se espalhou por vários países da Europa Ocidental. Seu sucesso preocupou os vértices da Igreja, que passaram da tolerância relativa à repressão. O próprio Valdo foi excomungado em 1184.

O papa Inocêncio III percebeu a popularidade dos "Pobres de Lyon" e, em 1208, tentou cruzar seu caminho, instituindo os "Pobres Católicos", que, sob o controle da Igreja, tinham permissão para observar todas as práticas valdenses julgadas ortodoxas.

A conduta dos valdenses era irrepreensível: eram trabalhadores operários e humildes, vestiam-se de forma simples, esquivavam-se dos ataques de raiva e evitavam as formas de prazer terreno, como a dança ou a reunião em tabernas. Mas sua vida pacífica e popularidade não conseguiram salvá-los. Alguns acabaram na fogueira em Estrasburgo, em 1212. O Concilio de Latrão os condenou definitivamente em 1215, e em seguida tiveram de enfrentar também os ataques da Inquisição, que prendeu centenas deles. Em 1393, foram queimados na fogueira 150 valdenses em um único dia. Dizimados, refugiaram-se nos Alpes, entre a França e a Savóia.

Em 1484, Carlos I de Savóia empreendeu uma verdadeira guerra contra eles, mas após as primeiras batalhas, vencidas pelos "hereges", entrou em acordo com eles. Três anos depois, o papa convocou uma Cruzada contra os valdenses.

O empreendimento teve grande sucesso, especialmente no lado francês: os povoados valdenses foram incendiados, as famílias que haviam se refugiado nas grutas foram retiradas e massacradas. Em uma caverna, dezenas de homens, mulheres e crianças foram queimados vivos.16 Mas a repressão não conseguiu acabar com eles.

Durante a Reforma Protestante, os valdenses tomaram partido dos calvinistas, chegando, com seus sermões, até a Suíça. Reanimados pelo novo clima, renovaram a verve missionária, atraindo para si outras perseguições.

Em 1545, o rei da França, Francisco I, organizou uma feroz repressão contra eles, na qual milhares de pessoas foram mortas e povoados inteiros foram destruídos. Entre 1560 e 1561, Manuel Filiberto de Savóia conduziu uma dura guerra contra os valdenses. Estes, como outros "hereges" antes deles, para defender suas idéias, sofreram uma transformação: de profetas desarmados a hábeis guerreiros. Os habitantes das planícies foram abatidos, mas aqueles que se encontravam nos vales conseguiram resistir e, em 1561, obtiveram o direito de exercitar o próprio culto, ao menos em locais isolados, distantes dos católicos.17 O novo clima gerado pela Contra-Reforma, no entanto, mais uma vez dificultará suas vidas.

As Páscoas Piemontesas

O período entre o fim do século XVI e a primeira metade do século XVII viu crescentes pressões e verdadeiras perseguições contra os valdenses. O ápice ocorreu em abril de 1653, com o massacre da Via Pellice, conhecido como "Páscoa Piemontesa".

Em 24 de abril daquele ano, um exército de mais de quatro mil soldados armados sob o comando do marquês de Pianezza ocupou os vales valdenses e saqueou os povoados de San Giovanni e Torre, sem encontrar qualquer resistência. Apesar dos atos de submissão dos "hereges" (que aceitaram alojar as tropas católicas em suas próprias casas), Pianezza pôs a ferro e fogo os povoados de Pra del Torno, Villar e Bobbio. As casas foram saqueadas, os habitantes que não conseguiram fugir a tempo foram torturados e mortos. Ao final dos massacres, em 3 de maio, Pianezza convocou uma cerimônia solene durante a qual, na presença de seus homens e da população sobrevivente, mandou fincar no chão uma cruz. Nos dias seguintes, o exército católico atacou outros povoados da região, apesar da resistência armada de alguns cidadãos.

Em 1655, os Savóia foram obrigados a devolver aos valdenses pelo menos uma parte dos direitos a eles subtraídos, sob pressão da opinião pública internacional e de uma guerra comandada pelo líder camponês Giosuè Gianavello (que em seguida escreverá um manual da guerrilha).

O exílio e o glorioso repatriamento

Após a revogação do Edito de Tolerância de Nantes (18 de outubro de 1685), que colocara fim à série de guerras religiosas na França e regularizara a posição dos huguenotes, os valdenses foram atacados conjuntamente por exércitos de franceses e piemonteses. Pelo menos dois mil morreram em campo. Outros 8.500 foram capturados e aglomerados nas prisões em condições desumanas, onde milhares morreram. Os sobreviventes estavam destinados a ser vendidos como escravos. Outros três mil abjuraram sua fé e foram deportados para o Vercellese. Apenas um núcleo isolado de irredutíveis resistia fortificado nos vales.

Graças à mediação dos suíços, os prisioneiros sobreviventes puderam ser expatriados, e os últimos bandos armados puderam se refugiar nos vales (mas os pastores foram mantidos presos). Centenas deles morreram ou se perderam ao longo do caminho para os Alpes.

Os exilados realizaram, em 1689, o Glorioso Repatriamento, que os levou de volta às suas montanhas. Em grande segredo, na noite entre 16 e 17 de agosto de 1689, um exército misto de milhares de soldados valdenses e huguenotes armados atravessou o lago de Genebra. Em 27 de agosto, atravessaram a fronteira saboiana e, com uma marcha rápida, em 9 dias chegaram a seu vale nas montanhas piemontesas, pegando de surpresa as tropas do duque de Savóia.

Durante os primeiros embates, os valdenses levaram a melhor, apesar da esmagadora superioridade numérica do adversário. Ao final, entre baixas em combate e derrotas, apenas um estandarte de trezentos homens conseguiu passar o inverno em seus vales. Um ano depois, estes mesmos combatentes conseguiram escapar dos tiros de canhão e dos ataques de um exército de quatro mil dragões.

O duque de Savóia, então, aliou-se à Inglaterra protestante, libertou os pastores presos e publicou um edito de tolerância. Os valdenses súditos de Savóia precisaram esperar, entretanto, até 1848 para ver reconhecida a igualdade total de direitos com seus conterrâneos católicos.

Já no início do século XIV, um núcleo de valdenses do Piemonte havia se transferido às montanhas da província de Cosenza. A comunidade não parou de crescer com as sucessivas chegadas. Outro núcleo de valdenses se estabeleceu na Puglia, em Capitanata, no início do século XVI.

Sua existência, até então pacífica e tolerada, tornou-se bruscamente mais difícil quando, após sua adesão à Reforma, decidiram dar novo impulso à pregação pública do Evangelho, chamando pregadores externos. Este ativismo renovado abriu os olhos da Inquisição. Dois pregadores foram presos e, após serem levados a Roma, queimados na fogueira.18 Todos os outros tiveram de abjurar.

Os valdenses de Guardiã e San Sisto, sem a intenção de abjurar, pediram para emigrar para terras mais hospitaleiras, mas não obtiveram o consentimento. Eles, então, pegaram em armas para se defender e, em abril de 1561, enfrentaram e levaram a melhor sobre as tropas do Reino de Nápoles. A reação não tardou: em 28 de maio, as tropas governamentais atacaram os vilarejos valdenses com permissão para matar impunemente homens, mulheres e crianças que resistissem à captura. Os povoados foram saqueados e queimados; grande parte dos prisioneiros foi morta no local, degolada ou jogada de uma torre. Os sobreviventes acabaram diante de um tribunal misto composto de juízes reais e eclesiásticos que culminou em 86 condenações à morte, logo executadas.

O balanço final da perseguição, redigido com meticulosidade pelo vice-rei Alcalà, fala de dois mil mortos e 1.600 presos. Destes, 150 foram condenados à morte. Além disso, as tropas rastrearam e justiçaram outros cem valdenses debandados nos campos. Os da Puglia, menos "militantes" e mais "acomodados", tiveram um destino melhor, talvez também por mérito dos senhores feudais do lugar, que não viam com bons olhos uma intervenção militar que os privaria de sua preciosa mão-de-obra. Mas, ao final, estes também foram obrigados a abjurar.

Os stendigs e os franciscanos

Os stendigs eram uma população germânica que vivia às margens do rio Weser. Recusaram-se a reconhecer a jurisdição temporal do arcebispo de Bremen e, por esta única rebelião, foram declarados hereges (na verdade, não consta que praticassem heresias doutrinárias). O papa Gregório IX (1227-1241) lançou contra eles uma Cruzada em 1234. Foram atacados pelas forças conjuntas do duque de Brabante e dos condes da Holanda e de Cleves, que investiram contra eles com uma frota de trezentos navios. De quatro mil a cinco mil stendigs foram mortos em combate. O restante da população em parte morreu afogada no Weser, em parte se dispersou. O balanço final gira em torno de 11 mil vítimas.

Nem as ordens reconhecidas pela Igreja escaparam da acusação de heresia. Antes mesmo da morte de seu santo fundador, os franciscanos se dividiam em duas correntes: os conventuais, favoráveis a uma flexibilização da regra de pobreza, e os espirituais, também chamados de zelosos, fiéis à regra original e fortemente críticos em relação à Igreja.

Após a morte de Francisco (1226), as posições entre as duas correntes acabaram se cristalizando, até produzirem um verdadeiro confronto. Em 1274, um grupo de freis da região de Marche, alarmados pela falsa notícia de que a regra franciscana seria modificada para permitir que a ordem possuísse bens, deu vida a uma rebelião. O movimento logo se espalhou por toda a Umbria e pela Toscana. Em seguida, alguns rebeldes foram condenados à prisão perpétua, tendo sido agraciados muitos anos depois.

Em 1294, o papa Celestino V concedeu aos extremistas a permissão de criar uma ordem separada. Bonifácio VIII (1294-1303) revogou a disposição e os perseguiu.

Dos espirituais franciscanos derivou também o movimento herético dos "fraticelli", difundido especialmente no centro e no sul da Itália.

Sua heresia consistia em pregar as profecias apocalípticas que circulavam no meio franciscano, mas principalmente na interpretação extrema da regra da pobreza. A afirmação de que "Cristo e os apóstolos não possuíam nenhum bem" custou a fogueira a nove deles durante o pontificado de Urbano IV (1261-1264).19

A partir de 1316, o papa João XXII (1316-1334), condenado pelos "fraticelli" como o anticristo, ordenou sua perseguição. Em 1322, a assembléia geral dos frades menores (os franciscanos espirituais) assumiu sua posição no debate teológico, declarando que "Cristo e os apóstolos haviam vivido em pobreza absoluta". No ano seguinte, o pontífice declarou heréticas as teses franciscanas e ordenou que a Inquisição perseguisse quem quer que as defendesse. Nos anos sucessivos, vários freis católicos acabaram na fogueira (David Christie-Murray, 1998, p. 160).

Jacopone de Todi

É um dos mais ilustres personagens da corrente espiritual, místico e poeta. Aliou-se, junto a outros expoentes espirituais franciscanos, à poderosa família Colonna, acirrada inimiga de Bonifácio VIII, e foi um dos signatários do Manifesto de Lunghezza (10 de maio de 1297), que declarava ilegítima a nomeação do papa e pedia a convocação de um concilio para nomear um novo pontífice. Excomungado junto a outros seguidores em 1298, foi encarcerado. As condições da detenção eram muito rígidas: acorrentado dia e noite nos frios e úmidos subterrâneos de um convento onde desembocava uma tubulação de esgoto, a pouca comida que recebia era por meio de uma cesta lançada do alto, e só conseguia se mexer o que os ferros permitiam.

Em vão, pediu ao papa que ao menos a excomunhão fosse revogada, mas o pontífice, apesar de ter concedido uma indulgência plenária por ocasião do primeiro Ano Santo (1300), furtou-se a perdoá-lo. Só depois da morte de Bonifácio VIII (1303), Jacopone, já com mais de 70 anos, viu-se livre da prisão e da excomunhão e voltou ao convento. Dizem que já não conseguia andar, pois seus joelhos haviam se calcificado em decorrência da posição em que foi obrigado a ficar por anos. Morreu em 1306.

Frei Dulcino

Talvez o mais famoso herege medieval italiano. Em 1300, Dulcino tornou-se líder carismático dos apostólicos, uma seita herética pauperista que contestava a corrupção da Igreja e cujos pregadores gozavam de grandes favores junto ao povo depois que seu fundador, Gherardo Segalello, foi morto queimado.

Este enviou aos seguidores um apelo de tons proféticos: a era do mal estava por acabar, em breve o imperador Frederico III de Aragão derrubaria o falso papa Bonifácio VIII e, com ele, todo o clero corrupto. Adviria, então, uma era de paz universal, com a eleição de um papa santo. Enquanto isso não acontecia, os apostólicos eram obrigados a viver na clandestinidade para fugir das perseguições da falsa Igreja, que perseguia e mordia, como cães, os verdadeiros fiéis.20

E foi por incentivo de Dulcino que os apostólicos se transformaram, de movimento anárquico e espontâneo, em uma organização "subversiva" clandestina que criou uma fervorosa propaganda anticlerical que se difundiu em grande parte da Itália. Os pregadores podiam contar com a hospitalidade e a cumplicidade de um grande número de pessoas de vários extratos sociais, admiradas com o comportamento desses "homens bons" e com o carisma profético de Dulcino. Todavia, como este previra, a Inquisição começava a perseguir os apostólicos: os vilarejos foram peneirados à procura de hereges e das famílias que os protegiam. Em 1303, Zaccaria de San'Agata, que afirmava que a Doação de Constantino fora a verdadeira causa da ruína da Igreja, foi queimado na fogueira.

Em Bolonha, foi a vez de Rolandino de Ollis, Pietro dal Pra, o eremita Bartolomeo Petri Rubey e Giovanni Gerardini (este salvo rocambolescamente várias vezes da captura) acabarem na fogueira ou pegarem prisão perpétua. Muitas outras pessoas, mesmo anos depois dos acontecimentos, foram alvo das atenções da Inquisição por terem hospedado os apostólicos. Algumas delas foram condenadas, outras escaparam abjurando ou declarando que agiram de boa-fé e foram enganadas; "pareciam homens bons" será a defesa de muitos. E o próprio Dulcino havia declarado que não era pecado prestar falso testemunho aos inquisidores para salvar a própria vida ou a de companheiros.

Em 1304, Dulcino se refugiou em Novara, estabelecendo-se, junto com seus seguidores, nas terras entre Serravalle e Gattinara. Lá, fundou uma comunidade cujas bases eram a igualdade evangélica e a comunhão de bens. A população recebeu, com alegria, a presença dos apostólicos, mas a intervenção das milícias estatais, conduzidas pelo inquisidor padre Emanuele, obrigou os dulcinistas a se refugiar, no verão de 1305, no monte Parete Calva, em Valsesia, uma espécie de fortaleza natural intransponível. No monte, Dulcino realizou a segunda transformação de seu movimento: de pregadores pacíficos a guerreiros, homens e mulheres dispostos a defender com as armas a própria independência. Para se manter, os dulcinistas empreenderam verdadeiras incursões armadas no vale, saqueando e roubando as despensas dos senhores feudais, fazendo ricos de reféns e trocando-os por comida. Os cruzados anti-hereges, por sua vez, atacavam todos os suspeitos de ajudar os rebeldes e emboscavam os dulcinistas que desciam a montanha. Além disso, onde os inquisidores não chegavam, chegavam o rigor do frio do inverno e uma tremenda escassez. O exército de Dulcino foi dizimado pela fome, pelo cansaço e pelos embates militares. Ao final, quando as condições de vida se tornaram proibitivas, os apostólicos sobreviventes (cerca de mil), na primavera de 1306, partiram em novo êxodo: através de passagens inacessíveis, chegaram à região do monte Rubello (ou seja, "rebelde", que ganhou este nome pela presença dos rebeldes dulcinistas), onde construíram uma verdadeira cidade fortificada. Lá, a luta contra eles foi conduzida diretamente pelo bispo e inquisidor Vercelli Raniero Avogardo, que reuniu tropas da Inquisição, milícias estatais, além das forças do arcebispo de Milão e do duque de Savóia, convocadas a pedido do próprio papa Clemente V. Todos os acessos ao monte foram bloqueados e, apesar de uma surtida dos revoltosos, o assédio venceu egregiamente. Debilitados pela fome (de acordo com os relatos da época, chegaram ao ponto de se alimentar dos corpos dos companheiros mortos), os dulcinistas não conseguiram opor resistência quando, em 23 de março de 1307, as tropas de coalizão do arcebispo fizeram o ataque final. Centenas de hereges morreram em combate ou afogados na torrente que nasce no monte. Deles, 140 (dentre os quais o próprio Dulcino e sua companheira, Margherita) foram capturados vivos e poupados intencionalmente, para que sua condenação servisse de exemplo.

A Inquisição e o tribunal eclesiástico lutaram pela honra de presidir o processo, que se encerrou rapidamente com uma sentença já executada. Na prisão, Dulcino e seus seguidores foram torturados longa e cruelmente para que abjurassem, mas sem êxito.

E, assim, em 1o de junho de 1307, foi queimado vivo em Vercelli, após sofrer um grande suplício. O carro que o levou ao patíbulo fez várias paradas, e cada uma correspondia a uma tortura do público: primeiro, sua carne foi arrancada (usque ad ossa, ou seja, até chegar ao osso, pelo que diz um cronista da época) com alicate quente, depois seu nariz foi quebrado, e finalmente lhe foram arrancados os genitais. Antes de subir na fogueira, viu o "espetáculo" de sua companheira, Margherita, sendo despida e queimada viva. Seus restos foram jogados no rio.21

Todos os combatentes que ajudaram a localizar Dulcino foram agraciados com o nome de "cruzados" e gozaram de benefícios especiais e indulgências.

O comportamento de Dulcino, que não se entregou a súplicas e gritos desesperados nem durante o suplício nem no fogo, suscitou comentários de admiração até mesmo dos cronistas e relatores católicos. A figura de Margherita, em uma época não muito gentil com as mulheres, também foi tratada com respeito pelos escritores eclesiásticos, que não hesitaram em difamar, de todas as formas, a memória de Dulcino e de seus seguidores.

Assim, o líder dos dulcinistas saiu da história para entrar no mito. Por um lado, a lenda negra: diziam que fora um bruxo poderoso e que só a magia podia explicar a excepcional resistência armada de um bando de rebeldes pobres diante das armaduras e máquinas de guerra do exército do arcebispo. Diziam que os espíritos dos rebeldes ainda vagavam pelos arredores do monte Rubello, e os boatos eram tão insistentes que convenceram as autoridades eclesiásticas a erguer, em 1308, um santuário dedicado a São Bernardo, para exorcizar a área da presença dos espíritos malignos e comemorar sua libertação da "peste herética". Ao mesmo tempo, nasce também uma lenda branca, que considerava Dulcino e Margherita quase dois santos. Ao herege foram atribuídos, após sua morte, verdadeiros milagres.

Jan Hus, o Lutero da Boêmia

Jan Hus (cerca de 1373-l415) foi o precursor da Reforma na Boêmia. Sacerdote de vida irrepreensível, tornou-se diretor da Faculdade de Filosofia e reitor da Universidade de Praga. Inspirado pelas teses de Wyclif, Hus era favorável à interpretação particular das Escrituras e defendia o direito de se rebelar contra a autoridade (civil ou religiosa) para agir de acordo com a consciência.22

Para tornar as Escrituras acessíveis ao homem comum, pregava em tcheco, além do latim, alimentando um sentimento crescente de nacionalismo boêmio.

Hus era popular entre as massas, na aristocracia (chegou a se tornar o confessor da rainha) e entre os estudantes da Universidade de Praga, onde, por um período, suas teses dominaram. Pregou contra a corrupção do clero em todos os níveis e negou a validade dos sacramentos ministrados por sacerdotes indignos. Fez vários ataques violentos contra a Igreja de Roma.23 Um de seus últimos atos foi a denúncia do comércio de indulgências por parte dos representantes do papa para financiar uma Cruzada contra o rei de Nápoles.24 E foi esta a última e fatal batalha: excomungado pelo papa e interditado por Praga, Hus continuou a pregar ao ar livre apoiado pelo público.25

Condenado pelo Concilio de Constanza, foi expulso do clero e, em 6 de julho de 1415, mandado para a fogueira. No ano seguinte, foi a vez de um discípulo seu, Jerônimo de Praga. Hus já tinha se tornado, aos olhos dos boêmios, um mártir e autêntico herói nacional. De seus sermões, nasce o movimento hussita, dividido em duas vertentes: uma moderada, composta prevalentemente por aristocratas, e outra extremista, mais difundida em meios populares.

Em 1418, a ala radical fez eclodir uma rebelião popular que envolveu tanto a cidade de Praga quando os campos vizinhos.26

O imperador Sigismundo percebeu que a guerra religiosa era também uma guerra de independência e, em 1420, invadiu a Boêmia. Mas seu exército foi esmagado pelos camponeses tchecos, que utilizaram técnicas de combate inovadoras. Os anos seguintes presenciaram a difusão das doutrinas hussitas na Áustria, Alemanha, França e Hungria. Por volta de 1430, a ala moderada e a extremista se confrontaram em uma verdadeira guerra civil, perdida pelos radicais. De todo modo, os hussitas conseguiram obter, pelo menos na Boêmia, liberdade de culto. Depois, a maior parte deles passou para a igreja calvinista.

Joana d'Arc, bruxa, herege e santa

Em 30 de maio de 1431, Joana d'Arc foi condenada por bruxaria e heresia, e mandada para a fogueira. Sob o ponto de vista doutrinário, sua "heresia" não era muito diferente da de Hus: ela colocara o juízo pessoal à frente do oficial da Igreja. Séculos depois, esta admitiu implicitamente seu erro e a proclamou santa em 9 de maio de 1920.

Jerônimo Savonarola

Jerônimo Savonarola (1452-1498) era um frei dominicano que condenava os pecados e a vaidade, e que denunciava os males da Igreja. Começou a pregar em Florença por volta de 1491, anunciando o iminente fim do mundo. Os acontecimentos de 1494, com a invasão de Florença por parte do rei da França e a expulsão da família Mediei, pareciam confirmar suas profecias. Dessa forma, conquistou o carisma de um profeta diante dos florentinos e exerceu grande influência sobre o nascente governo da cidade-estado. Por incentivo seu, a república florentina deu vida a uma legislação intransigente e intolerante não só contra a usura e a corrupção, mas também contra o luxo e a "imoralidade".

Um dos alvos dos sermões de Savonarola era o pontífice da época, Alexandre VI Bórgia, que, por sua vez, odiava o pregador e os florentinos, que atrapalhavam sua pretensa hegemonia sobre a Itália central.

Em maio de 1497, Savonarola foi excomungado. Ele, então, apelou a todos os Estados europeus para que convocassem um concilio ecumênico para depor Alexandre VI. Mas obedeceu às ordens de seus superiores dominicanos e interrompeu os sermões. Um franciscano o desafiou a se submeter a um ordálio (passar através do fogo, para demonstrar ser protegido por Deus), mas ele recusou a prova, que foi aceita por um seguidor seu. Talvez a recusa tenha diminuído seu prestígio, talvez o fim do apoio francês ao governo florentino tenha tornado seus adversários mais agressivos, talvez simplesmente os florentinos não tenham agüentado mais sua rigidez moralista, mas o fato é que, em 7 de abril de 1498, o dia previsto para o ordálio, o povo de Florença se revoltou contra Savonarola. O papa pôde, assim, capturá-lo e processá-lo. Sob tortura, confessou ser culpado de heresia e de vários outros crimes e, em maio de 1498, foi queimado na fogueira junto com dois seguidores.

Recentemente, foi beatificado.

Parte 1 & 2

Parte 3

Parte 4

Apêndices 1 & 2

Apêndices 3 & 4

Apêndice 5 & Notas

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