Defensor de pontos de vista considerados polêmicos, presidente do STF e do CNJ diz ser preciso reagir a tentativas de tolher o trabalho da Justiça
É DIFÍCIL encontrar um fato relevante da vida nacional sobre o qual Gilmar Mendes não tenha vocalizado sua opinião nos últimos dois anos. Nesse período, ele presidiu o Supremo Tribunal Federal. Fez dali seu palanque para defender pontos de vista considerados polêmicos. De saída do cargo, continua afiado. "Às vezes os confrontos são necessários", diz. Os "confrontos" foram para reagir ao que vê como tentativas de manietar o trabalho da Justiça. O caso mais rumoroso foi o de dois habeas corpus concedidos ao banqueiro Daniel Dantas. "Chamei de canalhice o que era canalhice." Deixará o STF e entrará na política? Ele nega: "Volto à bancada para contribuir com o debate doutrinário".
FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Apesar de seu estilo estar longe de ser uma unanimidade, Mendes tem resultados para apresentar de sua gestão, que termina em abril, quando Cezar Peluso assume o Supremo.
Promoveu a adoção de metas para os juízes. Uma delas foi concluir os cerca de 10 mil processos antigos, com data anterior a 31 de dezembro de 2005 e que mofavam no STF. Sobraram 1.481. "Podemos avançar mais, mas já saímos daquela crise numérica, com volume de milhares de casos atrasados".
No Conselho Nacional de Justiça, comandado pelo presidente do STF, várias normas foram baixadas. Uma delas proibiu o nepotismo. O CNJ também lançou o mutirão carcerário. Cerca de 20 mil presos ganharam a liberdade em 20 Estados. Estavam detidos irregularmente. No Espírito Santo, uma pessoa estava presa há 11 anos sem julgamento.
Sobre a presença marcante do STF na vida política -por exemplo, com a adoção da fidelidade partidária-, Mendes identifica uma razão principal: "Há uma falta de capacidade dos seguimentos políticos de produzir um consenso sobre questões básicas".
Em outro momento de fricção entre Poderes, se posicionou pela extradição do italiano Cesare Battisti, condenado por terrorismo em seu país. O STF decidiu, porém, que a palavra final sobre o caso será do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E se Lula não extraditar? A resposta do ministro revela um potencial novo confronto: "Certamente não será compreensível a decisão do presidente se eventualmente reeditar as razões do refúgio, porque o tribunal as anulou expressamente".
FOLHA - Qual foi o momento mais dramático da sua gestão?
GILMAR MENDES - O habeas corpus para Daniel Dantas. Foi uma situação atípica. Houve uma decisão do STF. E menos de 24 horas depois já havia uma outra ordem de prisão em claro descumprimento à decisão do STF. Daí ter sido dado um novo habeas corpus. Depois os fatos vieram a revelar o envolvimento político da polícia. Envolvimento de Ministério Público e juiz. E talvez coisas que não saibamos e que serão reveladas.
FOLHA - O sr. não poderia ter evitado o confronto em torno do caso?
MENDES - Às vezes os confrontos são necessários. Acho que naquele momento foi necessário. Ali se mostrou que havia um tipo de conúbio espúrio de polícia, juiz e membro do Ministério Público. As investigações provaram que os juízes estavam se sublevando contra pedido de informação feito por desembargador. Era como a jabuticaba, só existiria no Brasil: a polícia de alguma forma mandaria em toda a cena judiciária.
FOLHA - Qual o foi o desfecho do episódio sobre a acusação de grampos telefônicos no STF?
MENDES - Até hoje não trouxeram o inquérito. Toda a questão decorreu da segunda ordem de prisão para Dantas. A ordem saiu às 23h ou à meia-noite do dia anterior. Às 14h do dia seguinte ele já estava preso, com pedido feito pela Polícia Federal, parecer do Ministério Público e um longo despacho do juiz. Pode-se imaginar que as peças já estavam redigidas. Ao saber da prisão, tentei falar com a presidente do tribunal [paulista]. Ela não estava. Falei com a corregedora, que me disse que verificaria. Depois, disse que eu deveria tomar todas as cautelas porque certamente o gabinete estava sendo monitorado. Tempos depois apareceu essa conversa. Foi me apresentado um texto de uma conversa que eu havia mantido com o senador Demóstenes Torres [DEM-GO]. A suspeita é que, de fato, esse e outros abusos possam ter sido cometidos. Ainda não sabemos tudo sobre essa operação.
FOLHA - O sr. não acha que aquele seu diálogo com o senador possa ter sido apenas um relato da conversa?
MENDES - Eu tenho certeza de que houve gravação. Por quê? Porque essas pessoas estavam imbuídas de uma missão. E supunham estar autorizadas a fazer qualquer coisa.
FOLHA - Os adversários dessa tese argumentam que nunca apareceu o áudio da gravação...
MENDES - ...E eu nunca disse que havia fita. Disse que foi me apresentada uma transcrição e que era plausível com o diálogo que eu havia mantido com o senador. Não me cabe fazer nenhuma prova adicional. Mas encontraram depois uma série de gravações que não estavam nos autos do inquérito. Portanto, não é heterodoxo pensar que a operação andou por caminhos outros.
FOLHA - Quais fatos na sua gestão ficam como sua marca?
MENDES - O tribunal se consolidou como corte constitucional, não só em matéria de controle de constitucionalidade, mas também no que diz respeito às garantias de direitos fundamentais. Avançamos muito na boa aplicação de instrumentos como súmulas vinculantes. O tribunal se tornou muito mais efetivo. Adotou metas de gestão. Tem uma pauta pré-programada que permite a todos saber o que vai ser julgado.
FOLHA - Na área de fiscalização, o que o CNJ descobriu de irregular?
MENDES - No Paraná, muitos ganhavam acima do teto salarial. Inspeções da Corregedoria do CNJ em vários tribunais revelaram, por exemplo, que no TJ do Maranhão havia 140 policiais militares à disposição dos desembargadores. Tudo isso é custo. Por essa razão o CNJ determinou a feitura de um orçamento com a participação dos juízes e dos servidores. Adotou também o Siafi-jud [Sistema Integrado de Administração Financeira para o Poder Judiciário], que é a obrigatoriedade de os tribunais estaduais terem um Siafi -como já existe para os tribunais federais. Evita-se assim um quadro nebuloso, de práticas malsãs, de não transparência nos serviços públicos.
FOLHA - Há uma percepção de que a Justiça vale muito para ricos e pouco para pobres. O que pode ser feito?
MENDES - Muito. Há o exemplo do indivíduo flagrado no supermercado furtando uma barra de chocolate. Ele é entregue à polícia. O juiz fica sabendo em até 24 horas, mas burocraticamente referenda o flagrante, sem examinar se o crime justifica uma prisão provisória. O CNJ determinou que esse referendo tem de ser fundamentado, pois equivale a um mandado de prisão preventiva. Alguns juízes reclamam dessa exigência, mas o CNJ só diz que cumpram a lei. Esse procedimento ajuda a evitar abuso na prisão provisória por conta de crimes de bagatela.
FOLHA - O que sr. acha da sugestão do seu sucessor, Cezar Peluso, de promover um debate prévio antes das sessões plenárias do STF?
MENDES - Muitas cortes no mundo realizam esse tipo de prática. Isso depende de um consenso básico por parte dos ministros. Acho que é uma hipótese a ser considerada.
FOLHA - Qual a sua opinião sobre reduzir as férias dos juízes de 60 para 30 dias?
MENDES - Teremos um encontro para discutir o tema. Talvez nos tribunais superiores pudéssemos ter um modelo de um mês de férias e um mês de expediente interno com organização de trabalho do próprio gabinete.
FOLHA - Congressistas reclamam de uma "judicialização da política". Por que isso ocorre?
MENDES - As razões são várias. Há falta de capacidade dos seguimentos políticos de produzir consenso sobre questões básicas. Daí a submissão ao Judiciário em temas como fidelidade partidária ou trancamento de pauta do Congresso por causa de medidas provisórias. Não há no âmbito político instância para solução de conflitos.
FOLHA - Se Lula optar por não extraditar o italiano Cesare Battisti haverá uma crise entre Poderes?
MENDES - Vamos falar sobre hipóteses. Certamente não será compreensível a decisão do presidente se eventualmente reeditar as razões do refúgio, porque o tribunal as anulou expressamente. Se houver outras razões legais, terão de ser devidamente examinadas.
FOLHA - O sr. pensa em deixar o STF e entrar para a política?
MENDES - Eu estou encerrando um ciclo da minha vida judicial, mas continuarei no STF. Volto para a bancada para contribuir com o debate doutrinário.
MENDES - Nós temos muitas coincidências de visão sobre o Judiciário. Mas cada um também tem as suas circunstâncias. Se alguém tiver o seu nome lançado como envolvido numa operação policial, ele terá de reagir. E terá de reagir com ênfase, de imediato. Chamei de canalhice o que era uma canalhice. Às vezes a gente tem de fazer advertência e não se lamentar pela inação ou se manifestar em necrológio.
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