segunda-feira, 10 de setembro de 2007

As razões do sucesso dos programas sociais




Rui Falcão*



Um futuro historiador que se dispuser a estudar como os meios de comunicação terão avaliado as políticas sociais do governo Lula provavelmente encontrará na cobertura feita por publicações do exterior apontamentos mais consentâneos com a realidade do que os veiculados por poderosos meios de comunicação nacionais - o que lhes permitirá compreender melhor o alcance das transformações sociais e econômicas em curso no País.



A má vontade e à má fé de grandes meios de comunicação em relação ao governo Lula desafia qualquer limite. Para ficar num único exemplo, mencionarei o caso do programa Bolsa-Família - o maior e mais bem sucedido programa de erradicação da miséria já realizado em qualquer parte do mundo. Em matéria recente, um jornal de São Paulo anunciava no título que o Bolsa-Família não é eficaz porque não conseguiu vencer a desnutrição de 14% das crianças atendidas, segundo estudo do próprio governo. Esqueceu-se de utilizar ênfase de igual intensidade - pelo menos - ao ter de admitir implicitamente no corpo da matéria que 86% das crianças assistidas pelo programa já não apresentam sinais de desnutrição. Informações assim distorcidas constituem-se em regra e não em exceção.



Em contraste, nos últimos tempos publicações do exterior têm trazido com freqüência crescente matérias sobre o êxito dos programas sociais do governo Lula, que têm despertado interesse em toda parte. Assim, por exemplo, a prestigiosa revista "Economist", escrevia em seu editorial da semana passada: "Algo bastante excitante está acontecendo... Especialmente no Brasil e no México, os dois gigantes latino-americanos, as coisas estão melhores hoje do que nos anos 70. E, ao juntar argumentos sobre a solidez dos fundamentos econômicos, o semanário acrescenta: "A estabilidade e o crescimento mais rápido começam a transformar as condições sociais com velocidade impressionante" em parte por "políticas dos governos democráticos reformistas". E aduz que "a renda dos pobres cresce mais rapidamente do que a dos ricos no Brasil, país onde a desigualdade é a menor em uma geração".



Da mesma forma, numa entrevista publicada num jornal nacional, o entrevistado brasileiro criticava acerbamente o Bolsa-Família pelo seu caráter "assistencialista, que não resolve nada". Em contraste, em direção oposta, uma outra instituição insuspeita - o Banco Mundial - divulgava na mesma semana um entrevista com o seu diretor de programas, Bénédicte de La Brière, em que exalta justamente o caráter não assistencialista - e por isso inovador - do Bolsa-Família.



É com a seguinte pergunta que começa o artigo do Banco Mundial: "Será que políticas sociais, que vão além do assistencialismo, podem converter-se em instrumentos ativos de transformação social e econômica? O Brasil está nos mostrando que sim. O programa Bolsa-Família, que tem apoio técnico e financeiro do Banco Mundial, é considerado como um dos fatores-chave para a consecução dos resultados positivos obtidos pelo Brasil nos últimos anos". E prossegue o Banco Mundial: "O Bolsa-Família é o programa social de maior impacto na vida de milhões de brasileiros de baixa renda... Os indicadores mostram que o programa deu uma contribuição decisiva para a redução sem precedentes da pobreza e desigualdade nos últimos anos".



O sucesso do programa é tão retumbante que tem sido copiado com adaptações por quase vinte países, prossegue o Banco Mundial. Entre esses países, Chile, México, África do Sul, Turquia e Marrocos. Mais recentemente, a cidade de Nova York anunciou o lançamento de seu programa de transferência de renda, inspirado no programa brasileiro, informa o banco.



Seria equivocado atribuir tais resultados apenas à eficiência com que é gerido o programa - celebrada pela retórica tucana como um dos atributos exclusivos do tucanato. Aqui, não se trata apenas de estilo de gestão, mas também - e fundamentalmente - de diferença política, ideológica e de concepção. O Bolsa-Família somente vai muito bem por causa do papel atribuído ao Estado pelo governo e pelo PT e da sua concepção de democracia.



O governo Lula acerta no diagnóstico - segundo o qual o Brasil não é um país pobre, mas um país extremamente injusto e desigual e a desigualdade encontra-se na origem da pobreza - porque concebe o crescimento econômico como não dissociado da justiça social, diferentemente dos tucanos, que confiam o desafio do crescimento econômico e da promoção da igualdade unicamente ao automatismo do mercado. Da opção e do diagnóstico governamental, segue o postulado de que somente mediante a participação popular será possível assegurar a eficácia da ação estatal na implementação das políticas públicas, pois essa eficácia depende da ampliação da esfera pública não-estatal, que se situa entre o privado e o estatal e é responsável pela incorporação da participação popular nos processos democráticos de tomada de decisão. Ou seja, o Bolsa-Família é um sucesso sem precedentes porque assenta sobre uma visão diferencial da democracia e do Estado. Sem participação popular, não há eficácia nas políticas públicas nem superação substantiva dos formalismos na democracia.



No governo Lula, os beneficiários das políticas sociais públicas integram a faixa do espectro até agora não reconhecida pelo sistema político conservador, elitista, retrógrado e excludente. São eles que contribuem para um salto qualitativo na democracia brasileira; para o seu enriquecimento e diversidade, ao desfrutarem - pela primeira vez na história do Brasil - da oportunidade de enunciar problemas comuns à luz de experiências pessoais; de desenvolver discussões políticas que tornam possível captar novos problemas e suas nuances; de esboçar sugestões e articular soluções a partir do reconhecimento de novas identidades e de diferentes interpretações das necessidades.



Para o governo Lula, embora o Estado tenha um papel insubstituível na implementação das políticas sociais públicas, sua intervenção não é suficiente para a sua implementação, devendo-se, portanto, lançar mão da iniciativa dos próprios beneficiários, em ações convergentes entre Estado, mercado e a sociedade civil, convergência indispensável para a promoção do desenvolvimento com redução da desigualdade, nas condições atuais.



O governo Lula entende que não cabe ao Estado deter o monopólio do público nem - no extremo oposto - praticar o assistencialismo e a filantropia. Não há democracia substantiva nem desenvolvimento com redução da desigualdade sem participação popular. Nessa perspectiva, a promoção do desenvolvimento social não constituiria uma tarefa lateral e separável das outras tarefas do Estado. Induzir o desenvolvimento implica apoiar-se na inteligência e criatividade dos beneficiários; investir na capacidade das pessoas, reunidas nos movimentos sociais, para que possam afirmar-se como cidadãos e emancipar-se, para a superação dos problemas e satisfação das necessidades.



A comprovação "a contrário" do caráter emancipador dos programas sociais do governo Lula está no reconhecimento, por parte dos beneficiários, da ausência de intermediação por lideranças políticas, religiosas ou de outro tipo. A sua ocorrência seria um indicador da permanência da prática do clientelismo, que debilita a democracia.



A ausência do clientelismo e do assistencialismo expressa-se na exigência de contrapartidas por parte dos beneficiários. Tal exigência constitui uma forma de se ampliar o exercício do direito à saúde e à educação, ainda incompletos no País. Em relação aos serviços de saúde, o programa determina que gestantes, nutrizes e crianças de 0 a 6 anos sejam acompanhadas quanto à nutrição, mantendo-se o esquema de vacinação em dia. Gestantes devem participar das consultas de pré e pós-natal, e, assim como as mães de crianças de 0 a 6 anos, devem também participar das atividades educativas sobre saúde e nutrição.



No que tange à educação, exige-se 85% de freqüência escolar das crianças e adolescentes na faixa entre 6 e 15 anos. O não cumprimento das contrapartidas implica o desligamento das famílias beneficiárias do programa. Como resultado, o seu cumprimento tanto possibilita o acesso e a inserção da população pobre nos serviços sociais básicos como favoreça a interrupção do ciclo de reprodução da pobreza, configurando-se, assim, uma espécie de `porta de saída´ do programa.



Nesse sentido, o Bolsa-Família deverá ter o seu êxito medido pela redução gradativa do número de beneficiários. Como diz o presidente Lula, espera-se que ao final de seu governo muitos deles possam ter-se desligado do programa, como testemunhas de sua própria emancipação. Será também um testemunho da pertinência da opção política e ideológica do Partido dos Trabalhadores pelo novo papel atribuído ao Estado e pela democracia participativa.



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*Rui Falcão, 63 anos, jornalista e advogado, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Já foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.


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