quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O livro negro do cristianismo Apendices 1 & 2

Dois mil anos de crimes em nome de Deus


APÊNDICES

APÊNDICE 1

Outros hereges

Guilhermina da Boêmia (cerca de 1269-1282)

Guilhermina, a Boêmia, por alguns considerada filha do rei boêmio Otocaro I Premysl (ainda que muitos historiadores contestem essa possibilidade), era uma mulher muito religiosa que, com seu carisma, atraiu vários seguidores, mais tardes chamados de "guilherminos" (não confundir com a ordem homônima dos eremitas seguidores de São Guilherme de Malavalle). Em 1260, tornou-se "oblata", ou seja, leiga que morava em convento, em Chiaravalle (Milão), onde passou a viver de acordo com os ditames do Evangelho e do amor cristão. Guilhermina passou a pregar a inutilidade dos sacramentos e a recusa ao sofrimento como via de salvação. Quando morreu, seu corpo foi sepultado no mosteiro de Chiaravalle, e em volta de sua figura surgiu um culto alimentado pelos próprios religiosos.

Dois de seus seguidores, Andréa Saramita e Manfreda de Pirovano, chegaram a afirmar que Guilhermina era o Espírito Santo em forma de mulher. Esse milagre correspondia, para eles, à profecia do místico calabrês Joaquim de Fiore, para quem uma mulher se tornaria papisa, reformaria a Igreja e, após sua morte, haveria uma apocatástase (reconciliação e salvação de toda a criação), que libertaria toda a humanidade, inclusive os judeus e muçulmanos.1

A adoração a Guilhermina passou a ser muito popular e começou-se a falar até de santificação. Manfreda sonhava em receber sua herança e tornar-se "papisa", mas se esqueceu da Inquisição. Em 1300, os inquisidores arrancaram a confissão de alguns seguidores, que testemunharam contra ela, acusada de celebrar uma missa solene no dia de Páscoa daquele ano. Os inquisidores ordenaram que Guilhermina fosse declarada herege post-mortem e que seus restos mortais e imagens fossem queimados. No mesmo ano em que seu corpo foi exumado e entregue às chamas, Andréa Saramita e Manfreda de Pirovano morreram na fogueira.

Os apostólicos

Eram seguidores de Geraldo Segalello de Parma (1240-1300, aproximadamente). Este, como São Francisco anos antes, renunciou a todos os bens e, após ser rejeitado pela Ordem Franciscana, começou a pregar sozinho por volta do ano 1260. Em pouco tempo, um amplo movimento se formou ao seu redor (do qual ele, no entanto, nunca quis ser chamado de "líder") e se difundiu não só na Itália setentrional e central, más também na Dalmácia, Áustria, França, Alemanha e Inglaterra.2

Os apostólicos tendiam a se organizar em comunidade: povoados onde trabalhavam e possuíam aterra coletivamente, constituindo reservas comuns de alimentos e outros bens, as chamadas "credências".

Como os franciscanos, praticavam a pobreza e pregavam em qualquer lugar: nas praças, nas ruas, mas também nas igrejas cedidas por eclesiásticos simpatizantes. Ao contrário dos primeiros, no entanto, contestavam o dízimo (pagamento obrigatório que os fiéis deviam pagar à Igreja e que oneravam bastante a renda dos camponeses pobres) e o poder do clero, consideravam a Igreja de Roma irremediavelmente profanada, praticavam o batismo dos adultos, não juravam nem pregavam a solidão.3 Além disso, declaravam que era melhor viver sem votos do que pregá-los apenas de maneira formal.4

Dentre os seguidores de Segalello, estavam várias mulheres, que assumiam o posto de "irmãs" dos apostólicos ou, até mesmo, "profetisas".

Anedotas e lendas das mais variadas surgiram em torno dos feitos de Segalello e de seus seguidores, e hoje é praticamente impossível diferenciar o que é verdadeiro do que é falso. Para o povo, Segalello era um santo que realizava milagres, um "Francisco ressuscitado", capaz de caminhar sobre as águas como São Pedro. Para seus detratores, como o franciscano Salimbene de Parma,'era apenas um leigo de meras origens camponeses, um "iletrado", um "idiota", e seus seguidores nada mais eram que "pastores de porcos e bois", "obtusos", "bárbaros e patifes". Salimbene atribuía a Segalello e a seus seguidores várias "burrices": o profeta apostólico teria o hábito de dormir com uma moça nua para testar a própria castidade e teria ingressado na vida pública ao aparecer sobre uma charrete mamando dos seios de uma seguidora, como se fosse uma criança. Mas as massas não consideravam as palavras de frei Geraldo tão rudes assim, já que o próprio Salimbene foi obrigado a admitir que, na Emília, os pregadores apostólicos tinham um séquito bem maior do que os franciscanos.

Até mesmo as crianças pregavam, e, dentre elas, havia um verdadeiro menino-prodígio que, quando colocado sobre o trono de uma catedral, atraía um grande público e conseguia várias conversões. Quando pregou em Ferrara, aconteceu o seguinte:

Um dia, o frei Boaventura pregava no convento dos Frades Menores em Ferrara e percebeu que alguns de seus ouvintes se levantaram de repente e saíram correndo. Ele ficou muito surpreso... Perguntou, então, por que saíam correndo. Aqueles que ficaram responderam: "Por que um infante dos apostólicos está pregando na igreja mãe do beato Jorge. É lá que o povo se reúne. E é por isso que vão embora correndo: para conseguir pegar lugar.5

Em 1280, na região de Reggio Emilia, houve um verdadeiro levante popular contra o clero por causa dos dízimos. A culpa por ter incitado o povo recaiu sobre Segalello e seus seguidores, que proferiam discursos com o seguinte teor: "Ai de vocês, que exigem o dízimo da colheita e negligenciam a justiça e a caridade... Ai de vocês, guias cegos, pois dizem e não fazem, e exigem os primeiros lugares e os cumprimentos nas praças, mas sobrecarregam os outros de um fardo insuportável nos quais nem encostam um dedo..."

Frei Geraldo foi preso e encarcerado pelo bispo de Parma, Obizzo Sanvitali. Inicialmente, foi para uma cela do bispado, depois lhe foi concedida uma espécie de liberdade condicional dentro do palácio bispai (o bispo se divertia ouvindo suas palavras, como se fosse um jogral).

Após quatro anos de cárcere, foi solto. É provável que o bispo o considerasse um personagem inócuo, e não foi aventada a suspeita de que o herege se tivesse feito de louco para conseguir a liberdade.

Mas a corda da estrutura eclesiástica se apertava cada vez mais em volta dos apostólicos. Em 1285, o papa Honório IV ordenou que depusessem o hábito característico (um manto acinzentado ornado de uma capa branca) e entrassem nas ordens regulares da Igreja Católica. Poucos aceitaram o convite. Os apostólicos foram, então, expulsos das igrejas da cidade de Parma.

Em 1290, vieram as fogueiras: quatro apostólicos, dois homens e duas mulheres, foram executados em Parma. Outros os seguiram nos anos seguintes. Em 18 de julho de 1300 (ano do primeiro jubileu da Igreja Católica), o próprio Geraldo Segalello foi queimado na fogueira.

Beguinas e begardos

As beguinas eram prevalentemente mulheres leigas caracterizadas por um forte espírito religioso. Mesmo não sendo afiliadas a nenhuma ordem reconhecida, levavam uma vida monástica em suas residências nas periferias das cidades e criaram verdadeiras comunidades, as "beguinarias". A primeira surgiu em 1170, em Liège, espalhando-se então por toda a França, Alemanha e Países Baixos. É provável que o primeiro núcleo fosse formado por mulheres de extratos sociais mais baixos rejeitadas pelos conventos, onde tinham prioridade as noviças de família nobre. Orientadas por alguns religiosos, as mulheres pobres criaram, então, uma "ordem faça-você-mesmo" que acabou por se tornar uma comunidade dedicada a levar sustento e caridade a outras mulheres sozinhas não aceitas nos conventos. Como não eram freiras, as beguinas podiam voltar às suas vidas normais a qualquer momento. Além disso, não pediam esmolas; cuidavam de suas propriedades ou trabalhavam.

Os begardos, ao contrário, eram um grupo de pregadores errantes que denunciavam as corrupções do clero e pregavam uma vida fiel ao Evangelho e à experiência dos primeiros apóstolos. A autonomia do movimento foi vista com grande preocupação por parte das autoridades eclesiásticas, em especial depois que se aliaram aos Irmãos do Espírito Livre e aos Franciscanos Espirituais.6

Os inquisidores deixaram de distinguir entre os grupos, apesar de uma primeira tentativa de separar os "bons" dos "maus". Clemente V, primeiro, e João XXII, posteriormente, perseguiram-nos e os condenaram em um único processo como hereges a partir de 1311. Muitos terminaram na fogueira, homens e mulheres.

John Wycliffe e os lolardos

John Wycliffe (1324-1383), teólogo e eclesiástico, foi o precursor inglês da Reforma Protestante. Condenou a riqueza do clero e defendeu a abolição do dízimo: para ele, a Igreja deveria se manter com as doações voluntárias. Também defendia uma espécie de sacerdócio universal dos "eleitos", passando por cima da hierarquia católica, e repudiava a prática das indulgências, a adoração aos santos e às relíquias, e a peregrinação. Wycliffe também contestou alguns sacramentos, em especial a crisma e a eucaristia, por refutar o conceito de transubstanciação. Em seus últimos anos de vida, traduziu para a língua vernácula várias passagens das Escrituras. Seus escritos inspiraram um movimento de pregadores itinerantes, os lolardos.7 Estes tiveram o apoio do rei Ricardo II e de boa parte da nobreza inglesa. Conseguiram até apresentar uma proposta de reforma da Igreja na Inglaterra.

Com Henrique IV, as coisas mudaram drasticamente: o rei, tendo caído nas graças da Igreja Católica, deu início a uma verdadeira perseguição baseada no De Hereticu Comburendo (Sobre queimar hereges), que permitia que os bispos torturassem e queimassem aqueles que fossem considerados hereges. Em 1409, por ocasião do Sínodo de Londres, alguns morreram na fogueira. Em 1411, sentindo-se ameaçados, os lolardos organizaram uma insurreição armada para seqüestrar Henrique IV, tentando incitar uma revolução camponesa. Mas a chamada às armas foi um fracasso: 37 lolardos morreram enforcados, outros sete, queimados. Em 1428, as teorias de Wycliffe foram consideradas heréticas e seus restos foram exumados, queimados e jogados no rio por ordem do papa. O movimento dos lolardos, no entanto, conseguiu sobreviver até o início do século XVI.


APÊNDICE 2

A tortura

O caso de Franchetta Borelli de Triora

Franchetta Borelli vivia em Triora, uma pequena cidade nos Prealpes, na província de Impéria, fronteira com a França. Tinha 65 anos quando foi submetida a duas sessões no cavalo de estiramento. Uma durou 15 horas ininterruptas, a outra, 23. Apesar da dor atroz, a mulher demonstrou uma força de espírito excepcional. Em dado momento, provavelmente para tentar se distrair dos sofrimentos físicos, começou a brincar e conversar com o comissário e os carrascos.

Abaixo transcrevemos, quase na íntegra, seu segundo dia de interrogatório, como está relatado nos documentos originais conservados no Arquivo do Estado de Gênova, no Arquivo Bispai de Alberga e no Arquivo Paroquiano de Triora.

Foi perguntado à acusada se estava decidida a dizer a verdade, e ela respondeu: "Senhor, já disse toda a verdade."

Foi perguntado se eram verdadeiras as coisas que havia começado a confessar durante o último interrogatório, e ela respondeu: "Eu estava com febre e não sabia o que estava dizendo."

Tendo em vista a obstinação e a audácia da acusada, foi então ordenado que fosse despida e vestida com um camisão de lona branca, que lhe fossem raspados os cabelos e pêlos pubianos e que, finalmente, fosse colocada sobre o cavalo de estiramento, para ser submetida à tortura. Então ela disse: "Julgai-me, Senhor; ajudai-me, Deus Todo-Poderoso, mandai-me ajuda e conforto. O Senhor Deus me ajudará... Calem-me, pois disse a verdade... Senhor Deus, liberta-me dos falsos testemunhos. Vós sabeis quem sou, os juízes do mundo não podem sabê-lo... Se apertar os dentes, dirão que rio...

Ai, meus braços... Ajudai-me, Senhor, e não me abandonais, pois só tenho conforto em Vos...

Calem-me. Se não disse a verdade, que Deus nunca me aceite no Paraíso. Falta-me coração. Senhor, mandai-me o anjo do céu, para que me proteja e defenda... Calem-me, eu disse a verdade. Se não me calarem agora, calar-me-ão morta; falta-me o fôlego. Senhor, mandai-me o anjo do céu. Cristo, que podeis mais do que os falsos testemunhos, arrancai-me a alma do corpo e a mandai para onde deve ir." Então ela se calou e disse: "Meu coração está explodindo. O Senhor não me deixará chegar ao amanhecer, pois chamará para Si minha alma. Senhor comissário, dê-me um pouco de vinagre ou de vinho." Bebeu um copo de vinho e disse: "Misericórdia, peço misericórdia. Tirem-me daqui e me dêem de beber."

Foi-lhe dado outro copo de vinho, e depois disse: "Senhor comissário, queria comer um ovo."

E assim lhe foi dado um ovo. Já fazia cinco horas que estava sob tortura, e nada disse nem se lamentou, até a 11ª hora, quando falou: 'Ajude-me quem puder." E após um tempo disse: "Ai, meu coração; aí, minha cabeça. Quer me fazer descer um pouco, senhor comissário?”E quando o comissário disse que a faria descer se falasse a verdade, ela respondeu: "Ora, eu já falei."

E calou-se. E após doze horas disse: "Estou sendo escalpelada. Ai, meu pescoço."

E após treze horas disse: "Dêem-me um pouco de água, que estou morrendo de sede."

Foi-lhe perguntado se queria vinho, e ela disse que não; e assim foi-lhe dada água para beber, e calou-se. E depois: "Não estou enxergando bem, estou com dor nas mãos e não estou mais vestida." E quando o comissário disse que não devia se preocupar com a roupa, mas em dizer a verdade e cuidar da alma, respondeu: "A alma vem antes de qualquer outra coisa. Tire-me daqui."

E quando o comissário disse que, se declarasse a verdade, seria desamarrada e tirada de lá, respondeu: "Já disse a verdade. Não consigo mais segurar a urina. A verdade, eu já disse; se pudesse ver a minha alma..."

Após quatorze horas de tortura, seu irmão trouxe-lhe ovos frescos, que ela bebeu, depois dizendo: "Não posso mais usar meus braços; e veja também como está minha língua... Não agüento mais... Pelo amor de Deus, façam-me descer um pouco, para que eu, pelo menos, consiga respirar." E então foi-lhe ordenado dizer a verdade; depois seria solta e poderia respirar o quanto quisesse. E ela respondeu: "Meu senhor, desça-me daqui, pois já disse a verdade. Alguém me ajude, se possível; não agüento mais, sinto meu coração explodir. Fazeis que me ajudem, Senhor; já disse a verdade. Ah, como são cruéis. Será possível que ninguém quer me dar uma colher para enfiar na garganta? Senhor, ateie fogo aos meus pés, mas me tire daqui."

E quando o comissário disse que, se não declarasse a verdade, acenderia o fogo, ela respondeu: "Faça-me queimar, pois já disse a verdade, mas me tire daqui, pois não resistirei mais. Não me deixe ainda mais desesperada. Acerte-me com um martelo na cabeça e acabem com minha falta de ar. Já disse a verdade. Virgem Maria, fazei que me soltem e mandai-me alguma ajuda."

E quando o comissário disse que, se declarasse a verdade, mandaria soltá-la e descê-la, ela respondeu: "Eu disse a verdade. Ai, mãe, falta-me coração. Em Roma, o cavalo não dura mais do que oito horas. Eu já estou aqui há uma noite e muitas horas do dia. Quem me contou foi um habitante de Triora que chegou de Roma anteontem, quando eu estava em Gênova... Estou com frio nos pés."

E foi-lhe dito que, se declarasse a verdade, o comissário mandaria soltá-la. E ela respondeu: "Não me atormentem mais; eu já disse a verdade e não preciso dizê-la de novo. Morro de frio nos pés. Tenha piedade, senhor comissário, e mande trazer um pouco de brasa para me esquentar."

E assim, por ordem do comissário, foi colocada a brasa sob os pés da acusada, e ela se calou. Duas horas depois, disse: "Meus pés estão gelados."

E mais uma vez, por ordem do comissário, foi colocada a brasa, e ela disse: "Senhor, faça-me descer daqui. Dez horas a mais ou a menos não fazem diferença... E o que vê aqui é um rato..."

E olhava o comissário, mas nada via. A acusada então começou a falar intimamente com todos, como se estivesse sentada em uma cadeira, dizendo, entre outras coisas: "Em Triora, as castanhas marrons são tão bonitas!"

E vendo um dos assistentes remendando as meias, começou a falar: "Em troca dos serviços que me presta, quando sair daqui, vou remendar suas meias."

E assim falou várias vezes na presença do comissário e de seus familiares por quase uma hora [...] E, dirigindo-se ao comissário, disse: "Senhor, permite que me preparem uma sopa e me desçam para que eu possa tomá-la?"

E tendo o comissário decidido que deveria tomá-la sem sair do cavalo, ela disse: "Tomarei igualmente sem dúvida, mas não ficará muito boa, com este tormento [...]"

Calou-se, pois parecia rir do comissário e de quem a cercava [...].

Após vinte e três horas de tormento, sem dar o menor suspiro, o comissário lhe disse: "Franchetta, não lhe importa se ficará presa aqui mais uma ou duas horas, não é verdade?" Ela, então, voltou-se para ele e os assistentes e disse, rindo: "Devia ter me descido duas horas atrás, mas achei que não estaria de acordo."

Após essa última galhofa, o suplício finalmente foi suspenso. Seu caso foi mandado ao tribunal de Gênova, que não pôde fazer nada além de absolvê-la.

Triora foi o palco de uma verdadeira caça às bruxas que levou 13 mulheres à morte, algumas de 12 ou 13 anos. Outras morreram em decorrência das torturas sofridas, enquanto muitas foram transferidas para a prisão de Gênova, onde morreram de fome e pelas terríveis condições em que eram obrigadas a viver.

O comissário que conduziu as perseguições, Giulio Scribani, é lembrado como um homem terrível e impiedoso, tendo sido excomungado em razão de sua fúria, mas logo reabilitado por questões de conveniência política. Uma das "supostas bruxas" disse: "Se o Diabo existe, sem dúvida mora no corpo daquele juiz que passa dois dias sem comer e sem dormir, alimentando-se dos horrores da tortura."

Johannes Junius

Em 1628, o burgomestre de Bamburgo; Jotiannes Junius, foi acusado e processado por bruxaria.

Esta é a carta que escreveu à filha antes de ser morto, um dos mais importantes testemunhos das perseguições:

Cem mil vezes boa noite, minha adorada filha Verônica. Inocente, fui preso, inocente, fui torturado, inocente, devo morrer. Pois quem quer que seja trancafiado na prisão das bruxas é torturado até se decidir a inventar uma confissão qualquer. Na primeira vez em que fui submetido à tortura, lá estavam o doutor Braun, o doutor Kötzendörffer e outros dois estranhos. O doutor Braun me perguntou: "Amigo, por que está aqui?" E eu respondi: "Por falsas acusações e desgraça." "Escute", disse ele, "você é um bruxo. Quer confessar espontaneamente? Senão traremos as testemunhas e o carrasco".

Eu disse: "Não sou um bruxo, e minha consciência está tranqüila com relação a isso. Nem mil testemunhas podem me assustar." Então chegou, Deus do Céu, tende piedade, o carrasco, que esmagou meus polegares com as mãos amarradas, de forma que o sangue jorrava das unhas e de todo lugar, e não pude usar as mãos por quatro semanas, como pode ver pela minha letra. Então me despiram, amarraram minhas mãos nas costas e me colocaram na polé. Pensei que Céu e Terra tivessem chegado ao fim; oito vezes fui erguido e solto, tendo sofrido terrivelmente. E assim confessei, mas era tudo mentira. Agora, querida menina, conto o que confessei para fugir da dor e das torturas que não teria conseguido suportar [...]

Eu deveria dizer quem tinha visto no sabá. Disse que não havia reconhecido ninguém.

"Velho arguto, vou chamar de volta o carrasco. Diga-me, não estaria lá o chanceler?" Então eu disse que sim, que estava. "E quem mais?" Eu não reconhecia ninguém. Então ele disse: "Siga uma rua depois da outra, começando pelo mercado, passando por toda uma rua e voltando pela seguinte." Fui obrigado a dar o nome de várias pessoas. Então chegou a rua comprida. Não conhecia ninguém que ali morasse, mas precisei dar o nome de oito pessoas. E assim continuaram por todas as ruas, ainda que eu não pudesse nem quisesse dizer mais nada. Então me entregaram ao carrasco, mandaram que ele me despisse e raspasse todo meu corpo e me submetesse à tortura.

E tive de confessar os crimes que cometi. Eu nada disse. "Levantem esse mentiroso!".

Então eu disse que deveria ter matado meus filhos, mas matei um cavalo.

Não adiantou nada [...] Eu também disse ter pego uma hóstia consagrada e tê-la profanado.

Quando disse isso, deixaram-me em paz.

Querida menina, guarda esta carta em segredo, ou sofrerei outras terríveis torturas, e meus carcereiros serão decapitados [...].

Boa noite, pois teu pai, Johannes Junius, não te verá mais.


Parte 1 & 2

Parte 3

Parte 4

Apêndices 1 & 2

Apêndices 3 & 4

Apêndice 5 & Notas

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