terça-feira, 12 de junho de 2007

Para sociólogo, Venezuela é "sinal do futuro"

François Houtart diz que política de Lula mantém o incentivo às grandes transnacionais do agronegócio, exploradoras da principal riqueza brasileira: o solo
Daniel Merli

BRASÍLIA - Trinta dos 82 anos de François Houtart foram dedicados ao estudo das mudanças políticas nos países do Sul do planeta. Desde 1976, o sociólogo belga dirige o Centro Tricontinental, núcleo de estudos da Universidade de Louvain. O trabalho permitiu que o ex-padre acompanhasse de perto a maioria das guerras de independência da África, as guerrilhas da América Latina e os governos nacionalistas da Ásia. Atualmente, Houtart está mais interessado pelos novos governos da América Latina. Vê nos governos de Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia, iniciativas "únicas no mundo atual" por fazerem acordos comerciais que não visam somente o lucro, mas também a solidariedade. Segundo ele, "sinais do futuro sem capitalismo".

Houtart vê diferenças entre esses e outros governos da América Latina. No caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o sociólogo acredita que sua política mantém o incentivo às grandes transnacionais do agronegócio, exploradoras da principal riqueza brasileira: o solo. E se diz preocupado com os custos sociais do aumento da produção de etanol e com a visão do governo de que o biocombustível é a solução para as mudanças climáticas. No Brasil, quem rompe a lógica do maior lucro, segundo ele, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ele veio acompanhar de perto, no 5º Congresso Nacional, que começou ontem.

AGÊNCIA BRASIL - O senhor acaba de chegar de uma visita a Venezuela e Bolívia. Como vê a situação desses países?

FRANÇOIS HOUTART - Eu penso que é um fato não só realmente novo para América Latina, como único no mundo atual. Estamos passando da resistência à ofensiva contra o neoliberalismo. As iniciativas que estão surgindo nesses países vão no sentido do fim do neoliberalismo. Veja bem que, evidentemente não significa terminar com o capitalismo, mas são passos que vão numa direção muito diferente do neoliberalismo.

Obviamente, em cada país, os processos são muito diferentes. Mas, em alguns lugares, como Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba, há tempo, vão num sentido anti-imperialista. E até um certo ponto, isso ocorre também em Brasil e Argentina. Isso ficou claro na rejeição à Alca (Área de Livre Comércio das Américas). E para nós, sociólogos, é muito interessante investigar por que esse processo está acontecendo agora na América Latina, e não na Ásia, Oriente Médio ou África. Para mim, isso se deve pelo fato da América Latina ter sido mais prejudicada pelo neoliberalismo e as privatizações da década de 1990. E conviver mais de perto com o império norte-americano.


Muitos analistas apontam diferenças um grupo que seria formado por Venezuela e Bolívia e outro, encabeçado por Brasil e Argentina. Essa análise é feita tanto para criticar um como outro. O senhor acredita que há essa diferença?

Há uma diferença importante. Bolívia e Venezuela têm reservas naturais, de petróleo e gás, que estavam totalmente entregues a empresas estrangeiras. E o movimento para recuperar o controle sobre esses bens é um ato nacionalista forte. Mas, além das situações serem diferentes de país a país, também a leitura que os governos fazem dessa realidade é diferente. O Brasil não tem o mesmo problema da Venezuela ou Bolívia, em recuperar suas reservas naturais. Mas aqui, o problema central, que é a expropriação do território agrícola para exportação, não está sendo enfrentado pelo governo. Ao contrário, o Brasil está em uma dinâmica de entregar ao exterior cada vez mais o seu principal recurso natural: o solo.

Em Bolívia e Venezuela, há um projeto político fruto do desejo de sair do neoliberalismo. Esse não é o caso do Brasil. A visão que tenho do exterior é que a política de Lula é fazer o país crescer dentro dos parâmetros neoliberais. Com juros altos, gastando a maior parte de seus recursos públicos com a dívida pública. E a contrapartida disso são políticas mais assistenciais que estruturais, como o Bolsa Família. Mas mesmo com políticas relativamente diferentes, acredito que sejam possíveis alguns acordos entre esses países.

Além da rejeição à Alca, que tipos de acordos esses países podem fazer?

A base dessa aliança sul-americana tem de ser o anti-imperialismo, ou seja, a submissão aos Estados Unidos. Por isso, foi essencial a rejeição à Alca. Mas é preciso avançar nessa integração sem a tutela da Casa Branca. Um dos pontos seria o Banco do Sul, que tiraria a América do Sul da influência do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), que hoje indicam as políticas econômicas que esses países devem seguir já que controlam suas dívidas. Outro ponto é a Alba (Alternativa Bolivariana das Américas), que é um conjunto de acordos assinados entre Cuba, Venezuela e Bolívia, para trocas solidárias. Nisso, a Venezuela cede petróleo em troca de serviços médicos cubanos, por exemplo.

São trocas que superam a lógica capitalista, de aumentar o lucro. São feitas sobre a base da solidariedade e da complementação dos países. Isso são sinais de um futuro possível com mais igualdade. Mas o acordo do Brasil com os Estados Unidos sobre o etanol, vai justamente no sentido oposto. A exportação de etanol para os norte-americanos vai aumentar ainda mais o poder das empresas de agronegócio estrangeiras no Brasil. Além da produção de etanol

Mas não se formou uma visão dividida dessa questão?

Por um lado, há os riscos ambientais e sociais da expansão do etanol, mas é uma possibilidade interessante para países sem reservas de petróleo, como Cuba, que criticou o acordo do Brasil com Estados Unidos.

Óbvio que, para a Venezuela, por exemplo, num futuro sem petróleo, o etanol será importante. Mas precisamos ver o custo ambiental e social disso. Temos de saber que ainda que nós colocássemos os 2/3 da superfície terrestre a produzir etanol, não vamos suprir o consumo de petróleo que existe hoje. Então o etanol e o biodiesel são apenas uma parte da solução, não são "a" solução. Precisamos discutir a quantidade de energia que o mundo consome hoje. E isso tem a ver com o modo de vida capitalista da sociedade atual, centrado na cultura do carro e dos altos padrões de consumo. E para mudar isso, é preciso mudar todo o modelo de desenvolvimento dos países.

Eu estive recentemente nos Estados Unidos e a discussão sobre o etanol não passa pela melhora do clima. O que eles dizem é: "isso vai nos permitir ser menos dependentes do Oriente Médio e da Venezuela". Lá, eu li no jornal norte-americano mais popular, o USA Today, um anúncio publicitário: "Como o aquecimento global pode deixá-lo rico". Então, se é para estender o poder das grandes empresas de agronegócio, não é bom. Pois não muda a lógica de aumentar o lucro cada vez mais, independente dos efeitos colaterais.


Além de Venezuela e Bolívia, o MST também rompe essa lógica?

Sim, em outro âmbito, que não é de governo, é o caso do MST. O uso do solo com o fim de garantir, primeiro, a alimentação das famílias e, depois, da sociedade, está nesse espírito. A produção de alimentos sem agrotóxicos, sem visar somente o lucro na produção, também.